As expressões artísticas, como a literatura, podem ser compreendidas como direitos humanos. Além disso, a literatura, ao nos colocar em contato com diferentes realidades, possibilita o desenvolvimento da empatia.
Por Mayumi Maciel, para o Instituto Aurora
(Foto: Luiz Dorabiato)
Quando falamos sobre direitos humanos, é comum, num primeiro momento, associarmos a direitos que nos garantam uma vida digna, pensando em necessidades de sobrevivência: alimentação adequada, saúde, saneamento básico, moradia. Mas precisamos lembrar que os direitos humanos englobam também necessidades que podem, à primeira vista, parecer mais subjetivas, como afetos (de amizade e familiares), liberdade de pensamento e expressão e acesso a manifestações artísticas, entre elas, a literatura. É partindo daí que podemos entender a literatura como direito humano.
O que vamos abordar neste artigo:
- A literatura como direito humano
- Literatura e empatia
- Como usamos a literatura nas atividades do Instituto Aurora?
- O que a literatura desperta?
Atualizado em 12/04/2023. Publicado em 07/05/2021.
A literatura como direito humano
Em seu ensaio O direito à literatura, o intelectual Antonio Candido defende que a literatura humaniza, permitindo com que desenvolvamos a nossa individualidade inseridos em um contexto que representa o coletivo. E, por isso, para ele, a literatura também é um direito humano.
Candido nos faz uma pergunta central: o que é indispensável para nós? Ele sugere que o indispensável não é apenas aquilo que assegura a sobrevivência física em níveis decentes, como o alimento para a necessidade da fome, mas também aqueles bens que garantem o atendimento de outras necessidades da integralidade humana. Por exemplo, as necessidades psicossociais, que podem ser atendidas na construção de relacionamentos interpessoais; e as necessidades de autorrealização, que podem ser supridas pelo exercício da capacidade de imaginar, desenvolver o autoconhecimento e a empatia.
No artigo brasileiro O direito ao (in)compressível: arte, cidade, paisagem e transformação social, vemos o pensamento de Antonio Candido sendo ampliado pelos autores Catharina Lima, Elaine de Albuquerque, Gabriel Lima e Hulda Wehmann. Eles nos lembram do contexto em que o ensaio foi escrito, que era o do início da redemocratização do Brasil, no ano de 1988. Afirmam que, para Candido, a literatura simboliza a reivindicação de outros direitos, como o da educação de qualidade, possibilitando com que as pessoas saibam ler, e trabalho com cargas horárias justas, oportunizando um tempo livre e de descanso para mente, em que a literatura e outras artes poderiam ser apreciadas.
Na literatura, além do conhecimento que vem da visão de mundo do autor, há também níveis de conhecimento intencional, que são planejados por quem escreve e conscientemente assimilados por quem lê. A pesquisadora em estudos linguísticos Fabiane Pereira afirma que a literatura fomenta a imaginação, a criticidade e a humanização, tornando as pessoas mais participativas na sociedade e com potencialidade para compreender o outro. Para ela, isso, sim, é um verdadeiro direito.
Literatura e empatia
Alguns pesquisadores têm estudado a relação entre ficção e empatia, mostrando que à medida que a ficção simula uma espécie de mundo social, ela provoca uma maior compreensão dos dilemas e sentimentos de outras pessoas, desenvolvendo empatia. Dentre esses pesquisadores está o psicólogo canadense Keith Oatley. Ele nos traz a ideia de que quando somos apresentados a uma situação com a qual não temos necessariamente contato, estamos sendo estimulados a uma nova visão de uma realidade diferente da nossa, o que possibilita com que possamos enxergar questões sociais de uma forma mais próxima e até mesmo pessoal.
Complementar a essa ideia, a historiadora Lynn Hunt, nascida no Panamá e criada nos Estados Unidos, dedica alguns capítulos do seu livro A invenção dos direitos humanos para narrar como, no século XVIII, os leitores de romances aprenderam a estender o seu alcance de empatia. Ela afirma que a empatia era comumente reservada aos seus pares – pessoas que pertencessem ao seu convívio e a sua classe social. Por meio da leitura de romances como Pamela e Clarissa, de Samuel Richardson, e Júlia, de Jean-Jacques Rousseau, despertou-se um sentimento de empatia que ultrapassou as fronteiras sociais. As perspectivas de Hunt nos fazem vislumbrar que, com o envolvimento nas histórias, os leitores se tornam mais conscientes da capacidade que existe em si próprios, e também da capacidade que existe nas outras pessoas.
A leitura de romances não foi a única forma de se adquirir capacidade de identificação por meio de linhas sociais, mas foi bastante importante neste processo. A finalização da leitura de uma obra pode nos despertar para a percepção da individualidade que os outros possuem e, ao mesmo tempo, fazer com que sejamos levados para a nossa própria individualidade.
Como usamos a literatura nas atividades do Instituto Aurora?
Aqui no Instituto Aurora aliamos diversas modalidades artísticas às nossas atividades de educação em direitos humanos. Por esse potencial de desenvolvimento de empatia e possibilidade de entrar em contato com outras realidades, ou com sentimentos que trazemos dentro de nós, a literatura se faz presente em projetos como:
Aurora Clube do Livro
O Aurora Clube do Livro teve início em 2019, com o objetivo de discutir diversos assuntos relacionados a direitos humanos a partir da leitura de um livro pré-estabelecido, com encontros mensais, gratuitos e abertos ao público. A ideia é que a discussão extrapole a trama da obra, e que todas e todos possam contribuir com suas reflexões e vivências. As reuniões são mediadas por uma integrante do Instituto Aurora, com o objetivo de facilitar a conversa.
A escolha das leituras do ano é feita de forma minuciosa, para que a discussão sobre temas relacionados a direitos humanos seja pertinente, e para que as pessoas participantes entrem em contato com uma diversidade de realidades, com autores e autoras de diferentes etnias, temas variados e valorização da produção nacional. A curadoria de livros é pensada de forma que possa estimular a discussão de assuntos que são importantes para o Instituto Aurora, como desigualdades e preconceitos, aliados a diferentes temas retratados nos enredos das obras.
Sempre que possível, também é feita uma conexão entre o tema do livro e temas mais evidentes naquele mês do ano. Por exemplo, em 19 de junho é celebrado o Dia do Migrante, e neste mês, em 2019, lemos No Seu Pescoço, de Chimamanda Ngozie Adichie, livro que traz a temática da migração em vários de seus contos.
Em 2021, o Clube do Livro passou a ter um formato de leitura coletiva. Todo mês, era feita uma votação no perfil no Instagram do Instituto Aurora, para escolha do livro do mês seguinte, que também ganhava uma resenha em nosso blog.
O projeto foi descontinuado em 2022, mas continua servindo como base para outras ações do Instituto Aurora.
Rodas de leitura
A ideia de rodas de leitura surgiu como uma derivação do Clube do Livro, com o objetivo de ser uma prática coletiva que não demandasse uma leitura prévia, e que mesmo assim possibilitasse a discussão de assuntos relacionados a direitos humanos, a partir da literatura.
Até o momento, o Instituto Aurora realizou rodas de leitura com meninas adolescentes e mulheres, para falar sobre temas como autoestima e empoderamento, relacionamentos saudáveis e relacionamentos abusivos. A atividade foi mais voltada para a questão de reconhecimento, nos textos literários, de situações similares pelas quais as adolescentes e mulheres já haviam passado.
Para as rodas de leitura, foram utilizados contos de Marina Colasanti e Jarid Arraes, e poesias de Rupi Kaur, autoras cujas obras foram lidas no Aurora Clube do Livro. Após a leitura coletiva, as participantes foram convidadas a refletir sobre as mensagens dos textos, compartilhar experiências pessoais e sentimentos.
Biblioteca Mais Plural
Biblioteca Mais Plural foi outro projeto derivado do Aurora Clube do Livro e de nossas experiências com rodas de leitura no Cense Joana Richa. O objetivo foi, por meio da literatura e do diálogo, promover o respeito às diferenças e a ampliação da visão de mundo de jovens atendidas de centros de atendimento socioeducativo, instituições de acolhimento e organizações da sociedade civil, bem como das próprias educadoras e educadores.
O projeto é dividido em duas atividades principais: a ampliação dos acervos de livros dos centros de atendimento socioeducativo, instituições de acolhimento e organizações sociais com obras que representam a pluralidade e a diversidade, doadas por pessoas físicas e jurídicas parceiras; e a capacitação de servidores e servidoras responsáveis pelas bibliotecas e/ou designados para realizar atividades periódicas de rodas de leitura e diálogo com as adolescentes e mulheres atendidas.
O que a literatura desperta?
Com os encontros e o relato de participantes dos clubes, pudemos perceber alguns efeitos despertados pela leitura e pela discussão das obras. Em alguns casos, ocorre a percepção de realidades diferentes daquela em que se vive, permitindo o conhecimento de novas culturas e a descoberta de problemas sociais para os quais ainda não se havia atentado. Em outros casos, ocorre uma identificação com a história das personagens da obra – reconhecimento de situações de preconceito em comum, por exemplo.
Há ainda os casos em que, mesmo que a história ocorra numa realidade diferente daquela do leitor, há uma identificação nas necessidades que nos unem enquanto humanidade, como a de nos sentirmos pertencentes ao local em que vivemos, de sermos amados, de termos uma família.
Além disso, a transformação da experiência individual da leitura numa experiência coletiva propicia uma nova relação com a obra. Participantes relataram um grande interesse em ouvir o que as outras pessoas tinham a dizer sobre os livros, como haviam sido tocadas por eles, e a conhecer suas histórias pessoais e visões de mundo.
Se você quiser conhecer mais projetos do Instituto Aurora, acesse nossa seção Portfólio!
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Algumas referências que usamos neste artigo:
NIETO, Marya. Ler ficção nos torna mais empáticos. El País, 2016. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/18/cultura/1468850653_180510.html>.
HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários Escritos. São Paulo: Ouro Sobre Azul, 2004.
LIMA, Catharina P. C. S.; ALBUQUERQUE; Elaine M. de; LIMA, Gabriel C. dos Santos, WEHMANN, Hulda Erna. O direito ao (in) compressível: arte, cidade, paisagem e transformação social. In: RUA [online]. nº. 23. Volume 2, p. 291 – 309 – e-ISSN 2179-9911 – Novembro/2017. Consultada no Portal Labeurb – Revista do Laboratório de Estudos Urbanos do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade. http://www.labeurb.unicamp.br/rua/
PEREIRA, Fabiane Aparecida. O direito à literatura: “sonho acordado” das civilizações. Revista Primeira Escrita, Aquidauana, n. 3, p. 175-189, dez. 2016.