Pessoas que menstruam já passaram, em algum momento, por um constrangimento ou uma privação relacionados à menstruação. Agora, imagine passar por esse tipo de situação todos os meses, sem exceção.

Por Michely Biscaia, para o Instituto Aurora

(Foto: Karolina Grabowska / Pexels)

Mesmo sendo algo biológico do corpo, o sangue menstrual é ainda um tabu em nossa sociedade. E esse tabu tem sido uma barreira na vida de milhares de meninas, homens trans e pessoas não binárias. Essa barreira exclui e aumenta a desigualdade social e de gênero, e faz com que pouco se fale sobre problemas como a pobreza menstrual.

O que vamos abordar neste artigo:

Publicado em 31/05/2021.

Desmistificando a menstruação

Antes de adentrarmos no tema, um alerta: esse texto é também para você, que não é mulher, mas que menstrua. E é também para você, que é mulher, e não menstrua. Pontuado isto, senta aqui, e vem com a gente. 

A primeira menstruação costuma ocorrer aos 13 anos de idade, o que significa que uma pessoa menstrua de 400 a 500 vezes na vida. Mensalmente, e pelo período médio de  7 dias, um ciclo se encerra e outro se inicia com a menstruação. Ainda assim, pouco se fala sobre o tema. A própria palavra menstruação é por vezes evitada, vista como algo sujo. E isso vem de milhares de anos. Historicamente, as mulheres vêm sofrendo diversas privações, e a menstruação é mais um motivo para isso.

Esse estigma, aliado à falta de informação e de recursos, tem consequências negativas na vida de milhares de pessoas ao redor do mundo, em diversos aspectos. E aqui, no Brasil, não é diferente. 

Quanto custa menstruar? A pobreza menstrual

Para pessoas que menstruam, sangrar é inevitável, é algo periódico. Assim, para que possamos seguir com as nossas atividades do dia a dia, a indústria nos oferece uma gama de produtos, como absorventes externos e internos, calcinhas com tecnologia absorventes, coletores e discos menstruais. Contudo, a disponibilidade desses itens restringe-se a uma parcela da população, que pode pagar por eles. Apesar de sua indiscutível essencialidade, são itens de valor elevado, e isso se credita, principalmente, pela alta carga tributária sobre eles incidente. 

Na nossa Constituição consta um princípio, o princípio da essencialidade, segundo o qual quanto maior for a essencialidade do produto, menor deve ser o imposto sobre ele. Apesar disso, segundo a Receita Federal, a carga tributária sobre o absorvente higiênico é de 27,5%. O pacote de absorvente custa em média R$ 4,00, desse valor, R$ 1,10 corresponde aos impostos. Agora propomos um exercício: você já parou para pensar sobre o peso da higiene íntima com absorventes no orçamento? Vamos calcular: 

  • N.º absorventes por ciclo menstrual (mensal): 20 
  • Preço médio do absorvente (unidade): R$ 0,60.
  • Custo mensal: R$ 12,00. 
  • Custo anual: R$ 144,00. 
  • Custo durante a vida: R$ 5.328,00. 

Agora, considere que 27 milhões de brasileiros e brasileiras (12,7% da população) vivem abaixo da linha da pobreza, o que significa dizer que todas essas pessoas tentam sobreviver com, em média, R$ 246,00 por mês. O peso do absorvente no orçamento é, portanto, significativo, representando 5%. E é por essa razão que muitas famílias não têm acesso a esse item, ou têm um acesso restrito

Mas esse não é o único problema que envolve o tema. Outro ponto de intersecção entre a desigualdade e a menstruação é o saneamento básico. Um estudo realizado em 2020 pela BRK Ambiental, em parceria com o Instituto Trata Brasil, apontou que 15,2 milhões de brasileiras (uma em cada sete) não têm acesso à água em suas residências e que 1,5 milhões de brasileiras vivem em casas sem banheiros.

A falta de higiene decorrente da falta de água ou da escassez do produto pode causar infecções nos órgãos reprodutivos. Essa escassez impacta tanto na vida social, quanto na saúde de quem menstrua. 

A menstruação e a evasão escolar 

Não é que na infância não havia problemas, mas a adolescência trouxe mais um: a menstruação. Se eu não tenho água para limpar, nem absorvente para estancar, como vou estudar? 

Se não há estrutura para que se possa menstruar com dignidade em casa, o ambiente escolar pode não ser diferente. De acordo com o Censo Escolar da Educação Básica, do Ministério da Educação (MEC) em 2019, 3,5 mil escolas públicas não tinham banheiros, o que representava 2,4% do total. Em 2020, aumentou para 4,3 mil, 3,2% do total. Uma pesquisa realizada em 2020, pela Toluna, apontou que uma a cada quatro meninas já faltou aula por não dispor de absorvente.

O relatório “Livre para menstruar” nos convida para importante reflexão: para além da menina que não vai para a escola devido à menstruação, o quanto este período mensal impacta o aprendizado? Qual o nível de atenção que podemos despender se estamos na iminência de um vazamento, ou se não sabemos se na próxima troca de absorvente teremos disponíveis papel higiênico, água na pia e lixo para o descarte? 

Uma escola bem preparada pode ressignificar a relação da menina com a menstruação. Pode oferecer conforto e acolhimento, tanto do ponto de vista material, com o fornecimento dos itens de higiene, quanto psicológico, de aceitação do próprio corpo e desmistificação da menstruação. 

E o Estado com isso?

Um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é a dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da Constituição Federal Brasileira) que se concretiza, ainda que neles não se esgote, com a garantia dos direitos fundamentais, dentre os quais estão os direitos sociais, que englobam o direito à saúde.

É dever do Estado, portanto, garantir, por meio das políticas públicas, que esses direitos estejam presentes na vida de todo cidadão e cidadã. Contudo, quando falamos de políticas públicas voltadas para as mulheres e população LGBTQIA+, ainda há muito o que ser feito

Em 2013, o Governo Dilma ampliou o rol de itens de primeira necessidade que compõem a cesta básica, incluindo também produtos de higiene, como papel higiênico e cesta básica, zerando a tributação (PIS/COFINS e IPI) sobre esses itens. O absorvente, apesar de sua inegável necessidade, não entrou nessa lista.

Atualmente tramitam no legislativo diversos projetos de lei sobre o tema. Dentre eles, citamos o projeto de lei 61/21, de autoria da deputada Rejane Dias (PT-PI), que prevê a distribuição gratuita de absorventes higiênicos para mulheres em situação de vulnerabilidade de extrema pobreza, e o projeto de lei 4968/19, de autoria da deputada Marília Arraes (PT/PET), que prevê a obrigatoriedade da distribuição de absorventes higiênicos para todas as alunas de escolas públicas de nível fundamental e médio. 

No Distrito Federal foi criada a Lei n.º 6.779 de 2021, por iniciativa da deputada Arlete Sampaio (PT) em conjunto com a Fundação Girl Up. A Lei garante o acesso a insumos e absorventes higiênicos a pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e social em unidades básicas de saúde, e a adolescentes nessas condições nas escolas da rede pública de ensino. 

Por outro lado, os projetos de lei que tratam da reforma tributária, especialmente o projeto de emenda Constitucional (PEC 45), aumentam a tributação para as mulheres, especialmente as chefes de família e pobres. É o que aponta o estudo do Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Para as pesquisadoras, o principal problema está em reformar o sistema, passando a prever uma alíquota única para o consumo, sem distinção, atingindo, inclusive, os itens de primeira necessidade da cesta básica.

Para as pesquisadoras, caso aprovado, o projeto vai aumentar a desigualdade de gênero. No estudo, elas propõem soluções, dentre elas a isenção do PIS, da COFINS e do IPI sobre absorventes, fraldas, contraceptivos e medicação hormonal utilizada no tratamento da menopausa e redesignação sexual. 

Não podemos parar 

Em 2015, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Agenda 2030, com 17 objetivos globais, para promover o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza. Foram definidas 169 metas globais, com foco no planeta, na prosperidade e na paz mundial. As metas para o alcance da desigualdade de gênero estão concentradas no Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5. O Brasil comprometeu-se com essas metas, mas o que o nosso país está fazendo para promover o seu cumprimento? 

O Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030 elabora, anualmente, o Relatório Luz, que analisa indicativos de avanços e retrocessos a nível nacional. No ano de 2020, o relatório apontou que o Brasil vem retrocedendo na garantia dos direitos das mulheres, com um desmonte das políticas públicas. Entre 2014 e 2019, houve redução de 75% dos recursos do Programa de Políticas para as Mulheres. O relatório apontou, ainda, que a pandemia do novo coronavírus escancara as desigualdades de gênero. Segundo o relatório, a desigualdade de gênero se expressa também na representação política, abaixo até do patamar da própria América Latina.

Diante deste cenário podemos concluir que ainda há muito a ser feito para combater a desigualdade de gênero e garantir a dignidade a todas as pessoas. Cabe mais uma uma vez invocar um dos objetivos fundamentais da Constituição Federal: erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outra forma de discriminação. 

Para conseguirmos dar efetividade a todos esses direitos e garantias e cumprir as metas com as quais o Brasil se comprometeu, é necessário representatividade frente às políticas públicas. Cabe também a cada um de nós, enquanto cidadãos e cidadãs, cobrar das autoridades a efetivação dos direitos, nos engajarmos com as questões sociais e nos atentarmos para os males que atingem quem está à margem da sociedade. 

Não podemos admitir que jovens tenham prejuízo escolar por terem nascido com um corpo que menstrua.

O Instituto Aurora realiza atividades em prol da igualdade de gênero, e você pode saber mais sobre o nosso compromisso com o ODS 5.

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Algumas referências que usamos neste artigo:

IV RELATÓRIO LUZ

Propostas de reforma tributária aumentam a desigualdade de gênero, diz pesquisa

Pobreza Menstrual: Uma Questão de Saúde Pública, Equidade de Gênero e Direitos Humanos

Projeto prevê distribuição gratuita de absorventes para mulheres em situação de vulnerabilidade 

Projeto amplia lista de itens de higiene pessoal com isenção de tributos

Pontes ou muros: o que você têm construído?
Em um mundo de desconstrução, sejamos construtores. Essa ideia foi determinante para o surgimento do Instituto Aurora e por isso compartilhamos essa mensagem. Em uma mescla de história de vida e interação com o grupo, são apresentados os princípios da comunicação não-violenta e da possibilidade de sermos empáticos, culminando em um ato simbólico de uma construção coletiva.
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Quem é você na Década da Ação?
Sabemos que precisamos agir no presente para viver em um mundo melhor amanhã. Mas, afinal, o que é esse mundo melhor? É possível construí-lo? Quem fará isso? De forma dinâmica e interativa, os participantes serão instigados a pensar em seu sistema de crenças e a vivenciarem o conceito de justiça social. Cada pessoa poderá reconhecer suas potencialidades e assumir a sua autorresponsabilidade.
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A vitória é de quem?
Nessa palestra permeada pela visão de mundo delas, proporcionamos um espaço para dissipar o medo sobre palavras como: feminismo, empoderamento feminino e igualdade de gênero. Nosso objetivo é mostrar o quanto esses termos estão associados a grandes avanços que tivemos e ainda podemos ter - em um mundo em que todas as pessoas ganhem.
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Liberdade de pensamento: você tem?
As projeções para o século XXI apontam para o exponencial crescimento da inteligência artificial e da sua presença em nosso dia a dia. Você já se perguntou o que as máquinas têm aprendido sobre a humanidade e a vida em sociedade? E como isso volta para nós, impactando a forma como lemos o mundo? É tempo de discutir que tipo de dados têm servido de alimento para os robôs porque isso já tem influenciado o futuro que estamos construindo.
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Formações customizadas
Nossas formações abordam temas relacionados à compreensão de direitos humanos de forma interdisciplinar, aplicada ao dia a dia das pessoas - sejam elas de quaisquer áreas de atuação - e ajustadas às necessidades de quem opta por esse serviço.
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Consultoria em promoção de diversidade
Temos percebido um movimento positivo de criação de comitês de diversidade nas instituições. Com a consultoria, podemos traçar juntos a criação desses espaços de diálogo e definir estratégias de como fortalecer uma cultura de garantia de direitos humanos.
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Minha empresa quer doar

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    Depoimento de professora de Campo Largo
    Em 2022, nosso colégio foi ameaçado de massacre. Funcionárias acharam papel em que estava escrito o dia e a hora que seria o massacre (08/11 às 11h). Também tinha recado na porta interna dos banheiros feminino e masculino. Como gestoras, fizemos o boletim de ocorrência na delegacia e comunicamos o núcleo de educação. A partir desta ação, todos as outras foram coordenadas pela polícia e pelo núcleo. No ambiente escolar gerou um pânico. Alunos começaram a ter diariamente ataque de ansiedade e pânico. Muitos pais já não enviavam os filhos para o colégio. Outros pais da comunidade organizaram grupos paralelos no whatsapp, disseminado mais terror e sugestões de ações que nós deveríamos tomar. Recebemos esporadicamente a ronda da polícia, que adentrava no colégio e fazia uma caminhada e, em seguida, saía. Foram dias de horror. No dia da ameaça, a guarda municipal fez campana no portão de entrada e tivemos apenas 56 alunos durante os turnos da manhã e tarde. Somente um professor não compareceu por motivos psicológicos. Nenhum funcionário faltou. Destacamos que o bilhete foi encontrado no banheiro, na segunda-feira, dia 31 de outubro de 2022, após o segundo turno eleitoral. Com isto, muitos estavam associando o bilhete com caráter político. A polícia descartou essa possibilidade. Enfim, no dia 08, não tivemos nenhuma ocorrência. A semana seguinte foi mais tranquila. E assim seguimos. Contudo, esse é mais um trauma na carreira para ser suportado, sem nenhum olhar de atenção e de cuidado das autoridades. Apenas acrescentamos outras ameaças (as demandas pedagógicas) e outros medos.
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