Considerando que não há construção de sociedade democrática e equitativa ou que se volte à concretização dos Direitos Humanos sem justiça efetiva, este artigo se propõe a abordar algumas das principais discussões sobre o Acesso à Justiça no Brasil, incluindo nelas a seletividade do judiciário e a necessidade de justiça de transição após períodos autoritários e ditatoriais.

Por Gabriela Assad, para o Instituto Aurora

(Foto: Pedro França / Agência Senado)

A noção de Justiça tal como conhecemos é um princípio da modernidade. Na Grécia antiga, tinha-se por costume realizar justiça com as próprias mãos, daí o ditado popular “olho por olho, dente por dente”. Com a passagem da justiça privada para a justiça pública e, especialmente após as concepções mais modernas de formação do Estado, foram instituídos alguns princípios fundamentais para sua plena e eficaz realização.

No entanto, embora existam normas internacionais e mecanismos jurídicos internos que garantam o acesso à justiça de forma eficiente e equitativa, a dificuldade no acesso aos meios judiciais – bem como nas garantias individuais durante o processo – é flagrante. Nesse sentido, é necessário analisar suas causas e consequências à efetivação da democracia.  

Para isso, em um primeiro momento, vamos nos debruçar sobre a definição do acesso à justiça, seus principais fundamentos dentro do Estado Democrático de Direito brasileiro e demais direitos vinculados a ele. Apontaremos, em seguida, o direito ao acesso à justiça como um direito humano e, por consequência, a ausência dele como uma violação de direitos humanos, principalmente no que tange a seletividade judicial. 

Na sequência, para fundamentar essa perspectiva, serão apresentados alguns entendimentos jurisprudenciais da Comissão e Corte Interamericana de Direitos Humanos em condenações ao Brasil por violação ao acesso à justiça. 

Com o intuito de provocar a reflexão acerca do acesso à justiça em contextos de transição democrática e/ou após governos autoritários, o último tópico aborda a posição do Brasil, especialmente após a promulgação da Lei de Anistia (Lei 6.683/79), na perseguição dos direitos à verdade, memória e justiça.

Tópicos deste artigo:

Publicado em 27/03/2024.

O que é Acesso à Justiça?

O Acesso à Justiça é um direito previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), no qual todas(os) as(os) cidadãs(ãos) podem invocar seus direitos e liberdades (artigo 2°, DUDH/48), recorrer às jurisdições nacionais competentes em caso de atos atentatórios a eles (artigo 8°, DUDH/48) e ter sua causa julgada por um tribunal independente e imparcial (artigo 10°, da DUDH/48). 

Na prática, garante que qualquer pessoa possa acessar aos instrumentos judiciais caso se sinta lesada e/ou diante de clara violação – ou ameaça de violação – de direitos fundamentais.

Em âmbito interno, esse direito fundamental, que também é um princípio dentro ordenamento jurídico do Estado Democrático de Direito – denominado de Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição –, está previsto no artigo 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal (1988). Segundo esse dispositivo, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.  

Desse modo, entendamos o acesso à justiça como um direito que possibilita dar vasão aos demais direitos. Dito de outro modo, a tutela judicial, sem empecilhos e com as devidas garantias, permite que seja pleiteada a efetivação de um direito violado ou sob risco de violação. 

Ressalta-se que o acesso à justiça não diz respeito apenas ao simples acesso aos meios judiciais, mas também – e principalmente – sobre o acesso justo e equitativo aos recursos. Portanto, quando há, durante o processo, graves vícios processuais, ou seja, identificação de alguma irregularidade, também há violação ao acesso à justiça, ainda que inicialmente a demanda tenha sido deferida/aceita. 

Podemos citar como exemplo um julgamento e/ou a sentença sendo proferida por um juiz incompetente – violação às regras de distribuição de competência processual, em razão da matéria, pessoa/função ou território – ou, ainda, a obtenção de provas por meios ilícitos (não observância do art. 5°, LVI, CF/88).

Nesse sentido, existem outros direitos/princípios que podemos chamar de correlatos ao Acesso à Justiça, ou seja, que são relacionados e, ao mesmo tempo, condicionantes à eficácia do acesso à justiça. São eles: 

  • Princípio da Igualdade (art. 5°, caput, CF/88): também chamado de princípio da isonomia ou, ainda, paridade de armas, aponta a necessidade de as partes serem tratadas de maneira igualitária durante o processo, com todos os direitos e garantias à elas inerentes;
  • Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa (art. 5°, LV, CF/88): Enquanto o contraditório refere-se à necessidade de conhecer, dentro de um processo, as alegações da parte contrária para que, a partir disso, a defesa possa ser requisitada, a ampla defesa oferece meio substantivo/material ao primeiro – é a garantia do direito de defesa;
  • Princípio do  Devido Processo Legal (art. 5°, LIV, CF/88): visa a garantia de todos os procedimentos legais adequados. É efetivado apenas pela realização dos demais princípios constitucionais e direitos individuais em âmbito processual; 
  • Princípio do Juiz Natural (art. 5°, XXXVII c/c LIII, CF/88): ao vedar a existência de tribunal de exceção, garante a distribuição à juízo adequado de acordo com a demanda proposta. Assegura a imparcialidade do judiciário; 
  • Princípio da duração razoável do processo (art. 5°, LXXVIII, CF/88): garante a todos a razoável duração da prestação jurisdicional – não necessariamente no menor tempo, mas no tempo adequado à satisfação da demanda; 
  • Princípio da Publicidade (art. 5°, LX, CF/88): determina que, salvo situações que justifiquem sigilo, a publicidade seja regra nos atos processuais e administrativos.

Diante da notória importância da garantia do Acesso à Justiça, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), propostos pela Organização das Nações Unidas (ONU) no âmbito da Agenda 2030, possuem, no ODS 16, a defesa da Paz, Justiça e Instituições eficazes

O objetivo, segundo a Organização, é fomentar a construção de “sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável” (ONU, 2015), bem como desenvolver o acesso à justiça de maneira eficaz, inclusiva e responsável. Ao ressaltar a importância de instituições inclusivas, a meta 16.3 defende a garantia da igualdade no acesso à justiça e a promoção do Estado de Direito. 

No entanto, apesar da relevância, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) afirmou que a meta global está “fora dos trilhos”, uma vez que, aproximadamente, 250 milhões de pessoas vivem em situações de extrema injustiça (ONU, 2023). A maior vulnerabilidade no acesso à justiça está entre mulheres e crianças. 

Acesso à Justiça como Direito Humano

Conforme explicitado acima, o Acesso à Justiça possui fundamento nos artigos 8° e 10°, da DUDH. Do mesmo modo, a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), em seu artigo 8°, 1, reconhece que “toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei” (CADH, 1969). 

Tal artigo menciona, indiretamente, alguns direitos – apontados anteriormente – como relacionados ao acesso à justiça, como a igualdade, o devido processo legal e a duração razoável do processo. A última parte dessa citação, “estabelecido anteriormente por lei”, também faz menção ao Juiz Natural, o qual aponta a necessidade de existência prévia do juízo. 

Alguns instrumentos internacionais de proteção em Direitos Humanos, em especial os de atenção às minorias, mencionam a necessidade de proteção do acesso à justiça na efetivação desses direitos. 

Válido mencionar que tais convenções, embora sejam internacionais, entram em território brasileiro com o status de Emenda Constitucional (art. 5°, §3°, CF/88). Isso significa dizer que tais documentos passam a possuir o mesmo patamar normativo, ou seja, a mesma hierarquia, da Constituição. 

Exemplo disso é a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), também conhecida como Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo decreto n° 1973/96, cuja disposição no artigo 7, f, indica a instauração de “procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeitada a violência, inclusive, entre outros, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais processos”. 

Do mesmo modo, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007), ratificada internamente mediante decreto n° 186/08, determina, no artigo 13, que os Estados partes assegurem o amplo acesso das pessoas com deficiência aos mecanismos judiciais, em condições igualitárias e, se for esse o caso, com as adaptações adequadas. 

Embora essas convenções estejam vinculadas, em especial, às mulheres e às pessoas com deficiência, ao realizar uma análise extensiva, conseguimos inferir que a garantia de proteção e dignidade mediante o acesso à justiça deve se estender a todas as pessoas integrantes de grupos vulnerabilizados, tais como pessoas negras, LGBTQIAP+, indígenas, quilombolas, migrantes, etc.

Nesse sentido, o artigo 5°, LXXIV, da Constituição, aponta a prestação jurisdicional integral e gratuita aos hipossuficientes como direito individual fundamental – e, na maioria dos casos, a hipossuficiência está atrelada a outra forma de discriminação. As Defensorias Públicas, da União (DPU) ou Estaduais (DPE), possuem papel fundamental na salvaguarda desse direito. 

De acordo com o artigo 25, §1°, da CADH, a efetiva prestação jurisdicional é um mecanismo para evitar violações de Direitos Humanos. Do mesmo modo, obstáculos encontrados no acesso à justiça causam violações de direitos humanos, em especial, aos grupos já vulnerabilizados dentro da sociedade.

O não acesso à justiça: violação de Direitos Humanos

Embora seja uma norma internacional de Direitos Humanos – imperativa, portanto – e, internamente, exista a previsão constitucional do acesso à justiça, ainda existem muitos empecilhos a sua efetivação. Por empecilhos não nos referimos apenas aos relacionados à própria tutela jurisdicional, mas também às questões estruturais que a permeiam. 

A Justiça, simbolizada pela deusa grega Themis – muitas vezes representada com uma venda nos olhos para apontar a imparcialidade do judiciário –, não está isolada do restante da sociedade. As desigualdades de gênero/sexualidade, raça, classe, religião, nacionalidade ou qualquer outra, refletem na esfera jurídica. Mais ainda, são reforçadas por ela. 

De fato, um dos principais obstáculos enfrentados por quem acessa algum órgão do poder judiciário é a excessiva burocratização do sistema. A dificuldade no acesso às informações, o excesso de documentos requisitados, além do próprio linguajar jurídico – nos referimos ao temido “juridiquês” – são apenas alguns exemplos. Na realidade, essa burocracia visa, sobretudo, distanciar a população da compreensão da lei. 

No entanto, a maior preocupação se volta à seletividade na aplicabilidade do acesso à justiça, assim como ocorre em relação aos demais direitos humanos. A seletividade do judiciário, de modo a privilegiar uma pessoa, classe social ou raça em detrimento de outra – contrária ao senso juspositivista de imparcialidade –, além de impedir a efetiva prestação jurisdicional, desacredita os órgãos de justiça. 

A máxima de que “não existe justiça no Brasil”, longe de demandar equidade e eficaz aplicação jurisdicional, reflete o punitivismo enraizado na sociedade. Isso porque as instituições já aplicam as sanções mais severas a determinados grupamentos sociais, sendo, inclusive, voltadas exclusivamente às penas privativas de liberdade. Exemplo disso é o encarceramento em massa da população negra, o qual funciona com uma lógica racista e eugenista. 

De acordo com a Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN, 2023), o Brasil possui o total de 644.305 pessoas aprisionadas. A maioria é formada por homens (95,75%), negros (67,78% no total, somando pretos e pardos), entre 18-29 anos (41,10%) e com ensino fundamental incompleto (46,54%). Desse quantitativo, ¼ (27,98%) é formado por presos provisórios. 

Neste caso, o princípio da presunção de inocência (art. 5°, LVII, CF/88) dificilmente é aplicado, principalmente se o fator raça estiver envolvido, uma vez que a culpabilidade já foi presumida – pelos órgãos aplicadores da lei e pela sociedade – independente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. 

Contrário a isso, crimes que, em sua maioria, envolvem grandes quantias de dinheiro, como corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, fraude, não possuem a punibilidade que crimes comuns contra o patrimônio possuem, como o furto. Diferentemente deste último – na maioria praticado por pessoas de baixa renda e/ou negras –, o que se conhece socialmente por “crimes de colarinho branco” são, em geral, cometidos por pessoas brancas e de classes sociais mais altas. 

Para Alves e Moreira (2021), no Brasil funciona uma “justiça bicromática”, onde os corpos negros estão nos bancos dos réus, nos presídios e são alvos das políticas de segurança pública – como aqueles que devem ser combatidos –, enquanto que os corpos brancos carregam os privilégios e ocupam os espaços de poder e decisão, inclusive no judiciário. 

Podemos exemplificar esse cenário com um julgamento ocorrido no Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), em 2020. Ao proferir sua decisão, a juíza justificou condenação do réu, acusado de associação criminosa, citando sua raça. Mais ainda, aumentou a pena do acusado por conta de suposta “conduta social”, embora essa não seja uma causa de aumento de pena presente no Código Penal. O Tribunal arquivou o caso.  

A crença na existência um estereótipo de “criminoso”, muito comum na sociedade e refletida na fala da juíza, possui origens no pensamento do psiquiatra higienista italiano Cesare Lambroso. Lambroso acreditava naquilo que ele denominou de “criminoso nato”, atribuindo determinadas características físicas à quem considerava possuir maior chance de cometimento de delito. Essas características, no entanto, tomaram contornos ainda mais racistas e eugênicos quando inseridas no contexto brasileiro. 

Tal inspiração positivista resultou num “reaparelhamento do judiciário” (Alves; Moreira, 2021), de modo a aumentar os instrumentos de repressão – que já integram o monopólio legítimo do Estado. Desse modo, a população negra é colocada no centro da suspeição criminal e/ou é exposta às violências praticadas pelos agentes públicos. 

O acesso à justiça, quando inserido na lógica da Biopolítica, encontra obstáculos e resistências por parte da própria estrutura que originou esse poder.  A biopolítica, cabe ressaltar, define campos de intervenção e instaura mecanismos de poder que possuem funções diversas das que inicialmente possuíam (Foucault, 1993). Os campos de intervenção utilizados, neste caso, são os aparelhamentos do Estado, incluído neles o judiciário.

Esse cenário evidencia a razão pela qual a demanda por “justiça” e punição, incluindo as discussões, por exemplo, de redução da maioridade penal e pena de morte, sempre visualiza corpos negros e periféricos. 

O racismo, assim como qualquer outra forma de discriminação negativa, tais como misoginia, homotransfobia, xenofobia e capacitismo, é um impedimento à justiça. Se a efetivação do acesso à justiça depende, além da tutela inicial, da garantia de procedimentos judiciais justos e equitativos, a seletividade no sistema de justiça brasileiro mina qualquer possibilidade de dar vazão a esse direito. 

Dessa forma, a limitação ou ausência do acesso à justiça, por este implicar em vários direitos correlatos, acarreta sistemática violação de Direitos Humanos realizada pelo próprio Estado. Tal cenário justifica a possibilidade de pleitear, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), o direito violado e a consequente responsabilização do ente. 

Entendimento jurisprudencial internacional sobre o acesso à justiça: condenações ao Brasil junto à CorteIDH

O Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos, representado pelas Nações Unidas, é composto por órgãos e mecanismos internacionais que garantem a aplicação dos Direitos Humanos. Visando ampliar sua efetividade, a ONU acabou por estimular a criação de Sistemas Regionais de Proteção em Direitos Humanos, por entender que a resposta para denúncias, apurações e responsabilização em caso de violações de DH poderia ser maior. 

Atualmente temos três sistemas: o Sistema Interamericano de Direitos Humanos – o nosso –, o Sistema Africano de Direitos Humanos e o Sistema Europeu de Direitos Humanos. Muito embora existam iniciativas para a concretização dos sistemas árabe e asiático de proteção aos DH, ainda enfrentam dificuldades. 

O Sistema Interamericano, do qual o Brasil faz parte, atua para garantir o cumprimento dos princípios e normas expressas na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). O Sistema é composto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a qual possui competência consultiva, e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), com competência jurisdicional. 

Para Piovesan (2012), os Sistemas regionais apenas são acionados quando o Estado se mostra falho ou omisso no dever de garantir direitos fundamentais aos cidadãos que estão sob a sua jurisdição. Ou seja, quando houver evidente violação a direito, desde que não reparado internamente. 

Para que se encaminhe um caso à CorteIDH, ele deve, inicialmente, passar pela Comissão, obedecendo todos os requisitos de admissibilidade previstos na CADH. Além do respeito ao prazo de 6 meses e ausência de litispendência internacional (quando dois processos correm simultaneamente em dois ou mais países), a CIDH admite casos em que houve esgotamento dos recursos internos, demora injustificada ou impedimento ao acesso às jurisdições internas

Após a análise desses requisitos, a Comissão pode ou não emitir um relatório com as devidas recomendações ao Estado. Caso entender necessário, a Comissão poderá submeter à Corte.

No Brasil, alguns casos possuem destaque no que diz respeito ao acesso à justiça, são eles:

Caso Damião Ximenes Lopes vs. Brasil

Damião era um paciente psiquiátrico e foi internado em um centro de atendimento particular, chamado Casa de Repouso Guararapes. Após três dias de internação, faleceu com evidentes sinais de agressões e maus tratos, de acordo com relatório emitido pela CIDH. Apesar de ser privado, o centro operava dentro da circunscrição do Sistema Único de Saúde – SUS.

No julgamento, a CorteIDH entendeu que o Estado tem o dever de garantir o efetivo acesso à justiça, assim como a celeridade da justiça para investigar e responsabilizar os envolvidos (CorteIDH, 2006). Cançado Trindade (2006), que proferiu voto à época, afirmou que ambos, o acesso à justiça e a pronta prestação jurisdicional, são indissociáveis

Ao final do julgamento, além das obrigações de reparar e indenizar as vítimas, a Corte definiu algumas medidas a serem cumpridas pelo Estado. Tais recomendações foram as primeiras, em âmbito regional, que se trataram especificamente dos cuidados com as pessoas com algum tipo de deficiência

Primeiro, o dever de cuidar, ou seja, a obrigação positiva de proporcionar condições dignas de vida às pessoas com deficiência. Segundo, o dever de regular e fiscalizar as instituições que prestem tais serviços de saúde, de modo que atuem com o devido respeito à vida e à integridade pessoal. Por fim, o dever de investigar, isto é, apurar, de maneira séria e efetiva, todos os fatos – atribuindo, aqui, responsabilização aos envolvidos, sejam eles agentes estatais ou não. 

Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil 

O caso retrata aquilo que comumente recebe a denominação de “operação policial”. Após duas operações, ocorridas na Favela Nova Brasília, localizada no Rio de Janeiro (RJ), entre os anos de 1994 e 1995, foram identificadas 26 mortes e 3 vítimas de violência sexual e estupro por parte dos policiais. Embora iniciadas as investigações pela Polícia Civil do RJ, não houve esclarecimento nem responsabilização. 

A Corte, diante do ocorrido, entendeu que as falhas na investigação constituem violação ao acesso à justiça, uma vez que impossibilitaram os avanços mínimos necessários ao caso. Além disso, ressaltou que a omissão do Estado em garantir um recurso efetivo contra atos que violem direitos humanos – direito à vida, integridade pessoal e dignidade – constitui, por si só, violação ao acesso à justiça (CorteIDH, 2017). 

As medidas de reparação indicadas pela Corte incluem obrigação de investigar e responsabilizar os envolvidos, a reabilitação para as vítimas – diretas e indiretas, com fornecimento de tratamento psicológico – e garantias de não repetição, com a adoção de políticas públicas e reformas legislativas, a fim de erradicar a impunidade da violência policial e promover a participação das vítimas na investigação. 

Cabe destacar que a Corte determinou que os conceitos de “oposição” ou “resistência” à atuação policial sejam abolidos dos relatórios de investigação em caso de lesão ou morte provocada pela ação policial – importante frisar esse ponto em virtude da revitimização constante, muito pela tentativa de justificar a violência policial com uma pretensa atribuição de culpabilidade. 

Justiça de transição, direito à memória e à verdade

Dentro do escopo do ODS 16, que se refere à Paz, Justiça e Instituições Eficazes, algumas metas foram elencadas como fundamentais para a concretização do objetivo. Assim, a meta 16.6 defende o desenvolvimento de “instituições eficazes, responsáveis e transparentes”, enquanto que a 16.10 reconhece a importância de assegurar o amplo “acesso público à informação” (ONU, 2015). 

Partindo dessa premissa, consideramos como fundamentais à concretização do acesso à justiça a informação e a transparência, razão pela qual a publicidade é um princípio fundamental em âmbito processual e rege os próprios atos da administração pública. Essa associação se deve ao fato de que, se uma pessoa não possui informações adequadas e verdadeiras sobre um fato, não há possibilidade de reclamar um direito. 

Nesse sentido, levantamos necessidade de discutir o acesso à justiça em contextos de governos autoritários ou períodos ditatoriais pregressos/anteriores. Como parte da formação da memória, a veracidade da informação é fundamental para a acepção da Justiça. Esta memória, contudo, permanece em disputa. 

Muitos períodos, como a Ditadura Civil-Militar (1964-1985), tendem a ser esquecidos, caso suas consequências não sejam cotidianamente lembradas. No entanto, é imprescindível ressaltar que esse “esquecimento” é uma decisão político-ideológica. Isso porque a memória e, por consequência, a ausência dela, é uma construção social – cuja formação varia conforme a conjuntura política. 

A história – que serve de alimento e base para a formação da memória –, pode ser interpretada e associada a diversas outras referências, mantendo ou modificando os fatos. Desse modo, a memória pode ser controlada e gerida através de discursos, instituições e/ou monumentos (lembremos das discussões acerca da estátua do Borba Gato, por exemplo).

Pollak (1989) entende que um passado que permanece mudo é mais fruto da gestão da memória feita pelos aparelhos de comunicação do que um mero produto do esquecimento. O que ocorre, em geral, é uma seleção da memória que será lembrada ou não.

Podemos colocar a Lei de Anistia (Lei n° 6.683/79) como produto dessa gestão. Passo inicial para transição “lenta e gradual” para a redemocratização, a promulgação da lei concedeu anistia a todos aqueles que foram considerados criminosos políticos ou conexos para o regime, não fazendo distinção entre os perpetradores das violências, que agiam em nome do Estado, e as vítimas. 

Para Oliveira e Reis (2020), o Estado brasileiro selecionou ideologicamente os fatos ocorridos no período e protegeu a memória que reproduz o pensamento socialmente hegemônico. 

A compreensão hegemônica do que foi esse período enxerga que não havia diferença entre as mobilizações de esquerda organizada e a repressão estatal a elas, de modo que seria melhor “deixar o passado no passado” – como se fosse possível ignorar todas as vidas perdidas durante o regime. Tal entendimento recebe a denominação de “Teoria dos dois demônios” (Oliveira; Reis, 2020). 

Embora a transição formal de um governo autoritário para um democrático tenha sido realizada, aqueles que, no período que compreendeu a lei (1961-1979), praticaram atos atentatórios contra a dignidade humana – especialmente aqueles que a praticaram em nome do Estado – não foram responsabilizados. A busca por Justiça de Transição surge dessa necessidade. 

De acordo com o Relatório S/2004/616, do Conselho de Segurança da ONU (2004), a justiça de transição funciona através de processos ou mecanismos, judiciais ou extrajudiciais, que possuem a intenção de resolver os problemas sociais derivados de um passado de abusos em grande escala. Envolve, segundo o relatório, a investigação, o ajuizamento de demandas, o ressarcimento dos danos e a própria reforma institucional. 

Nessa perspectiva, as Comissões Nacionais da Verdade (CNV), cumprem a função de reforço à memória e à verdade do período, confrontando e desmistificando as ideias hegemônicas de que, ambos os lados, resistência e Estado, possuíam paridade de armas.

Além disso, funcionam como medida restaurativa, demandando responsabilização aos perpetradores da violência, e preventiva, de modo a atuar para que os crimes cometidos à época não mais se repitam. 

O Brasil já realizou três Comissões da Verdade, duas no Governo Fernando Henrique Cardoso (1995 e 2001, respectivamente) e uma no Governo Dilma Rousseff. A última CNV – instaurada em 2012 e com relatório final publicado em dezembro de 2014 –, apontou a existência de “graves violações de direitos humanos” ocorridas na ditadura militar

Dentre as violações de direitos humanos apontadas pelo relatório estão as prisões arbitrárias, ofensas à integridade física e psicológica da pessoa detida, o desaparecimento forçado e a prática da tortura – em alguns casos resultando em morte. Esta última era parte da rotina administrativa do Estado e as próprias agências estatais obstaculizavam as investigações em caso de denúncias. 

Diante do entrave jurídico que a promulgação da lei de anistia ofereceu ao acesso à justiça daqueles que tiveram seus direitos violados durante o regime militar, o relatório do Comitê de Desaparecimento Forçado da ONU (2021) demonstrou preocupação relativa à falta de responsabilização em virtude da aplicação da legislação. Embora tenha se dirigido aos desaparecimentos forçados, tal entendimento é pacificado na organização. 

De acordo com jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento Herzog e outros vs. Brasil (2018), é dever do Estado investigar e responsabilizar as violações de direitos humanos ocorridas no período, não podendo estes invocarem lei de anistia ou similares como excludentes de responsabilidade para se escusar dessa obrigação. Mais, por se tratarem de crimes contra a humanidade, são imprescritíveis. 

Em síntese, a existência de legislação que, direta ou indiretamente, obstaculiza a responsabilização pelas violações de Direitos Humanos cometidas, constitui entrave ao pleno exercício do acesso à justiça. A gestão da memória e verdade, justamente pela ausência de reparação real e simbólica que produz, garante a permanência da seletividade do judiciário, ainda que em contextos democráticos.

 

Considerações finais

Diante do que foi abordado, percebemos que o amplo e equitativo acesso à justiça favorece a concretização dos valores democráticos e humanitários, além de permitir que cidadãs e cidadãos confiem na integridade do sistema judiciário. No entanto, existem alguns empecilhos à plena efetivação da justiça, especialmente no que tange às opressões institucionalizadas e à justiça de transição.

Nesse viés, é válido apontar algumas medidas como necessárias ao pleno e eficaz funcionamento dos mecanismos jurisdicionais, tais como o enfrentamento à seletividade e às discriminações negativas institucionalizadas – misoginia, racismo, capacitismo, xenofobia, intolerância religiosa, etc. – e  a  desburocratização dos procedimentos judiciais, podendo esta funcionar como consequência daquela, já que ambas nascem da mesma raiz. 

Consideramos indispensável, além disso, a garantia do acesso à justiça em situações de violações sistemáticas aos direitos humanos praticadas por governos autoritários e/ou ditatoriais anteriores, embora existam obstáculos oferecidos pelos próprios poderes do Estado – legislativo, executivo e judiciário – ao reivindicarem anistia. Dessa forma, os primeiros passos em direção à concretização do acesso à justiça e dos direitos humanos estarão satisfeitos.

O Instituto Aurora atua na promoção e defesa da Educação em Direitos Humanos. Conheça a nossa visão em prol de uma cultura de paz.

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Outras referências usadas neste artigo:

FOUCAULT, Michel. Genealogía del racismo. La Plata, Argentina: Editorial Altamira, 1993.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos. San José, Costa Rica, 22 nov. 1969

PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 5ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

Pontes ou muros: o que você têm construído?
Em um mundo de desconstrução, sejamos construtores. Essa ideia foi determinante para o surgimento do Instituto Aurora e por isso compartilhamos essa mensagem. Em uma mescla de história de vida e interação com o grupo, são apresentados os princípios da comunicação não-violenta e da possibilidade de sermos empáticos, culminando em um ato simbólico de uma construção coletiva.
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Quem é você na Década da Ação?
Sabemos que precisamos agir no presente para viver em um mundo melhor amanhã. Mas, afinal, o que é esse mundo melhor? É possível construí-lo? Quem fará isso? De forma dinâmica e interativa, os participantes serão instigados a pensar em seu sistema de crenças e a vivenciarem o conceito de justiça social. Cada pessoa poderá reconhecer suas potencialidades e assumir a sua autorresponsabilidade.
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Nossas formações abordam temas relacionados à compreensão de direitos humanos de forma interdisciplinar, aplicada ao dia a dia das pessoas - sejam elas de quaisquer áreas de atuação - e ajustadas às necessidades de quem opta por esse serviço.
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    Depoimento de professora de Campo Largo
    Em 2022, nosso colégio foi ameaçado de massacre. Funcionárias acharam papel em que estava escrito o dia e a hora que seria o massacre (08/11 às 11h). Também tinha recado na porta interna dos banheiros feminino e masculino. Como gestoras, fizemos o boletim de ocorrência na delegacia e comunicamos o núcleo de educação. A partir desta ação, todos as outras foram coordenadas pela polícia e pelo núcleo. No ambiente escolar gerou um pânico. Alunos começaram a ter diariamente ataque de ansiedade e pânico. Muitos pais já não enviavam os filhos para o colégio. Outros pais da comunidade organizaram grupos paralelos no whatsapp, disseminado mais terror e sugestões de ações que nós deveríamos tomar. Recebemos esporadicamente a ronda da polícia, que adentrava no colégio e fazia uma caminhada e, em seguida, saía. Foram dias de horror. No dia da ameaça, a guarda municipal fez campana no portão de entrada e tivemos apenas 56 alunos durante os turnos da manhã e tarde. Somente um professor não compareceu por motivos psicológicos. Nenhum funcionário faltou. Destacamos que o bilhete foi encontrado no banheiro, na segunda-feira, dia 31 de outubro de 2022, após o segundo turno eleitoral. Com isto, muitos estavam associando o bilhete com caráter político. A polícia descartou essa possibilidade. Enfim, no dia 08, não tivemos nenhuma ocorrência. A semana seguinte foi mais tranquila. E assim seguimos. Contudo, esse é mais um trauma na carreira para ser suportado, sem nenhum olhar de atenção e de cuidado das autoridades. Apenas acrescentamos outras ameaças (as demandas pedagógicas) e outros medos.
    Depoimento de professora de Campo Largo
    Em 2022, nosso colégio foi ameaçado de massacre. Funcionárias acharam papel em que estava escrito o dia e a hora que seria o massacre (08/11 às 11h). Também tinha recado na porta interna dos banheiros feminino e masculino. Como gestoras, fizemos o boletim de ocorrência na delegacia e comunicamos o núcleo de educação. A partir desta ação, todos as outras foram coordenadas pela polícia e pelo núcleo. No ambiente escolar gerou um pânico. Alunos começaram a ter diariamente ataque de ansiedade e pânico. Muitos pais já não enviavam os filhos para o colégio. Outros pais da comunidade organizaram grupos paralelos no whatsapp, disseminado mais terror e sugestões de ações que nós deveríamos tomar. Recebemos esporadicamente a ronda da polícia, que adentrava no colégio e fazia uma caminhada e, em seguida, saía. Foram dias de horror. No dia da ameaça, a guarda municipal fez campana no portão de entrada e tivemos apenas 56 alunos durante os turnos da manhã e tarde. Somente um professor não compareceu por motivos psicológicos. Nenhum funcionário faltou. Destacamos que o bilhete foi encontrado no banheiro, na segunda-feira, dia 31 de outubro de 2022, após o segundo turno eleitoral. Com isto, muitos estavam associando o bilhete com caráter político. A polícia descartou essa possibilidade. Enfim, no dia 08, não tivemos nenhuma ocorrência. A semana seguinte foi mais tranquila. E assim seguimos. Contudo, esse é mais um trauma na carreira para ser suportado, sem nenhum olhar de atenção e de cuidado das autoridades. Apenas acrescentamos outras ameaças (as demandas pedagógicas) e outros medos.