A radicalização à extrema direita é um fenômeno que tem aumentado no Brasil e no mundo. A Educação em Direitos Humanos sempre enfrentou ideias antidemocráticas, e a radicalização é um problema atual que merece atenção.
Por André Bakker da Silveira, para o Instituto Aurora
(Foto: Karina Pizzini)
A radicalização de jovens para a extrema-direita não tem solução pronta, nem simples, nem rápida. Para começar, precisamos reconhecer que o problema existe. Depois, analisá-lo por diferentes perspectivas. A Educação em Direitos Humanos sempre buscou superar o passado escravocrata, patriarcal e elitista brasileiro. Porém racismo, misoginia, intolerância religiosa e outras formas de discriminação são hoje difundidas intencionalmente, e por isso, devem ser combatidas de forma ainda mais direta.
A Educação em Direitos Humanos no Brasil
A Educação em Direitos Humanos (EDH), no Brasil e no restante da América-Latina, é um movimento político, teórico e de prática pedagógica que surge e se desenvolve como forma de oposição aos regimes autoritários da segunda metade do século XX. No caso brasileiro, o movimento pela EDH cresce em tamanho e relevância em meados dos anos 1980, no período de redemocratização.
De lá para cá, vivenciamos o fortalecimento da EDH de forma institucional a partir dos anos 2000, com a criação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2003, 2006), das Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (2012) e de alguns planos estaduais de EDH. De 2015 em diante, porém, observamos o declínio dessas conquistas.
Nos últimos anos, a desestruturação da EDH em nível nacional e estadual avançou a passos largos. Não à toa, em 2020 a Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos (movimento nacional responsável pelos avanços ocorridos a partir dos anos 2000, criada em 1996, porém sem atuação desde 2010) viu a necessidade de retomar suas atividades com o intuito de reativar o movimento pela EDH no país.
Publicado em 17/05/2023.
As frentes da Educação em Direitos Humanos
O foco da EDH sempre foi a criação de uma cultura de respeito aos direitos humanos. A partir dessa primeira base, a EDH se desdobra em três frentes: a transmissão de conhecimentos sobre direitos humanos; o desenvolvimento de habilidades e atitudes de respeito aos direitos humanos; e a apreensão de valores coerentes com os direitos humanos e com o respeito à dignidade humana.
De forma resumida, é importante que as pessoas saibam o que são direitos humanos, quais são seus próprios direitos e porque eles são importantes. Como ensina Nancy Flowers – importante consultora de EDH estadunidense -, a ideia é que, assim como lemos, escrevemos e fazemos as operações matemáticas, saibamos quais são nossos direitos humanos.
Além disso, Flowers defende que é igualmente importante que sejamos capazes de reconhecer as diferenças e aceitá-las, de estabelecer relações com afetos positivos e não opressivos e de resolver conflitos de forma não violenta. E, ainda, quanto à apreensão de valores, é preciso ir além do que é palpável e adentrar esferas morais e afetivas que formam todos os seres humanos.
Destacam-se, então, dois âmbitos nos quais a Educação em Direitos Humanos transita: um cognitivo e outro que se vincula a um campo afetivo. O primeiro está relacionado ao aprender sobre direitos humanos, o segundo é mais amplo e implica ser educado com direitos humanos para agir de acordo e em prol dos direitos humanos.
É sobretudo a preocupação com este âmbito afetivo, que vem sendo paulatinamente angariado por movimentos reacionários, ultraconservadores, extremistas e anti-democráticos, que provoca a escrita deste texto. O que propomos é, apenas, atrair o olhar de quem se preocupa com a EDH brasileira para um alvo específico: a radicalização à extrema direita.
A radicalização como um novo foco da Educação em Direitos Humanos
Por radicalização, queremos dizer o processo de adesão ou cooptação de um indivíduo a ideias de caráter extremista. Por extremismo, referimo-nos às crenças e ações de indivíduos que fazem uso ou endossam a violência como forma de alcançar objetivos ideológicos, religiosos ou políticos (como ensinado pela professora da Universidade de Columbia Felisa Tibbitts). Soma-se a isso o fato de que, em grande parte, essas ideias são construídas sem lastro na realidade, isto é, envoltas de mentiras, informações falsas e teorias da conspiração.
Em 2015, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) já havia levantado essa problemática, expressando preocupação “[…] com o aumento do terrorismo e do extremismo violento que pode conduzir ao terrorismo, e o desafio mundial de recrutamento e radicalização para o extremismo violento de jovens na mídia, nas comunidades e nas escolas”. Na ocasião, também foi destacado o papel da educação em direitos humanos no combate a esse problema.
De 2015 até hoje, o extremismo e a radicalização se intensificaram no Brasil. Em contrapartida, a EDH vem sendo desmantelada institucionalmente tanto em nível federal quanto nos estados, como mostram o Panorama da Educação em Direitos Humanos no Brasil, publicado pelo Instituto Aurora e a pesquisa de Fernanda Calderaro, de 2018.
Nos últimos anos vimos a descontinuidade de diversos comitês estaduais de EDH e, notadamente em 2019, a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) do Ministério da Educação (MEC) – responsável pela EDH –, do Pacto Universitário para a Educação em Direitos Humanos (lançado em 2017 também pelo MEC) e do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Com isso, a política de EDH foi retirada do âmbito da educação e colocada no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, um dos ministérios mais radicalizados pelo reacionarismo.
Nos debates sobre a radicalização, a UNESCO elenca como valores fundamentais para a prevenção do extremismo violento a solidariedade, o respeito pela diversidade, os direitos humanos e a convivência. Valores também centrais para a prática da EDH e que, quando colocados diante do cenário apresentado acima, levam-nos a crer que a EDH tem papel central no combate a esse retrocesso.
É certo que a criação de uma cultura de direitos humanos implica frear o processo de radicalização de indivíduos ainda não cooptados e resgatar aqueles que já se encontram imersos nesses contextos. Por isso é importante reconhecer que há hoje atores propagando ideias racistas, supremacistas, radicalmente individualistas, antidemocráticas, misóginas e que exaltam a violência em nosso país.
O que propomos, na realidade, é simplesmente evidenciar esse fenômeno. Não há dúvidas de que a EDH desde sempre lidou com o reacionarismo, com ideias antidemocráticas e preconceituosas. Mas a radicalização na segunda década do século XXI tem novas facetas impossíveis de serem ignoradas e que só podem ser vencidas se enfrentadas diretamente. Em razão disso, a EDH deve assumir a tarefa de prover a sociedade com conhecimentos para enfrentar a gradual radicalização da população e também atuar na desradicalização. Para isso, é preciso conhecer os símbolos, a linguagem, os tipos de discursos, as estratégias e os canais de atuação da extrema direita.
Casos como o ataque à escola em Suzano e as variadas manifestações de apologia ao nazismo, amparadas na defesa de uma pretensa liberdade abstrata, são exemplos de onde a radicalização pode nos levar. Por isso, educadoras e educadores devem estar capacitados para reconhecer situações em que os limites do razoável e da dignidade são ultrapassados e para confrontar esse tipo de expressão de maneira efetiva.
Entendemos que o ponto de partida é a consciência de que o que está em em curso é a formação de subjetividades, que – como explica Renato Levin Borges, pesquisador do tema – agora ocorre por meio da internet e dos memes e que hoje atende a uma agenda da extrema direita. A radicalização é resultado, entre outros elementos, de ambientes virtuais tóxicos que propagam uma ideologia paranoica e violenta.
O problema é relativamente novo, pois, nos anos 1990, período de desenvolvimento da EDH brasileira, não havia uma ferramenta como a internet atuando nessa formação das identidades. Mesmo nos anos 2000, momento de consolidação da EDH no Brasil, o acesso aos meios digitais era bastante restrito. O contexto agora é outro e é preciso atualizar a teoria e as práticas da educação em direitos humanos.
A EDH como educação sobre, com e para os direitos humanos permanece fundamental, mas deve ser acrescida de uma dimensão de reconhecimento, prevenção e desconstrução de mentalidades radicalizadas ou em processo de radicalização. É preciso conhecer os chans (fóruns virtuais anônimos. Alguns são reconhecidamente espaços de disseminação de ideais extremistas), a manosfera (grupos online formados por homens que propagam ideias misóginas e reivindicam a recuperação de uma masculinidade perdida em razão das conquistas feministas), os símbolos e códigos. É preciso saber o que se passa nos grupos de Whatsapp e Telegram. É preciso ter ciência de fenômenos como o masculinismo, o racismo científico, o revisionismo histórico, a janela de overton e de outras estratégias discursivas.
Sem deixar de lado a compreensão dos desafios dos direitos humanos no Brasil – a pobreza, a desigualdade, a fome, a falta de moradia, o racismo estrutural, o ataque aos povos indígenas, a LGBTQ+fobia, o machismo, dentre tantos outros – a EDH deve agora se ocupar ativamente também da radicalização. Racismo, machismo e outras formas de preconceito, assim como o individualismo exacerbado, não podem ser pensados apenas como resquícios de uma cultura escravocrata, patriarcal e elitista. Essas ideias são hoje intencionalmente difundidas, e por isso, devem ser combatidas, como mencionamos, ativamente.
Professoras e professores, pais e mães, educadores e educadoras sociais, a mídia e membros do poder público (sistemas de justiça, educação e segurança) devem promover o respeito aos direitos humanos e serem capazes de reconhecer manifestações de teor extremista. Combater tais ideias não é simples, por isso é urgente criar materiais, realizar formações e fortalecer as redes de apoio aos educadores e educadoras que enfrentam tais situações.
Fazemos esse apelo para que todas as pessoas preocupadas com a educação em direitos humanos informem-se e prestem atenção a esse fenômeno e, também, para que as instituições públicas e organizações da sociedade civil que trabalham com EDH, dentro ou fora da educação formal, coloquem essa pauta em seus projetos, ações e estratégias.
Este é parte de uma série de artigos em que trataremos da radicalização e do extremismo. Em próximos textos, detalharemos um pouco mais sobre a origem e funcionamento desses processos e sobre como atuar na prevenção do problema.
O Instituto Aurora está atento a esse tema e vai realizar, ainda em 2023, um projeto com várias frentes de ação focadas na prevenção à radicalização de jovens.
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(Uma versão deste artigo foi publicada originalmente no Estadão)
Algumas referências que usamos neste artigo:
BRASIL. Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. Brasília: Ministério da Educação/Conselho Nacional de Educação, 2012.
BRASIL. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos / Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2007.
CANDAU, Vera Maria. Educação em direitos humanos: desafios atuais. In: SILVEIRA, R. M. G.; DIAS, A. A.; FERREIRA, L. de F. G.;ALENCAR, M. L. P.; ZENAIDE, M. N. T.. (Org.). Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos. 1ªed.João Pessoa: Editora Universitária – Universidade Federal da Paraíba, 2007, v. , p. 414-427.
FLOWERS, Nancy. et al. Human rights education handbook: effective practices for learning, action, and change. Massachussets: The human rights resource center and the Stanley Foundation, 2000.
MORGADO, Patricia. Práticas Pedagógicas e Saberes Docentes na Educação em Direitos Humanos (apresentação de trabalho). Rio de Janeiro, 2001, p. 1-16.
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