O crescimento dos ataques às escolas do país, bem como de diversas outras manifestações antidemocráticas, demandam ações estratégicas para seu enfrentamento. A Educação democrática, nos moldes de Paulo Freire e bell hooks, abre os caminhos necessários para que possamos pensar a construção do futuro consciente, inclusivo, não violento e de respeito aos Direitos Humanos.
Por Gabriela Assad, para o Instituto Aurora
Créditos das imagens: Instituto Paulo Freire (foto de Paulo Freire) e Alex Lozupone (foto de bell hooks)
Diante dos recorrentes ataques à educação no país, não somente através do descrédito na educação e ciência, mas também – e em um cenário especialmente preocupante – nas violências proferidas contra/nas escolas, é necessário pensar em um novo modelo de ensino que dê conta de superar as divergências, quando construtivas, presentes em uma democracia através do diálogo consciente.
Do mesmo modo que a concretização da democracia está atrelada à educação, esta não existe sem aquela. Ou seja, a educação se realiza pela realização da democracia, motivo pelo qual quando há a presença de governos antidemocráticos uma das primeiras pastas a serem desmontadas é a da Educação – observamos esse movimento acontecer nos últimos anos.
Nesse sentido, apontamos Paulo Freire e bell hooks, dois importantes teóricos da pedagogia, como espelhos. Espelhos porque ambos podem auxiliar-nos, como guias, no processo de (re)tomada do ensino de qualidade no país. Mais ainda, são direcionamentos para um modelo de ensino democrático em que a educação seja cada vez mais inclusiva, diversa, respeitosa e humanizadora.
Apesar de independentes entre si, em determinados momentos perceberemos que ambas as teorias se fundem e se sobrepõem. Neste texto iremos aprofundar as possibilidades de trabalhar nas intersecções, bem como em suas particularidades, a fim de superar o atual cenário antidemocrático nas escolas.
O que vamos abordar neste artigo:
- Breve biografia de Paulo Freire (1921-1997)
- Breve biografia de bell hooks (1942-2021)
- Qual a contribuição das obras de Freire e Hooks para a educação democrática?
- Caminhos futuros para o Brasil
- Considerações finais
Publicado em 24/01/2024.
Breve biografia de Paulo Freire (1921-1997)
Paulo Freire nasceu em 19 de setembro de 1921, no Recife (PE). Filho mais novo de 3 irmãos, viveu na capital até os 10 anos, quando se mudou para Jaboatão dos Guararapes (PE). Aos 22 anos começou o curso de Direito pela Faculdade de Direito de Recife, hoje vinculada à Universidade Federal de Pernambuco (FDR-UFPE).
Depois de realizada a pós-graduação, lecionou História e Filosofia da Educação nessa mesma Universidade, foi diretor de Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria (SESI) entre 1947 e 1954 e fundou o Instituto Capibaribe (1955), existente até hoje (LINK ABAIXO).
Em 1961, já diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife, liderou um grupo de educação popular que alfabetizou 300 cortadores de cana da região em apenas 45 dias. Em 1963, sua trajetória pela Educação Popular resultou em um de seus mais reconhecidos feitos: mais de 300 trabalhadores rurais foram alfabetizados após 40 horas de estudo, em Angicos (RN).
Diante do sucesso desse experimento, Darcy Ribeiro, à época Ministro da Educação, encomendou à Freire a elaboração de um Programa Nacional de Alfabetização. Ele assim o fez e o Programa foi publicado em janeiro de 1964, tendo como meta a instalação de 20.000 Círculos de Cultura voltados à alfabetização de, ao menos, 1,8 milhões de pessoas ainda naquele ano.
Todavia, com o Golpe Civil-Militar de 1° de abril de 1964, que culminou com a deposição do então presidente João Goulart, tal anseio foi interrompido. Perseguido pela Ditadura (1964-1985), a qual considerava o seu pensamento e suas obras como subversivas demais para o padrão de “Ordem” desejada, Freire chegou a passar 70 dias preso em um quartel em Olinda (PE).
Diante da impossibilidade de prosseguir com seu trabalho no país, exilou-se no Chile entre 1964-1969, período em que foi professor da Universidade de Santiago. Neste período, escreveu uma das suas principais obras, Pedagogia do Oprimido, em 1968. Seu modelo de Educação Popular reverberou não apenas em território chileno, mas também em toda a América Latina durante a década de 1970.
Em 1969, o educador passou uma temporada nos Estados Unidos, onde lecionou como professor visitante na Universidade de Harvard. Nos anos que se sucederam, deu consultoria educacional para o Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra (Suíça) e para outros países do chamado “terceiro mundo”, como Guiné-Bissau e Moçambique.
Regressou ao Brasil em 1980, quando a ditadura estava enfraquecendo, a Lei de Anistia (Lei no 6.683/79) havia sido promulgada e a política ensaiava uma abertura democrática. Nos anos seguintes, Freire lecionou na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP-SP) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em 1986 recebeu o prêmio UNESCO em Educação para a Paz.
À convite de Luiza Erundina – à época prefeita de SP pelo Partido dos Trabalhadores –, tornou-se Secretário Municipal de Educação de São Paulo entre os anos de 1989 e 1991. O Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA), criado por Freire à época de sua gestão, se tornou referência para outras secretarias municipais do país.
Faleceu no dia 02 maio de 1997, deixando um grandiosíssimo legado. Trabalhou incansavelmente até sua morte: lançou seu último livro, Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa (2021), no dia 10 de abril de 1997, menos de 1 mês antes de sua partida.
O reconhecimento pelo volume de seu trabalho garantiu a Freire o título de Doutor Honoris Causa por 41 Universidades diferentes, dentre elas estão a Universidade de Genebra (Suíça), Universidade de Louvain (Bélgica), Universidade de Michigan (EUA) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Foi premiado postumamente com a Ordem do Mérito Cultural (OMC/2011).
Declarado em 2012 como Patrono da Educação no Brasil (Lei n° 12.612/12), possui o livro Pedagogia do Oprimido (2023) como a 3ª obra das Ciências Humanas mais citada no mundo. Além disso, é o único brasileiro na lista dos 100 livros mais solicitados do mundo em Universidades de língua inglesa e o 2° nas categorias de Educação, de acordo com o Open Syllabus.
Teoria Freireana da Educação
“A luta pela humanização, pelo trabalho, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, […]. […] somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto da história, não é, porém, destino dado, mas o resultado de uma “ordem” injusta que gera a violência dos opressores” (Freire, 2023, p. 41, grifo nosso).
Instigado pelo alto grau de analfabetismo – lido como a representação dos estratos dominados da sociedade – que assolava o país na década de 60, Paulo Freire viu na Educação Popular um caráter libertador e subversivo frente às políticas desumanizantes. Segundo ele, havia uma importância política em manter as altas taxas de analfabetismo como estavam, especialmente em localidades mais pobres do país, como norte e nordeste.
Urgindo a necessidade de questionar o Status Quo, o qual discrimina/seleciona quem poderá ou não gozar/usufruir da categoria humanidade, Freire aponta a Pedagogia do Oprimido como um instrumento de descoberta crítica (Freire, 2023). Tal modelo de pedagogia libertadora somente é possível se realizada pelos que lutam contra a desumanização, pelos oprimidos.
Sempre válido ressaltar quem seriam esses oprimidos: mulheres, pessoas negras, indígenas, quilombolas, demais comunidades tradicionais, comunidade LGBTQIA+, pessoas com deficiência, migrantes, pessoas refugiadas e demais pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Para o autor, o modelo de educação vigente se baseia na concepção bancária, isto é, se sustenta em uma lógica de depósitos de conhecimento, onde educadores são depositantes e educandos seus depositários. Nesse modelo, educandas(os) – que “nada sabem” – são o contrário necessário de educadores(as) que “tudo sabem”. Educadores(as) são aqueles que apenas ensinam e educandas(os) são apenas ensinadas(os).
Na educação bancária, os depósitos de conhecimento em estudantes são realizados de maneira acrítica e alienada – não existe estímulo ao pensamento crítico. Como uma característica da ideologia dominante, existe uma projeção de ignorância absoluta em quem receberá a informação (Freire, 2001).
De acordo com ele, esse modelo de educação nada mais é do que o reflexo de uma sociedade opressora, que impõe a cultura do silêncio aos educandos em sala de aula assim como fora dela (Freire, 2023). Para exemplificarmos isso basta que olhemos para os padrões de “disciplina” estabelecidos em sala, em que estudantes são vistos como “adaptáveis”, “ajustáveis” a determinadas condutas exigidas.
Freire aponta que isso se reflete com mais força em localidades dependentes e que foram colonizadas, apontando especificamente para o caso da América Latina. Segundo ele, existe uma superestrutura que condiciona, sobredetermina, uma forma especial de consciência: a cultura do silêncio (Freire, 2001, p. 74). Essa cultura é o resultado da relação entre dominador-dominado ou opressor-oprimido.
Portanto, as estruturas materiais herdadas da colonização, ainda presentes na América Latina e, especificamente, no Brasil, também agem dentro da manipulação de consciência. Na verdade, é justamente pela manipulação da consciência que estruturas colonizadoras podem ser mantidas – a maioria delas com a concordância dos próprios colonizados.
Para Freire, “a sociedade dependente é, por definição, uma sociedade silenciosa. Sua voz não é uma voz autêntica, mas um simples eco da metrópole” (Freire, 2001, p. 75). Isso significa dizer que aquilo que ecoa dentro de sociedades dependentes tem sua origem nos valores, culturas e mitos criados pelas sociedades centrais – geralmente do norte global.
Esse é o caso do American Way of Life, que na realidade se trata não do modo de vida americano, mas do modo de vida estadunidense, disseminado em todo o continente como grande “modelo de prosperidade” a ser alcançado. Tal slogan reflete o poder da Indústria Cultural dominante, a qual influencia todas as esferas da nossa vida, incluindo nossas “opiniões”.
Na área da Educação, a cultura do silêncio determina a precariedade, as altas taxas de analfabetismo e a seletividade do sistema de educação. Nesse sistema, as escolas são muito mais vistas como instrumentos para perpetuação de estruturas de poder do que como possibilidades de emancipação da consciência.
Existe, contudo, o que Freire chamou de o “dilema dos oprimidos”, tendo em vista que os oprimidos “hospedam” o opressor em si. Isso significa dizer que, em um dado momento após essa descoberta, ao invés de buscar a sua libertação, os oprimidos tendem a ser opressores ou subopressores (Freire, 2023).
Assim, apesar de se sentirem oprimidos, se percebem incapazes de transfigurar essa realidade, convivendo com ela. E, ao espelharem no opressor a figura transcendental daquele que foi “capaz” de mudar a realidade – “subir na vida” como costumamos ouvir –, querem ser como eles. Perpetrando, assim, o ciclo de opressão.
Longe de ser desejado por “maldade”, “falha de caráter” ou “falta de empatia” com aqueles que são igualmente oprimidos, é uma forma de lidar com o sofrimento perpetrado pela estrutura opressora e desumanizante.
As ideologias da meritocracia e mobilidade social no capitalismo, por exemplo, colocam aqueles/as que são oprimidos/as em decorrência da estrutura desumanizante em contato com o desejo de se tornarem opressores/as. Ao invés de tentar romper com essa estrutura, libertando a si e aos demais, almeja-se passar da condição de oprimido/a e desumanizado/a para opressor/a e agente desumanizante.
Em sociedades onde o pensamento crítico não é desenvolvido, ou não há estímulo para que ele se desenvolva, não é de se estranhar a adesão automática a contos mistificados da realidade, utilizados pelas sociedade opressoras e autoritárias para cooptação de oprimidos – ainda que não se saibam assim – para o ciclo da opressão.
De outro modo, “a educação, como prática da liberdade, é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade” (Freire, 2001, p. 29). Ou seja, apesar de, no imediato, a realidade não se apresentar como compreensível, aproximar-se dela garante a passagem de uma “posição ingênua” para uma “posição crítica”.
A tomada de consciência – saída da posição ingênua para a crítica – não garante a efetiva Conscientização, ato de des-velar a realidade velada. Esta é resultado do desenvolvimento crítico dessa tomada de consciência. Na ordem: tomada de consciência 🡪 exercício crítico 🡪 conscientização
Longe do bancarismo, que entrega apenas mensagens prontas e acabadas, Freire apontava a necessidade do estímulo à pergunta, ao questionamento em sala de aula. A dúvida, todavia, quando em uma atmosfera autoritária como a sala de aula bancária, é vista como provocação. As perguntas são tão temidas quanto as respostas – e pensamentos – que provocam.
Breve biografia de bell hooks (1942-2021)
Nascia em 25 de setembro de 1942, em Hopkinsville, uma cidade rural do Kentucky, sul dos Estados Unidos, Glória Jean Watkins. Adotou posteriormente o pseudônimo de bell hooks em homenagem à sua bisavó materna, Bell Blair Hooks. hooks gostava de ser referenciada assim mesmo, com letras minúsculas, pois queria que sua obra e seus pensamentos fossem mais importante do que seu nome – evitando qualquer tipo de personalismo.
Ainda em um país sob o regime de segregação racial, estudou quando criança em uma escola só para pessoas negras. Na adolescência, hooks passou para uma escola integrada, onde viveu a discriminação e as dificuldades de ser uma das poucas pessoas negras em meio à maioria branca – incluindo seus professores e professoras.
Afirmava que esta transição para escolas integradas, além do reforço contínuo a estereótipos raciais, passou a resumir o conhecimento, que antes era a porta para a reinvenção das ideias, em pura informação. “O que se esperava de nós era a obediência, não o desejo de aprender. A excessiva ânsia de aprender era facilmente entendida como uma ameaça à autoridade branca” (hooks, 2017, p. 12).
Filha de pais da classe trabalhadora e com outras cinco irmãs e um irmão, buscou na sua própria experiência enquanto mulher negra fundamentos para escrever sobre raça, gênero, classe e como esses conceitos se interseccionam. Sua maior inquietação era com o dito “feminismo branco”, segregacionista, racista e que não comportava a luta das mulheres negras trabalhadoras.
Com longa trajetória acadêmica, começou a escrever seu primeiro livro sobre a temática, e eu não sou uma mulher?: mulheres negras e feminismo (2020a) quando ainda era estudante da graduação em Literatura Inglesa, pela Universidade de Stanford. Após sua estada em Stanford, hooks seguiu para a Universidade de Wisconsin, onde fez mestrado, e para a Universidade da Califórnia, onde finalizou seu doutorado.
A autora, que afirma ter crescido sabendo que queria ser escritora, conta, no prefácio à edição brasileira de 2015, que encontrou dificuldades para sua primeira publicação pois ninguém imaginava que haveria público para um trabalho apenas sobre mulheres negras (hooks, 2020a).
Em pouco mais de 10 anos depois de sua primeira edição, em 1981, e eu não sou uma mulher? foi considerado um dos 20 livros escritos por mulheres mais influentes das duas últimas décadas.
Criticada por não ser “acadêmica o suficiente” para as discussões do feminismo, seu maior interesse era o de que seu trabalho fosse compreendido por todas e todos. Via na sua mãe um “público-ideal”, razão pela qual cultivava um estilo de escrita realmente descomplicado e acessível a todas as pessoas, mulheres e homens, independente de sua classe social e formação.
Influenciada pelas obras do pensador e pedagogo brasileiro Paulo Freire e buscando aprofundá-las para uma pedagogia crítica feminista e antirracista, bell hooks dedicou a década de 90 para sua Trilogia do Ensino: Ensinando a transgredir: a educação como pratica da liberdade (2017), Ensinando o pensamento crítico: sabedoria prática (2020c) e Ensinando a comunidade: uma pedagogia da esperança (2021).
Prestigiada com um dos maiores prêmios literários dos Estados Unidos, o The American Book Award (1991), bell hooks faleceu no dia 15 de dezembro de 2021, com mais de 30 livros publicados e alguns em fase de tradução para o português – passeando entre conto infantil, poesia, teoria feminista e educação.
Encontro de hooks com Freire
No quarto capítulo de Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade (2017), hooks detalha seu relacionamento com aquele que foi uma das suas maiores inspirações: Paulo Freire. Apesar de já ser leitora de Freire e incorporá-lo em suas aulas, o fato de conhecê-lo pessoalmente em uma palestra na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, a fez admirá-lo ainda mais.
Na ocasião do encontro, hooks manifestou seu descontentamento com o sexismo presente nas obras do autor. Diante da clara intenção em manter um ambiente concordante, foi repreendida por seus pares acadêmicos. Ao notar a tentativa de interrupção à fala da de hooks, Freire interveio e afirmou serem essas questões importantes para o debate.
Nesse momento, hooks disse que, realmente, teve “amor por ele”, pois “exemplificou com atos os princípios de sua obra” (hooks, 2017, p. 78). Caso Freire tivesse ignorado/silenciado sua crítica, tudo mudaria. Tal reação foi a materialização daquilo que Freire defendia em suas obras: a Práxis – incorporar na prática pedagógica aquilo que se trabalha na teoria.
Diferentemente de muitas pensadoras feministas brancas, para hooks não havia separação entre os ensinamentos que incorporou da Pedagogia Crítica freireana e a Teoria Feminista. Embora nem sempre tenha as reconhecido como distintas de acordo com o sexo/gênero, nas obras de Freire há o reconhecimento da subjetividade dos menos privilegiados, daqueles que são oprimidos pelo sistema (hooks, 2017).
Teoria hooksiana da educação
“Todos nós somos sujeitos da história. Temos de voltar a um estado de presença no corpo para desconstruir o modo como o poder tradicionalmente se orquestrou na sala de aula, negando subjetividade a alguns grupos e facultando-a a outros. Reconhecendo a subjetividade e os limites da identidade, rompemos essa objetificação tão necessária numa cultura de dominação”. (hooks, 2021, p. 186).
Tomando como ponto de partida a pedagogia freireana – pedagogia para libertação e conscientização –, bell hooks montou seu próprio modelo pedagógico para o pensamento crítico. Tendo como premissa as teorias feminista e antirracista, pretendia tornar a sala de aula um ambiente plural, de respeito às diversidades, sem discriminação, igualitário e harmonioso.
Crítica ao sistema de educação bancária, o qual visualiza o processo educacional como um procedimento de depósito-saque, mero consumo e regurgitação de informações quando conveniente, ressaltava a necessidade do aprendizado ser uma escolha consciente. Para ela, tínhamos que ser participantes ativos/as e não consumidores/as passivos/as no processo educacional.
A educação tradicional, longe de ser uma prática da liberdade, se baseia na partilha da informação para a manutenção do patriarcado, da supremacia branca, do imperialismo e capitalismo (hooks, 2021). Ou seja, trabalha pela manutenção do Status Quo dominante, o qual confere a algumas pessoas privilégios e garantias que serão mantidos em detrimento de uma maioria subjugada.
hooks enfatiza a necessidade de termos um ensino feminista como contranarrativa à educação patriarcal hegemônica. O questionamento aos vieses misóginos dentro de sala de aula, além de promover o enfrentamento às desigualdades de gênero e sexualidade, fortalece a construção de um movimento não violento – o qual possui bases na dominação patriarcal. Para a autora, o pensamento feminista em sala de aula coloca a educação em conexão com a justiça social (hooks, 2020c).
Entretanto, é necessário a existência de um ensino feminista de massa, com uma linguagem acessível e para a formação do pensamento crítico, principalmente quando feito para as crianças. A atual “academização” do pensamento feminista, isto é, o modo como as discussões estão unicamente concentradas na comunidade acadêmica, enfraquece – por vezes de maneira proposital – a própria discussão.
Assim como o patriarcado, o racismo é um sistema de dominação mantido e perpetuado dentro do contexto educacional (hooks, 2021). O ensino racial nas escolas se limita ao ensino da escravização negra e não nas resistências às tentativas de dominação. Agem como se as contradições de raça já tivessem sido superadas, embora as referências bibliográficas sejam, em maioria, de autores brancos. Prevalece, dessa forma, a supremacia branca.
Como ferramenta de contraponto à supremacia branca em sala de aula, hooks reforça o poder do multiculturalismo, uma vez que “liberta o conhecimento da asfixia causada pelo ponto de vista e pelo pensamento supremacista branco” (hooks, 2021, p. 35). Além disso, mediante o (re) conhecimento dos diferentes “códigos culturais”, ou seja, da aceitação às diferentes formas de conhecimento, há o questionamento à episteme dominante (conjunto de saberes dominante).
O ensino antirracista provoca maior consciência sobre o pensamento supremacista branco, há a descolonização dos modos de pensar. Portanto, da mesma forma que a educação é uma potencial ferramenta de colonização, a qual serve para fidelizar os estudantes ao status quo (hooks, 2021), ela também é de libertação.
A sala de aula que tem como prática a liberdade é engajada, dinâmica, fluida e possui no exercício do diálogo sua principal força motriz, razão pela qual ameaça as práticas dominantes na educação. O diálogo permite que fronteiras sejam cruzadas, sejam de raça, gênero, classe social, reputação profissional ou qualquer outra que impeça o “intercâmbio crítico” entre as pessoas.
Segundo a autora, quando a pedagogia é engajada, ela não busca apenas fortalecer e capacitar estudantes, mas também promove o crescimento e fortalecimento do/a professor/a. A educação como prática da liberdade funciona não só para os alunos e alunas, mas também para todos e todas que a praticam (hooks, 2021).
Para que isso se concretize, a sala de aula não deve ser um lugar de tédio e sim de entusiasmo. Nesse sentido, hooks (2021) reforça o lugar das emoções em sala de aula, como possibilidades de dar vazão ao entusiasmo. Para ela, se formos todos emocionalmente fechados não haverá espaço para o entusiasmo pelas ideias.
Assim, o prazer e a alegria em sala de aula são, na realidade, atos de resistência que se contrapõem “ao tédio, ao desinteresse e à apatia onipresentes que tanto caracterizam o modo como professores e alunos se sentem diante do aprender e do ensinar” (hooks, 2017, p. 21).
Todavia, a defesa da alegria em sala não se refere à perda da responsabilidade no ato de ensinar. E, de fato, esse é um dos argumentos utilizados por aqueles professores e professoras que ainda estão relutantes em mudar o ambiente em sala. A responsabilidade persiste nesse ambiente, mas ela é colaborativa.
Ponto que converge os pensamentos de Freire e hooks diz respeito ao amor durante o ensino. Assim como o primeiro defendia a presença do amor durante o processo de libertação – tanto dos oprimidos de suas opressões quanto dos próprios opressores pelos oprimidos –, a segunda considerava as conexões emocionais criadas nesses ambientes de escuta e diálogo, como é a sala de aula, como fonte de transformação das estruturas de dominação.
Para hooks, geralmente as(os) docentes temem tratar as(os) educandas(os) com amor pois temem ser “engolidos” por eles. A sala de aula se torna um lugar de puro objetivismo e desumanização, sem lugar para carinho, respeito, confiança e comprometimento. Contudo, uma sala de aula amorosa, além de possuir mais chances de ser mais organizada do que a tradicional, reflete no aprendizado, respeito, empatia e diálogo crítico com responsabilidade.
Qual a contribuição das obras de Freire e Hooks para a educação democrática?
“Preparar para a Democracia não pode significar somente converter o analfabeto em eleitor, condicionando-o às alternativas de um esquema de poder já existente. Uma educação deve preparar, ao mesmo tempo, para um juízo crítico das alternativas propostas pela elite, e dar a possibilidade de escolher o próprio caminho”
(Freire, 2001, p. 23, grifo nosso)
A Educação é um valor democrático e um direito humano fundamental (art. 6°, CF/88). De acordo com hooks (2021), a escola pública é uma formação necessária para todo mundo, pois possui a missão de formar estudantes a ler, escrever e, quando satisfatória, provocar o engajamento no pensamento crítico.
A Democracia e a noção de Educação democrática explicitadas se fundem e se interseccionam em muitos momentos, especialmente por conta dos valores que buscam honrar. Apesar da maioria das pessoas acreditar que a democracia já é um regime político dado, como se atingido um patamar inalterável, não o é. É preciso dar as ferramentas necessárias para que a democracia continue sendo uma realidade e, mais ainda, expandida.
A luta pela democracia deve ser uma constante, inclusive dentro da escola. A educação se mostra como essa ferramenta que, por ser meio e fim, pode integrar as pessos com suas realidades regionais e nacionais mediante valores como humanidade, cidadania e solidariedade.
Educadores e educadoras, quando alinhados/as com os ideários de liberdade e humanidade, são porta-vozes dos valores democráticos e da consciência pela democracia. Para Freire (2015), nós ensinamos democracia fazendo democracia, ainda que esse fazer-democracia seja na discussão de sua ausência – quando regimes começam a ganhar corpos antidemocráticos.
Contudo, para que a noção de educação democrática se efetive é necessário que ela seja prestada de maneira qualitativa, com profissionais capacitados, bem remunerados e em condições dignas. Importante ressaltarmos isso diante da desvalorização de profissionais da educação e precariedade/sucateamento do ensino no Brasil.
Mais ainda, a educação democrática exige que, além da disponibilidade do ensino público, todos tenhamos igualdade de oportunidades no acesso às escolas e às universidades – independentemente do fato de se diplomarem ou não. A expansão do acesso ao sistema de educação público mediante políticas de inclusão, como cotas raciais, socioeconômica ou para PCDs são fundamentais para a concretização da democracia.
A postura de um/a educador/a democrático/a vai no sentido de trabalhar para encontrar formas de ensino que não reforcem as estruturas de dominação vigentes, seja de gênero, raça, classe ou religiosidade. Devemos exercer constante vigilância a respeito do conteúdo programático, referências bibliográficas, postura e linguagem utilizada, a fim de não reforçar estereótipos preconceituosos.
Em À sombra desta mangueira (2015), Freire aponta a necessidade da implementação de semanas de estudos da democracia nas escolas, sejam elas públicas, privadas ou técnicas, ou em universidades. Nelas, poderão ser abordadas temáticas como:
- ensino da história da democracia;
- eleições (direito ao voto e representação política, por exemplo), além dos direitos e deveres decorrentes dela;
- democracia econômica e classes sociais;
- a relação da democracia com a tolerância, a diversidade e a liberdade.
Além disso, é preciso ensinar também as razões pelas quais regimes democráticos, ainda que constitucionalmente estabelecidos, se enfraquecem. Ou seja, é imprescindível questionar e discutir sobre a ausência da democracia tanto quanto sobre sua presença.
Tanto Freire quanto hooks apontam a necessidade de formular uma pedagogia longe de uma pretensa “neutralidade” (Freire, 2015; hooks, 2017). Dito de outro modo, não existe possibilidade de uma educação realmente neutra. Tal argumento apenas satisfaz e revela a supremacia branca, patriarcal, imperialista e capitalista.
Aquilo que se constrói como panorama educacional em e para determinado lugar envolve decisões políticas que, em maioria, estão longe dos muros da escola. Portanto, posto que a decisão de “educar” alguns enquanto outros carecem de assistência educacional ou seguem no analfabetismo é política, a luta pela superação desse modelo também o é.
Da mesma forma que não é possível democratizar a sociedade brasileira sem superar o problema da fome, do desemprego, da saúde, da educação (Freire, 2015), não é possível construir um modelo de ensino longe das decisões políticas – ou ausência delas – que perpetuam determinadas agências de poder.
Caminhos futuros para o Brasil
O caminho para a implementação da educação democrática no país enfrenta desafios, especialmente nos últimos anos, período em que tivemos constantes cortes de recursos da educação pública, ofensas e perseguições à comunidade científica e incentivo à militarização das escolas.
Embora não tenha como principal objetivo a educação democrática, o Panorama da Educação em Direitos Humanos no Brasil (2019-2020; 2021-2022), elaborado pelo Instituto Aurora para Educação em Direitos Humanos, sintetiza o atual cenário de desmonte da pasta, uma vez que Democracia e Direitos Humanos são assuntos correlatos.
A educação democrática – como buscadora da humanização do ser mais – possui íntima relação com a educação em Direitos Humanos. Ao defender o multiculturalismo, a inclusão e a valorização da diversidade em sala de aula, por exemplo, preza-se pela efetivação da Igualdade, direito humano inalienável e fundamental dentro da estrutura do Estado Democrático de Direito brasileiro.
Somado aos ataques à educação e aos demais direitos sociais, acompanhamos um crescimento dos discursos de ódio, do supremacismo branco, masculinismo e de manifestações neonazistas no país. No entanto, longe de ficar apenas no plano discursivo, esse cenário veio acompanhado de um massivo crescimento nas violências de gênero, racial, antissemita e/ou xenófoba.
Resultado disso também se deu no crescimento dos ataques às escolas. O Relatório do Instituto Sou da Paz (2023) quantificou o número de ataques às escolas até junho de 2023: sete (7). Esse já era o maior número de ataques por ano desde 2002. Depois dele, apenas 2022, com seis (6) ataques e 2019, com três (3).
Contudo, desde então, tivemos mais 2 ataques: o Colégio Dom Bosco, em Poços de Caldas (MG) e a Escola Estadual Sapopemba, em São Paulo (SP). Ambos os ataques foram realizados em outubro, nos dias 10 de outubro e 23 de outubro de 2023, respectivamente. Somam-se, assim, nove (9) ataques até o fechamento deste texto (31 outubro de 2023).
Muitos ataques são motivados, inicialmente, por bullying ou outra violência sofrida na escola. Entretanto, em decorrência da faixa etária sensível para a cooptação de jovens para o extremismo de direita através de plataformas de comunicação digitais, como Telegram e Discord, muitos deles adquirem cunho supremacista e/ou neonazista, ideologia em crescimento no país nos últimos anos.
O Observatório Judaico de Direitos Humanos no Brasil (2023) apontou um aumento de 760% nas ocorrências neonazistas e antissemitas nas escolas entre 2019 e 2022. O ano de 2022 concentrou mais da metade desses números.
Algumas violências foram registradas pela primeira vez em 2022, como é o caso do racismo, com quatorze (14) registros, homofobia, com sete (7) e xenofobia, com seis (6). Algumas delas aparecem juntas, como é o caso das ocorrências racistas e neonazistas, a exemplo do Colégio Porto Seguro, em Valinhos, São Paulo.
Ainda de acordo com o Raio-X de 20 anos de ataques às escolas, realizado pelo Instituto Sou da Paz (2023), todos os agressores até agora quantificados são meninos e homens, na faixa de 10 a 25 anos, sendo 93% dos ataques realizados por alunos ou ex-alunos das instituições de ensino. A maioria das vítimas, todavia, é formada por mulheres, sejam elas educadoras ou alunas.
Diante disso, como contraponto à persistência dos ideários de masculinidade e supremacia branca que consolidam os ataques às escolas e as violências de gênero e racial no geral, uma Educação democrática preza pela superação das hierarquias de sexo/gênero e racial, bem como da violência como forma de resolução de conflito.
O crescimento dos ataques à educação no país, seja ele proferido pelo executivo quando não investe ou retira verba da educação, seja nas violências por vias de fato contra e nas escolas, decorre da potencial capacidade da educação no questionamento ao status quo e às ideias dominantes na sociedade. Ambientes onde o ensino acontece são territórios potencialmente revolucionários, se mediados de maneira correta.
Disso decorre a urgência da educação democrática como ferramenta de transformação da realidade. Longe do modelo bancário, o qual condiciona a sala de aula a se tornar um espaço de silenciamento, de obediência à hierarquia, centrado no diploma e sem conexão com o mundo, a educação democrática nos restaura o sentimento de comunidade, conexão com as demais pessoas.
De outro modo, uma pedagogia que não conduz à criticidade, à conscientização, à autonomia e ao diálogo não pode levar a outro caminho senão o da cooptação mistificada, replicação de ideias e perpetuação de violências – especialmente se ela vier acompanhada de um reforço aos ideários de masculinidade e militarização que regem alguns governos antidemocráticos.
A educação democrática, libertadora por excelência, pressupõe não apenas o ensino, mas uma prática democrática dentro de sala de aula, isso implica em respeito e escuta às diferentes vozes, tanto de educadores quanto de educandos. Além de promover o diálogo sobre raça, gênero/sexualidade, classe, cultura e religião, a educação democrática nos possibilita inserir-nos como sujeitos no processo histórico.
Considerações finais
A concepção bancária nega a própria razão de existir da educação. Ao invés de provocar o pensamento, a criticidade e o diálogo, volta-se ao depósito robotizado de ideias a fim de inibir o pensamento crítico e manter as estruturas de dominação. Todavia, essa é uma contradição consciente por parte daqueles que se beneficiam de sua acriticidade e reprodutibilidade, ou seja, dos sujeitos dominantes.
Mais ainda, por se realizar depositando conhecimento em estudantes de maneira acrítica e repetitiva (o famoso “decoreba”), o modelo bancário revela um zelo pela segurança da manutenção do status quo. Teme a capacidade crítica, valor essencial para a realização da democracia, por provocar a libertação das consciências.
Apesar da presente crise democrática – não apenas, mas também – no sistema educacional no país, percebida principalmente no aumento nos números de ataques às escolas, a sala de aula segue sendo o ambiente que oferece as maiores possibilidades de conscientização, humanização e superação das violências.
A Educação permite que, ainda no presente, influenciemos no resultado de processos futuros. Hoje ela funciona através de uma pedagogia bancária, mistificadora e opressora, mas poderá ser superada em nome de uma pedagogia crítica, conscientizadora e libertadora. Esta, se democrática, nos conduzirá à criação de uma cultura de paz e de fortalecimento dos Direitos Humanos.
O Instituto Aurora atua na promoção e defesa da Educação em Direitos Humanos. Conheça a nossa visão sobre a Educação Plural.
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Algumas referências que usamos neste artigo:
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BREDA, Tadeu. Quem é bell hooks?. Editora Elefante, 2019.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 69ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 85ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2023.
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Centauro, 2001.
FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. 11ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2ªed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
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hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 12ªed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020b.
hooks, bell. Ensinando o pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Elefante, 2020c.
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PAULO Freire é o terceiro pensador mais citado em trabalhos pelo mundo. Instituto Paulo Freire, 2016.
PAULO Freire, Patrono da Educação Brasileira. Instituto Paulo Freire, 2016.