O discurso armamentista, amplamente empregado por lideranças autoritárias e antidemocráticas, sustenta muito mais do que a defesa do uso de armas de fogo como alternativa à segurança pública no país. Antes disso, revela a defesa da militarização da sociedade mediante a construção de uma categoria outra: a de “bandido”.
Por Gabriela Assad, para o Instituto Aurora
Frente ao crescimento da extrema-direita no Brasil e no mundo, a defesa da segurança pública tem sido, em sua maior parte, atribuída ao acirramento da repressão policial, ao encarceramento em massa – voltado principalmente à juventude negra e periférica – e à necessidade de construir uma população armada. A síntese desse pensamento se dá mediante a produção de um discurso armamentista que, cada vez mais, ganha adesão social.
No entanto, como veremos, esse discurso (re)vela um outro propósito: a construção do outro como aquele que não possui cidadania e humanidade suficiente enquanto necessidade de autoafirmação da categoria de “cidadão de bem”. Dito de outro modo, a criação dessa nova categoria, “cidadão de bem”, suscita o seu oposto – o mal cidadão, o “inimigo”. Isso seria suficiente para que o uso da força fosse legítimo.
Lamentavelmente, esse discurso ganhou notoriedade suficiente para que, após a eleição de um governo armamentista, algumas medidas para a flexibilização de armamentos fossem tomadas, o que culminou no aumento de violências com o uso de armas de fogo. Tais medidas apenas inflamaram uma sociedade que, já profundamente dividida, viu no governo a legitimação que precisava.
A fim de contribuir para a desconstrução desse discurso e criação de um cenário não violento, este texto contemplará o modo como esse discurso se forma, bem como a defesa da militarização da sociedade e do “cidadão de bem” armado como saída para a segurança pública. Propomos, desse modo, a construção de uma política de segurança pública longe da defesa da violência como forma de resolução de conflito, visando o fortalecimento de uma cultura de paz.
Tópicos deste artigo:
- O poder do discurso na política
- O que entendemos por “discurso armamentista”?
- Segurança pública e a falsa defesa do “cidadão de bem” armado
- Como enfrentar esse cenário e criar uma cultura de paz?
- Considerações finais
Publicado em 04/09/2024.
O poder do discurso na política
Michel Foucault (1996) reconhece a produção do discurso como sendo um conjunto de procedimentos que têm a função de evocar determinados poderes. Ao considerar o discurso como uma manifestação e, consequentemente, a reafirmação de um pertencimento de classe, raça, nacionalidade ou gênero – sendo as práticas discursivas dominantes aquelas que refletem a ideologia das classes dominantes –, ele localiza aqueles que partilham dos mesmos ideais.
Embora lidemos com o discurso como um emaranhado de palavras qualquer, essas elucidações/manifestações revelam aquilo que Foucault denominou de “objeto de desejo” (Foucault, 1996). Ou seja, aquilo que o emissor da mensagem, sujeito falante, deseja que se concretize. Desse modo, ademais de revelar os poderes, revela também seus desejos, neste caso, o desejo de mais poder.
A política é, nesse sentido, um dos lugares onde o discurso revela seu poder. Partindo do pressuposto de que a linguagem é um meio a partir do qual nós atuamos e interagimos com o mundo, a forma como nos comunicamos também age como um meio de intervenção política. Isso pode refletir tanto positiva quanto negativamente na sociedade.
Para Vidrio (2000), longe de ser apenas um meio para manter e regular a interação política com as comunidades, o discurso pode ser utilizado como instrumento de persuasão e violência simbólica, principalmente se associada com a exploração política e dominação de alguns grupos sobre outros.
A vinculação da concepção ideológica com a análise discursiva permite que conheçamos não apenas o emissor da mensagem mas também o contexto no qual ela é emitida, razão pela qual se defende a articulação de discurso, ideologia e poder (Vidrio, 2000). Enquanto a ideologia reflete as ideias das camadas dominantes da sociedade, o poder revela a dominação e as assimetrias de poder de uma classe sobre a outra.
Desse modo, o discurso usualmente proferido no meio político oferece um olhar muito mais voltado à captação de eleitores mediante a reafirmação – ou a encenação – de alguns valores que, naquela camada social pretendida, se considera ter maior adesão, do que nas políticas e programas sociais propostos. Isso é o que justifica a linguagem apelativa proferida, na maioria das vezes, pelas candidaturas.
Além disso, frente ao poder que o discurso político adquire na internet, os canais de comunicação de massa podem ser consideradas complementos da comunicação política, tão capazes de influenciar a opinião pública quanto os comícios eleitorais. Longe de realizar análise de confiabilidade desses discursos, as notícias disseminadas no meio digital pressupõem-se verdadeiras e são disseminadas sem qualquer critério – as Fake News são os maiores exemplos disso.
O que entendemos por “discurso armamentista”?
O discurso armamentista é todo aquele que, mediante linguagem verbal ou não verbal, carrega a defesa do uso de armas de fogo em qualquer contexto conflituoso, tanto pelas forças de segurança quanto por cidadãos comuns. Embora pareça apenas uma palavra impensada proferida por um agente público/privado em um ato de imaturidade qualquer, a defesa das armas carrega um simbolismo de poder, poder de um grupo sobre o outro, da branquitude sobre a negritude, “masculino” sobre o “feminino”, dos nacionais sobre os estrangeiros.
Uma vez que o discurso político da extrema-direita se centra no apelo ao nacionalismo, na defesa da segurança pública e na mobilização do medo da violência, a construção de um cenário ficcionalmente caótico e violento seria suficiente para legitimar o uso da força contra aqueles que estão atentando contra a “ordem”. Esses são, em especial, negros, migrantes ou refugiados e opositores políticos.
Além de escancarar o binarismo do nós vs. eles, bem vs. mal, cidadão vs. inimigo – no qual há a necessidade de autoafirmação enquanto sujeito mediante a negação da humanidade do outro –, o discurso pró-armas revela um caráter profundamente higienista, onde haverá a “limpeza da sociedade” daqueles que são considerados “indesejáveis”.
Nesse cenário, o uso da força, até então constituinte do monopólio legítimo do Estado, passa a ser disputado pelo particular que, calcado na construção da ideia de “inimigo” e na descredibilização das forças de segurança pública, se posiciona como o único responsável pela sua própria segurança e de sua família – tradicional, claro.
O crescimento dos ideais de extrema-direita no país, além de refletir o legado autoritário colonialista e ditatorial brasileiro, também promove o aumento das candidaturas de policiais civis e militares – mensageiros desse discurso –, às vagas no executivo e, principalmente, no legislativo. Em 2018, além do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, foram eleitos para o legislativo, 73 policiais e militares, no total. Esse foi um número quatro vezes maior em relação à 2014.
Para Novello e Alvarez (2022), deputados egressos das forças de segurança pública se apresentam como os responsáveis pela restauração de um passado mítico, onde não havia conflitos e divergências, os quais são compreendidos como elementos ilegítimos e devem ser suprimidos. A própria construção da candidatura do ex-presidente se ateve à criação e mitificação da figura do “herói”, do “messias”, aquele que veio para salvar a população de todo o mal – ainda que esse mal tenha sido construído por ele mesmo.
Dessa forma, a defesa da segurança pública, em sua maior parte, se transformou na defesa do armamentismo. De acordo com Marilena Chauí (2016), no Brasil nós temos três bancadas com amplo alcance no Congresso Nacional: do boi, da bala e da Bíblia. Embora atuem primariamente de maneira independente, não é raro vê-las atuando em conjunto.
Em uma retórica de manter “a ordem e a segurança das famílias em nome de Deus”, as bancadas da bala e da Bíblia se encontram. Na Marcha para Jesus, por exemplo, ocorrida em Vitória (ES), no dia 23 de julho de 2022, além de ser possível visualizar uma réplica de arma gigante dentre a multidão, o então presidente Bolsonaro fez um dos seus movimentos mais conhecidos, a arminha com a mão.
Do mesmo modo, as bancadas do boi, ou bancada ruralista, e da bala também não se eximem em manter seus vínculos ativos. A defesa da propriedade privada antes da defesa da vida, nitidamente percebida com uma simples leitura no Código Penal, faz com que essas duas frentes se juntem com o intuito de afastar qualquer reinvindicação justa ao uso sustentável e adequado da terra mediante violência armada.
Embora a discussão acerca do discurso armamentista pareça relativamente recente, simultaneamente ao crescimento da extrema-direita no país pós junho de 2013, já tivemos discussões anteriores acerca dessa temática.
“Referendo das Armas”: a alteração no Estatuto do Desarmamento para flexibilização do comércio de armas de fogo no país e posteriores desdobramentos
O Referendo, um dos mecanismos previstos pela Constituição Federal para o exercício soberania popular, faz parte do processo da democracia participativa (vide artigo 14, II, CF/88). Diferente do plebiscito, por exemplo, que questiona sobre a possibilidade de alguma proposta legislativa seguir adiante – a exemplo da proposta de divisão e posterior criação dos estados do Tapajós e Carajás no estado do Pará, em 2011 –, o referendo é uma consulta posterior sobre uma legislação já em vigor.
Após a promulgação do Estatuto do Desarmamento (Lei n°10.836/03), o artigo 35, para vigência, postulava a necessidade deste ser aprovado em referendo popular (§1°).
Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6o desta Lei.
§ 1o Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005.
Prestes a completar 20 anos, o referendo das armas, como ficou conhecido, versava não sobre as limitações ou regras na aquisição dos equipamentos, aquilo que o próprio Estatuto já fazia, mas sim sobre a proibição ou não de qualquer comércio de armas de fogo e munição no país. A pergunta definidora da consulta foi estabelecida pelo Decreto Legislativo 780/2005 e era a seguinte: “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”.
A maioria dos eleitores, 63,6%, média de 59 milhões, decidiu pelo “não”, ou seja, pela manutenção da comercialização de armas de fogo no país. O Rio Grande do Sul (RS) foi o estado com maior porcentagem de votos favoráveis à comercialização, com 86,8%, seguido por Roraima (RR) e Acre (AC), com 85% e 83,7%, respectivamente. O estado com o menor número de apoiadores foi Pernambuco (PE), com 54,3%.
Apesar da flexibilização dada pelo referendo para o comércio, isso não impede a rigorosidade do trâmite no registro do armamento. No entanto, muitas pessoas, adeptas do discurso armamentista, acreditam na desnecessidade desses procedimentos para a aquisição das armas de fogo e munições.
Como representante dessa parcela da sociedade, o governo anterior editou inúmeros decretos para facilitar o acesso às armas de fogo, sob a alegação de que estaria “fazendo valer” o referendo de 2005. Em fevereiro de 2021, por exemplo, foram publicados os decretos n° 10.627, 10.628, 10.629 e 10.630, cujos textos promoviam a flexibilização das armas, como o aumento de quatro para seis a quantidade de armas que um cidadão comum pode comprar, bem como a permissão do “porte simultâneo” de até duas armas de fogo pelo cidadão.
Vale mencionar que o Supremo Tribunal Federal (STF), na relatoria de Rosa Weber, suspendeu diversos trechos dos decretos por serem incompatíveis com o controle e a fiscalização previstos no Estatuto do Desarmamento, além de terem sido produzidos por um poder incompetente nessa matéria – que deveria ficar a cargo do legislativo e não do executivo.
Posteriormente, já em janeiro de 2023, como um dos primeiros atos do mandato, o atual presidente editou o decreto n° 11.366, que revogou dispositivos anteriores que flexibilizavam o uso de armamentos. Atualmente, a norma que regulamenta o Estatuto é o decreto n° 11.615, de 21 de julho de 2023, mais abrangente que o anterior. Com a promulgação, algumas mudanças surgiram, tais como a redução de quatro para duas armas adquiridas e a redução da quantidade de munições que um civil pode comprar.
Nessa conjuntura, e diante de uma tentativa democrática de limitar os avanços da extrema-direita reacionária no país, as discussões sobre a segurança pública baseada em evidência – com análise técnica das medidas implementadas –, ainda que minoritárias, caminham no sentido contrahegemônico ao proferido pelo discurso armamentista.
Segurança pública e a falsa defesa do “cidadão de bem” armado
A pauta armamentista, embora presente no país desde o início do século, alcançou maior ímpeto desde a candidatura e posterior eleição de Jair Bolsonaro (2018-2022), cuja marca de campanha era a defesa geral e irrestrita das armas. O discurso, utilizado pelo ex-presidente e seus apoiadores, sempre se voltava à segurança pública e à utilização de armas de fogo para a proteção do “cidadão de bem” e da “família tradicional brasileira” em detrimento daqueles considerados “bandidos”.
A despeito do conceito de “cidadão de bem”, Costa (2021) aponta que ele é uma silepse, figura de linguagem que indica concordância irregular, possuindo um termo mais abrangente – cidadão – e um mais restritivo – de bem. Como expressão da ideologia reacionária, seu uso tem consequências práticas no seio das relações sociais.
A noção de um “cidadão de bem” pressupõe uma “hierarquia moral” que, inevitavelmente, nega os direitos de cidadania enquanto direitos universais (Costa, 2021). Ao pressupor a existência de um cidadão “superior”, com mais direitos, nega-se a própria concepção de cidadania, razão pela qual a figura do “cidadão de bem” se revela um risco à democracia.
O “Cidadão de bem”, para se afirmar enquanto ser, postula necessária a negação e a posterior construção do Outro enquanto não-ser, ou seja, enquanto não-cidadão. Dito de outro modo, essa categoria se afirma enquanto cidadão negando o próprio conceito de cidadania ao outro – materializada no usufruto de todos os direitos sociais, econômicos, culturais, civis e políticos previstos internamente.
Como não-cidadãos, essa parcela da população não possuiria os mesmos direitos que os cidadãos possuem, razão pela qual tornaram-se corpos matáveis/morríveis, em nome da segurança daqueles corpos que devem ser protegidos. Daí a construção da figura do “bandido” e “vagabundo” em contraposição a do “cidadão de bem” e “trabalhador”.
Desse modo, longe de advogar pela construção de políticas de segurança pública segundo critérios de eficiência, eficácia e efetividade – seguindo o desenho de qualquer política pública –, as discussões majoritárias, politicamente levantada pela extrema-direita e pela bancada da bala, escancaram a defesa pela militarização da sociedade.
A concepção de que a segurança pública se resolve com a militarização da sociedade, mediante policiamento ostensivo, encarceramento em massa – servindo um bom modelo panóptico de Foucault ao concentrar os “indesejáveis” da sociedade em um único espaço – e a política do “bandido bom é bandido morto” é, com o perdão da expressão, um tiro no próprio pé.
Inúmeros são os fatores que contribuem para uma pessoa vir a cometer crimes, razão pela qual os tratamos como eventos multicausais. Dentre eles, podemos destacar os altos índices de evasão escolar, principalmente a partir do 1° ano do ensino médio, entre 15 e 17 anos (Cerqueira; Moura, 2019), e os baixos índices de empregabilidade (Figueiredo; Sincorá; Leite; Brandão, 2021). Se seguirmos ignorando os fatores que contribuem para a criminalidade, a tendência é a retroalimentação desse ciclo.
Apesar disso, o negacionismo científico presente nas forças de segurança pública, especialmente candidatos e parlamentares egressos, reivindicam seus saberes como sendo “superiores”, enquanto que acadêmicos e teóricos da área da segurança pública, que sintetizam esses dados, são considerados idealistas, “abstratos demais” (Novello; Alvarez, 2022). Segundo eles, a comunidade científica está do lado oposto ao do “cidadão de bem”.
A descrença, ou a desconsideração intencional, na multicausalidade da criminalidade nos revela, igualmente, a necropolítica (Mbembe, 2018) presente nas ações estatais. A necropolítica se movimenta num continuum estado de exceção, de modo que ações violentas por parte da polícia do Estado – aquele que tem o legítimo monopólio – se tornam aceitáveis em nome da “ordem” e “segurança”. Percebemos isso nas intervenções policiais que culminam no assassinato de jovens negros, de modo que a vida pregressa passa a ser argumento para a morte.
A partir do momento em que colocar armas na mão do cidadão civil, seja ele “cidadão de bem” ou não, é defendido a nível governamental com o argumento de que com isso teríamos mais “segurança”, há uma terceirização, não apenas do monopólio legítimo da violência do Estado, mas também da sua política de morte. Nesse cenário, sabemos quem, por carregar o estereótipo de “bandido” ou “inimigo”, irá sofrer as consequências dessa política.
Aumento da violência com o uso de arma de fogo como reflexo da política armamentista
Segundo informações do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023), como reflexo da flexibilização, houve um aumento do registro de armas de fogo e compra de munições por civis nos últimos anos, especialmente entre 2018 e 2022.
Em 2017, tínhamos 63.137 registros de armas de fogo por Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs), sob responsabilidade do Exército. Com variações estarrecedoras a cada ano, fechamos 2022 com 783.385 registros. Do mesmo modo, os registros de armas de fogo no Sistema Nacional de Armas (Sinarm), a cargo da Polícia Federal, aumentaram consideravelmente nos últimos anos. Enquanto que em 2017 possuíamos 637.972 registros ativos, terminamos 2022 com 1.558.416 registros.
Em relação à compra de cartuchos de munição, de 2017 a 2022 observou-se um aumento de 147%, com 170.257.418 e 420.509.293, respectivamente. Dentre todos os segmentos, o mercado varejista foi o que mais se destacou, com 87.515.534 em 2017 e 259.525.012 em 2022 (aumento de 196,5%), indicando um crescimento do consumo individual em detrimento do uso institucional ou de entidades de tiro desportivo (FBSP, 2023).
Ressalta-se, ademais, o decrescimento dos números de registro de porte e posse ilegal de armas de fogo nos últimos anos, bem como das enviadas para o exército para a sua destruição. Contudo, embora o mercado legal tenha crescido, tais números demonstram não um menor indicativo de ilegalidade ou crimes cometidos, mas a “despriorização” de retirar as armas ilegais de circulação – incluindo o paradeiro daquelas com registro expirado, cujos proprietários não cumpriram o prazo estipulado para a renovação da licença (FBSP, 2023).
Pesquisa realizada pelo Instituto Sou da Paz (2022), na qual foi avaliado o vazamento de armas para o mercado ilegal em São Paulo, aponta que, frequentemente, armas de origem legal terminam na mão do crime. A maior parte delas foi desviada de empresas de segurança privada, repartições públicas ou das residências dos CACs – maiores beneficiários das políticas de flexibilização ocorridas no governo Bolsonaro e amplamente utilizados por organizações criminosas.
Partindo da premissa de que o discurso armamentista, propagado pela extrema-direita, carrega, em si, um discurso de ódio – cuja realização se dá, primariamente, no campo do simbólico –, a flexibilização do acesso às armas de fogo e munições, legais ou não, contribui para que o número de atos violentos aumente consideravelmente.
Ainda que sob a justificativa de segurança e “proteção da vida”, as armas de fogo são o principal meio a partir do qual se mata no Brasil, esteja ela na mão do “cidadão de bem” ou não.
Em 2022, o número de mortes violentas por armas de fogo no país foi o equivalente a 76,5%. A maioria foi causada em intervenções policiais ou homicídios dolosos, mas, nos casos em que o resultado foi a morte – latrocínio ou lesão corporal seguida de morte –, a utilização de armas de fogo também foi considerável. Homens negros, precisamente de 18-24 anos, seguem sendo as principais vítimas, independente de qual seja o tipo penal (FBSP, 2023).
Além disso, a facilitação do acesso à armas de fogo e munições em contextos originalmente violentos, como em residências onde há violência doméstica, agrava o quadro, podendo culminar em um feminicídio. De acordo com pesquisa produzida pelo Instituto Sou da Paz (2024), uma em cada duas mulheres assassinadas é vitimada por arma de fogo. Mulheres negras são as principais vítimas.
Do mesmo modo, o fácil acesso às armas de fogo em contextos de ataques extremistas, apoiados discursivamente por lideranças autoritárias, contribui para a letalidade dos atos. Podemos citar como exemplo o caso de Marcelo Arruda, militante do Partido dos Trabalhadores (PT), morto em um ato de violência motivada por fins políticos.
Como enfrentar esse cenário e criar uma cultura de paz?
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH, 2023), a fim de reduzir o número de mortes e ferimentos por armas de fogo, aponta em relatório a necessidade de tornar as regras para o acesso às armas mais rígidas. Legislações menos restritivas ao acesso aos armamentos aumentam a aquisição e, consequentemente, o uso – o Brasil sob governo Bolsonaro (2018-2022) foi utilizado como exemplo do que não fazer.
No entanto, apenas mudanças legislativas não são suficientes. Se quisermos reduzir a disponibilidade de armas de fogo, o ACNUDH afirma também ser necessário entender os motivos pelos quais há a demanda por elas. O medo da vitimização e a percepção cultural sobre a masculinidade está entre eles.
De início, a insegurança e o medo da vitimização são apontados como estímulo à demanda. Isso decorre não apenas de cenário de ausência de segurança pública e políticas públicas eficazes, mas também de produção de medo. Embora o medo seja um afeto legítimo, ele é amplamente mobilizado pela extrema-direita e cenários distópicos são criados. Nesses cenários, os “cidadãos de bem” são as minorias que precisam se proteger dos “bandidos”, que são a maioria.
Além disso, o uso de armas de fogo reforçam a concepção de “virilidade” e “proteção” masculina na qual a cisheteronormatividade está pautada. Isso é o que justifica a maioria dos proprietários de armas de fogo do país serem homens, brancos, classe média/alta, enquanto que as vítimas são, em geral, homens negros e moradores de periferia (FBSP, 2023) – cujo estereótipo carrega um “alto grau de periculosidade” do qual mulheres brancas devem ser protegidas.
Nesse cenário, a desconstrução do discurso armamentista, predecessor às violências de fato, ocorre mediante a informação de qualidade democraticamente disseminada. A educação, desde que democrática, inclusiva e multicultural, deve fazer parte da solução, de modo a fortalecer a construção de uma cultura de paz. A adoção de uma educação para a paz e a não violência promove, acima de tudo, o respeito à dignidade e aos direitos humanos.
Freire (1986), ao discursar no Prêmio UNESCO da Educação para a Paz, afirmou que a paz se cria pela construção incessante da justiça social, razão pela qual não há “nenhum esforço chamado de educação para a Paz que, em lugar de desvelar o mundo das injustiças, o torna opaco e tenta miopizar as suas vítimas”. Portanto, educar para a paz perpassa pelo estímulo à criticidade e ao diálogo.
Arteaga, Hernández e Chala (2017) consideram que, diferentemente da paz negativa, predominante no ocidente, que pressupõe a ausência de guerra ou conflito enquanto se admite tacitamente a existência de opressões, abusos e injustiça social, a paz positiva supõe um nível reduzido de violência direta e elevado de justiça social, de modo que, embora os conflitos estejam presentes, existe um compromisso pela sua justa resolução.
Assim, percebe-se que a paz, quando positiva, não é a ausência de conflito – conflitos, divergências de opiniões, são saudáveis e fazem parte de uma democracia. A ausência de conflito, na maioria das vezes, mascara uma sociedade adoentada e opressora, onde os comandos dos sujeitos dominantes submetem os dominados ao silêncio, a prisão e/ou à morte.
A paz que pleiteamos é aquela que pressupõe que conflitos sempre existirão, mas a resolução deles não pode estar pautada na violência e militarização da sociedade, tampouco na morte de outrem.
Para a Organizações das Nações Unidas (ONU), através da Resolução 53/25 (1999), Cultura de Paz pode ser definida como uma cultura onde, refletindo a interação e a participação da sociedade mediante princípios como liberdade, democracia e justiça, se rejeite a violência e prevaleça a prevenção aos conflitos, utilizando o diálogo e a negociação como meio de abordar as suas causas.
Desse modo, ainda que a construção de uma cultura de paz positiva possa parecer uma utopia, especialmente se a defendermos diante de um contexto inseguro e/ou violento, esse é um objetivo perfeitamente possível se junto com ela também pleitearmos a redução das desigualdades e injustiças sociais latentes – algo que, inclusive, padece a sociedade brasileira antes mesmo da insegurança pública.
Considerações finais
Embora o aumento da repressão policial e o aparelhamento do “cidadão de bem” se apresentem, discursivamente, como alternativas à insegurança pública, apenas mascaram o problema e evidenciam a necropolítica estatal. Longe da militarização e da defesa do armamentismo, a construção de uma política de segurança pública envolve, além da prevenção da criminalidade – primária, secundária e terciária –, um olhar atento às desigualdades sociais presentes no país.
Não obstante a isso, as medidas de flexibilização de uso e registro de armas de fogo e munições, adotadas no último governo, resultaram em um aumento da violência com o uso de armas de fogo, principalmente em relação ao crescimento de ataques extremistas e à violência contra a mulher, e maior descontrole de armas ilegais por parte das forças estatais de segurança pública. Tal cenário corrobora a tese de que a construção da segurança pública, unicamente como questão de polícia, provoca o aumento da violência.
Diante disso, além de sustentarmos a necessidade de tornar as regras para o acesso às armas de fogo mais rigorosas, a fim de que apenas pessoas habilitadas e em decorrência do exercício profissional possam ter acesso, entendemos necessária a desconstrução do discurso armamentista, cuja disseminação promove a defesa do uso das armas pelos cidadãos comuns. Essa desconstrução discursiva pode ser realizada por um modelo de educação democrática – formal ou não.
A educação, quando voltada à democracia, inclusão e ao pluralismo de ideias, promove a construção de uma cultura de paz, onde o diálogo e a cooperação tem preferência frente a violência, onde a justiça e a humanidade prevalece diante das injustiças sociais. A cultura de paz que pleiteamos é, não a do silenciamento e opressão, a que compreende que conflitos são inevitáveis e, por vezes, necessários em uma sociedade, mas a guerra nunca é uma alternativa.
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Outras referências que usamos neste artigo:
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 3ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.