A pandemia de Covid-19, assim como questões climáticas e econômicas, são problemas que não podem ser resolvidos isoladamente por cada pessoa, cidade ou mesmo país. Medidas devem ser tomadas de maneira conjunta por todo o globo. Ou trabalhamos todos juntos e juntas, ou não há solução que seja suficiente. Por isso, a solidariedade é tão importante. Mas o que exatamente significa esse conceito e como a solidariedade é possível? Neste ensaio para o Dia Internacional da Solidariedade Humana, convidamos você a refletir um pouco sobre essa importante ideia.
Por André Bakker
(Foto: Jana Rizziolli)
Solidariedade é um termo que foi repetido diversas vezes durante a pandemia de covid-19. Mas por quê? Por que se pede solidariedade em um momento como esse que vivemos? Como ela nos ajudaria? E afinal de contas, o que é solidariedade? Por que dizemos que a sociedade precisa ser solidária ou que nós precisamos ser solidários uns com os outros? De onde vem toda essa ideia? Solidariedade é algo sempre bom? Todo ato de solidariedade é um ato que serve para o bem?
Para podermos iniciar essa conversa, vamos tentar definir um conceito de solidariedade.
Solidariedade é tanto um desejo quanto uma atitude. Um desejo ou atitude de uma pessoa ou grupo com o objetivo de ajudar ou apoiar outras pessoas, grupos ou causas. Esse desejo ou atitude é motivada por um sentimento de vínculo com essa pessoa, grupo ou causa.
Hoje, 20 de dezembro, Dia Internacional da Solidariedade, é o momento ideal para refletirmos sobre esse conceito que é um dos pilares dos direitos humanos e um dos valores do Instituto Aurora.
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Publicado em 20/12/2021.
Um pouco de história
Como todo conceito, a solidariedade nasceu em algum momento. E, por trás de sua história, está a história das lutas sociais por direitos humanos. Talvez você conheça a solidariedade pelo seu primeiro nome, fraternidade. Lembra-se do lema da Revolução Francesa (1789): liberdade, igualdade e fraternidade? É desse contexto que vem o termo, assim como é nesse momento histórico que a versão que conhecemos dos direitos humanos começa a se estruturar. Ambos estão bastante ligados.
O que o princípio da fraternidade pretendia era que todas as pessoas fossem tratadas com igual respeito, para que a vida na sociedade fosse possível. A fraternidade era um tipo de cola social para manter a república que estava se formando coesa, como uma relação fraternal (entre irmãos).
O problema era que a história da fraternidade estava demasiadamente ligada à história da religião, especialmente do cristianismo, o que não agradava parte dos pensadores por trás dos movimentos sociais da época. A principal questão era que a fraternidade podia acabar mascarando as relações de opressão e exploração entre seres humanos, o que fazia com que fosse uma ideia pouco compatível com parte do pensamento revolucionário que queria, justamente, romper com os laços de opressão e exploração.
Por volta de 1848, como continuidade das revoluções que se iniciaram no século anterior, eclodiram conflitos sociais em várias regiões da Europa, o que foi chamado de Primavera dos Povos. É nesse momento que a solidariedade passa a fazer parte do cenário político como uma demanda, uma bandeira dos movimentos sociais.
A fraternidade foi substituída pela solidariedade, e passou a significar os laços que existiam entre grupos concretos (os trabalhadores, por exemplo) e a ajuda mútua que era necessária entre seus integrantes. Era como dizer: os trabalhadores são solidários com os outros trabalhadores, mas não com os poderosos que os exploram.
Daí em diante, o sentido de solidariedade passou por transformações e não há hoje um conceito único. Solidariedade significa muitas coisas, inclusive a responsabilidade que todos e todas têm uns para com os outros. E, também, a responsabilidade que as nações têm uma para com as outras.
Seguindo esse último sentido, o Dia Internacional da Solidariedade Humana foi instituído em 2005, pela Organização das Nações Unidas (ONU), com o propósito de valorizar o papel das ações coletivas na superação de questões que ultrapassam as barreiras de cada país, como as doenças, as questões ambientais e climáticas e, em razão da globalização econômica, a pobreza e a miséria que afetam milhões de pessoas ao redor do mundo..
De acordo com a página da ONU:
“a solidariedade global é fundamental para alcançar todos os objetivos. Ela é identificada ainda na Declaração do Milênio como um dos valores fundamentais das relações internacionais no século XXI, em que aqueles que sofrem ou se beneficiam menos merecem ajuda daqueles que se beneficiam mais. As Nações Unidas acreditam que o fortalecimento da solidariedade internacional é indispensável para a Agenda 2030 de desenvolvimento”.
Diante desse ideal trazido pelas Nações Unidas surgem várias questões: um trabalho global de cooperação pode ser possível por meio de solidariedade? Mas como ter solidariedade entre pessoas e nações tão diferentes em que as religiões, a língua, a cultura e a forma de ver o mundo são tão diversas? Se temos dificuldade de sermos solidários mesmo com pessoas próximas e em nosso próprio país, como a solidariedade global seria possível?
Como se vê, apesar de ser uma palavra comum em nosso vocabulário, solidariedade não é um conceito simples e, na verdade, pode ter várias origens e significados. Diante disso, cabe perguntar: o que torna a solidariedade possível?
Solidariedade entre pessoas
Um dos elementos que torna a solidariedade possível são as relações afetivas e a proximidade entre as pessoas. Faça-se a seguinte pergunta: você sente mais conexão com seus amigos e familiares ou com os amigos e familiares de seus vizinhos? Essa “conexão” é um dos fatores que geram a solidariedade.
Podemos levar esse experimento adiante: você sente mais conexão com pessoas que professam a mesma religião que você ou com pessoas de religiões diferentes? O fato de partilharem a mesma fé é, também, um elo que possibilita a solidariedade.
E podemos sempre estender esse raciocínio: você se sente mais próximo, conectado, de pessoas que partilham a sua nacionalidade, que são do seu país, ou com pessoas de outras nações?
Agora que você refletiu, acrescentamos uma pergunta: em um momento de necessidade, em que uma escolha tem que ser feita, você ajudaria seus amigos e familiares ou os familiares de seu vizinho? Tendo que escolher, ajudaria as pessoas da sua fé ou de outras religiões? De seu país ou de outro? Imagine que é possível fazer apenas uma escolha, quem seria?
Provavelmente, seus sentimentos o levam a querer o bem de quem está mais próximo ou com quem compartilha algo em comum. Isso é o que chamamos de um tipo de solidariedade social (ou cultural). O que a sustenta são esses laços e vínculos que existem entre indivíduos em razão da proximidade, de características que compartilham. Dizemos que a solidariedade, nesses casos, é um tipo de cola social que mantém grupos coesos.
É importante fazer uma ressalva aqui: não há nada na ideia de solidariedade que nos diga que ela é necessariamente boa, ou melhor, que todo ato de solidariedade significa fazer o bem. Assim como há solidariedade entre pessoas da mesma família e religião, pode haver solidariedade entre mafiosos, grupos intolerantes etc. Há solidariedade entre esses indivíduos e para eles é algo bom e necessário. Mas o objetivo dessa solidariedade pode não ser bom para outras pessoas e mesmo para a sociedade.
Há, ainda, outra forma bastante interessante pela qual a solidariedade pode se formar, um tipo de solidariedade que surge em razão da situação comum que grupos e pessoas vivenciam. É o que a filósofa estadunidense Sally Scholz chama de solidariedade política.
A autora define a solidariedade política como a ligação que existe entre pessoas que compartilham um mesmo tipo de experiência de vida, como a opressão e o preconceito, por exemplo. Esse tipo de solidariedade é típica entre participantes de movimentos sociais, como o feminismo, movimentos LGBTQIA+, pessoas negras, imigrantes, trabalhadores e trabalhadoras de uma mesma categoria ou classe social. O vínculo, nesses casos, se dá pelas características em comum (ser mulher, ser homossexual, ser trans, ser uma pessoa preta etc.) e o fato de sofrerem o mesmo tipo de opressão e injustiça.
Outro ponto importante da solidariedade política é que ela depende de uma relação de oposição entre “nós” e “eles”. Ou seja, empregados são solidários entre si porque existem os empregadores; mulheres são solidárias entre si, porque existe o machismo e pessoas machistas; pessoas negras são solidárias entre si, porque existe o racismo e pessoas racistas e assim por diante. Sem esse tipo de oposição, não existiria solidariedade.
É por essa razão que alguns pensadores são relutantes com a possibilidade de uma solidariedade entre todas as pessoas pelo simples fato de serem humanas. Para eles, falar em humanidade como algo único só faz sentido se pensarmos em algo fora da humanidade para termos uma oposição. Nesse caso, a humanidade poderá ser solidária entre si quando houver uma ameaça externa que a una (como alienígenas ou qualquer outra coisa que sua imaginação puder criar).
O que ocorre, segundo Scholz, é que essa forma de solidariedade política pode ser passageira e existir apenas enquanto esses grupos estiverem unidos pela luta por direitos ou contra aquilo que os ameaça. Nesse caso, o fim da injustiça e da opressão pode ser o fim da solidariedade. Por isso, seria necessário pensar em um tipo duradouro, permanente de solidariedade.
Talvez você tenha notado que o que apresentamos até agora foram formas de solidariedade já existentes entre agrupamentos de pessoas, ou seja, não estamos dizendo como a solidariedade deveria ser ou como ela deveria se formar. Apenas descrevemos os tipos de solidariedade que já estão presentes nas famílias, culturas, religiões e grupos em geral.
É certo que na sociedade coexistem diversos grupos com crenças, opiniões e valores diferentes, só que isso nos faz questionar se a solidariedade seria de fato possível em um país diverso e plural como o Brasil. Esse tipo de ligação social, afetiva, cultural ou política entre as pessoas é importante, o problema é dependermos apenas dela para que a solidariedade seja possível. Se assim for, como poderíamos ser solidários com pessoas que não conhecemos ou mesmo com pessoas que têm culturas, religiões, classes sociais e visões de mundo diferentes das nossas? É preciso um tipo mais amplo de solidariedade. E é por isso que podemos pensar não só como a solidariedade é, mas como ela poderia ser.
Essa é uma questão bastante difícil e que provavelmente ainda será muito debatida pelas ciências humanas e sociais. Porém, uma forma de abordar essa dificuldade é pensando a solidariedade não apenas como uma relação entre as pessoas, mas também como um princípio que estrutura como a sociedade deve se organizar. Com isso, não passamos a depender da solidariedade existente, mas podemos construir um tipo de solidariedade.
Solidariedade, se pensada dessa forma, é um princípio para a política que permite a cooperação e a justiça social.
Solidariedade como um princípio das práticas políticas
Assumir a solidariedade como um princípio ou um valor para pensar a sociedade, é compreender que o ser humano não está sozinho. Vivemos em uma sistema social que exige a participação de todos e todas, seja para a política (a democracia se faz na coletividade), seja para a economia (estamos em relações constantes de troca, produção, compra, venda, prestação de serviços e, essas relações sempre dependem da coparticipação. São, como dissemos, relações). Quer dizer que nós vivemos relações de cooperação e reciprocidade.
Se notarmos isso, veremos que não há porquê pensarmos que podemos viver isoladamente, desconectados uns dos outros, isto é, sem solidariedade. E é por isso, que a solidariedade como forma de pensar a própria sociedade, a própria política, faz-se tão importante.
Ainda que essa ideia possa ser um tanto abstrata, ela tem efeitos reais muito importantes. Pensemos em políticas públicas. Digamos que todas as universidades decidem que o critério de entrada nos cursos é simplesmente a meritocracia. Quem tirar mais pontos numa prova, entra. Ou ainda, imaginemos uma sociedade em que o imposto cobrado é exatamente o mesmo para todas as pessoas, independentemente de quanto ganham. Essas formas de organizar a sociedade são plenamente possíveis e, para muitos, desejáveis. O caso é que, nesses dois exemplos, os valores por trás da sociedade não são a coletividade e a solidariedade, mas a vida individual.
Se adotarmos a perspectiva da solidariedade, surgem outros exemplos. Sempre que o Estado está preocupado com o bem-estar dos cidadãos e cidadãs e garante acesso à educação, à saúde e à previdência social, ele pode estar se pautando na solidariedade.
Como exemplos, poderíamos falar de políticas públicas que consideram essas relações de cooperação e reciprocidade e que consideram a diferença e as desigualdades entre as pessoas. Assim, ações afirmativas, como as cotas, ou programas de distribuição de renda, como o bolsa família e a renda básica universal, são políticas baseadas na solidariedade. O imposto progressivo e sobre grandes riquezas, também.
Nesse caso, as pessoas passam a ter acesso a bens e oportunidades independentemente da relação que têm com outras pessoas. Elas passam a ter direito a todas essas coisas, simplesmente por serem cidadãs de um país e por serem humanas. Em síntese, ter um direito baseado na solidariedade, significa não depender de laços culturais e afetivos, ou seja, não depender da solidariedade social nem da solidariedade política. Ter direitos é vivenciar o que é chamado de solidariedade cívica.
Qual o futuro da solidariedade?
Diante do cenário global atual, marcado por questões como a pandemia de Covid-19, questões climáticas e a desigualdade econômica e social, a necessidade de práticas políticas solidárias é necessária.
Como dissemos antes, para tratar dessas questões globais, a solidariedade social e a política parecem não ser suficientes. Precisamos de um tipo de solidariedade compatível com a ideia de direitos humanos. Fica a questão para você que nos lê: que tipo de solidariedade precisamos construir para garantir nosso futuro?
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Algumas referências que usamos neste artigo
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SILVEIRA, André Bakker da. A crítica moral e a articulação política do mérito na teoria da justiça de John Rawls. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2021. Disponível em: https://www.prppg.ufpr.br/siga/visitante/trabalhoConclusaoWS?idpessoal=52246&idprograma=40001016039P7&anobase=2021&idtc=131
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