O direito à verdade e à memória valoriza essas virtudes que impedem que os erros do passado se tornem tão insignificantes a ponto de serem repetidos no futuro.
Por Felipe Pinheiro, para o Instituto Aurora
(Foto: Joédson Alves / Agência Brasil)
Em uma de suas últimas aparições públicas, João Baptista de Oliveira Figueiredo, último presidente do regime militar antes da redemocratização do Brasil, insatisfeito com a situação política do país na proximidade do fim de seu mandato, solicitou que fosse apagado da memória coletiva a partir da entrega do poder de volta à população: “Peço ao povo que me esqueça”.
Como era de se esperar, o período da ditadura militar, assim como outros tantos eventos traumáticos na história brasileira, não foi esquecido e, ainda hoje, serve de base para movimentos em favor da efetivação do direito à verdade e à memória.
Tanto a verdade quanto a memória são critérios fundamentais para viabilizar a vida em sociedade. Se de um lado a memória é essencial para atribuir sentido ao mundo e construir a identidade de cada pessoa e da coletividade, de outro, a obrigação de dizer a verdade é condição para que as pessoas acreditem umas nas outras e consigam estabelecer laços sociais. Afinal, o que seria do mundo se as informações não fossem confiáveis?
Nesse artigo, vamos entender um pouco sobre o direito à verdade e à memória e os principais desafios para sua efetivação no Brasil.
Tópicos do artigo:
- O que é direito à verdade e à memória?
- Como a educação em direitos humanos pode contribuir para a efetivação do direito à verdade e à memória?
Publicado em 25/10/2023.
O que é direito à verdade e à memória?
Investigar o passado é uma importante maneira de resgatar a memória e compreender os eventos que influenciaram nossa formação como indivíduos e sociedade. O exame do passado, portanto, é fundamental para a construção da identidade de cada pessoa e para a consolidação da identidade cultural de um povo.
Nesse sentido, o direito à verdade e à memória tem como finalidade trazer justiça e veracidade na transmissão da experiência histórica para que, a partir da compreensão do passado e de sua oficialização por mecanismos oficiais, a sociedade tenha bases sólidas e confiáveis para construir sua trajetória.
Trata-se, portanto, de um direito inalienável de uma pessoa ou um povo lembrar de seu passado a partir da revisitação de fatos e documentos históricos, bem como das impressões de quem participou desses eventos.
Apesar de amplamente – e corretamente – relacionado ao período da ditadura militar vivida no Brasil (1961-1988), o direito à verdade e à memória tem origem em um conceito mais amplo denominado “justiça de transição”. Criado nos EUA, em 1991, essa ideia tem como objetivo promover a reconciliação de sociedades que tenham passado por experiências traumáticas, buscando a efetivação da justiça e responsabilização dos agentes que violaram os direitos da população, além do resgate e reconhecimento oficial dessas histórias pelo Estado.
Seus fundamentos jurídicos e filosóficos podem ser encontrados já ao final da 2ª Guerra Mundial, no Tribunal de Nuremberg, que resgatou os fatos e julgou as atrocidades cometidas contra a humanidade pelo regime nazista.
Direito à verdade e à memória no Brasil
Ainda que bastante discutido no meio acadêmico e por movimentos sociais organizados pela sociedade civil, o direito à verdade e à memória ainda é pouco efetivo no Brasil. Sua força é hegemonicamente construída de “baixo para cima”, de forma que o tema ainda sobrevive por ato de resistência da própria população.
Diante da Lei da Anistia (Lei nº 6.638/79), decretada nos últimos anos do regime militar, foi concedido perdão a todas as pessoas que cometeram crimes políticos ou por motivações políticas durante o período da ditadura militar, inclusive aqueles cometidos por agentes do Estado. Houve, portanto, a deturpação da ideia defendida pela população em favor de uma anistia “ampla, geral e irrestrita”.
Se, por um lado, a lei permitiu que pessoas exiladas retornassem ao país, por outro se traduziu em verdadeira impunidade ao autoritarismo do Estado brasileiro. Sob a justificativa da “pacificação nacional”, a Lei da Anistia se valeu de uma interpretação ampla para considerar como crimes políticos os atos atrozes cometidos pelos membros do regime autoritário. Com isso, ocasionou uma deturpada “anistia bilateral”.
A consequência disso foi a ocultação de fatos, documentos e nomes de agentes que cometeram crimes contra a humanidade, bem como de seus respectivos mandantes. A decretação de sigilo sobre os eventos ocorridos durante a ditadura militar traduz uma estratégia de esquecimento que, ao negar a violação de direitos humanos, dificulta a reflexão da sociedade sobre os eventos ocorridos, favorecendo a repetição dessas violações e a generalização de atos de violência.
O esquecimento coletivo e a falta de criticidade em relação ao passado favorecem a formação de um povo sem memória e uma sociedade sem limites. Os efeitos dessa amnésia coletiva podem ser vistos diariamente, seja em movimentos que clamam pelo retorno do país a uma ditadura militar, à falta de transparência na destinação de verbas públicas e na permissividade da população brasileira em relação a seus algozes.
Essa deficiência moral se traduz em escolhas diárias, principalmente na falta de criticidade na política. Daí porque o exercício do direito ao voto responsável é tão importante.
Obstáculos para a efetivação do direito à memória e à verdade
Os maiores obstáculos para a efetivação do direito à memória no Brasil estão relacionados à Lei da Anistia e sua interpretação. Ao conceder uma anistia bilateral, a lei acabou favorecendo a ocultação de anos de história. É como se, de um dia para o outro, quase 30 anos de história tivessem sido apagados da memória do país.
Como é de se esperar, essa ficção de esquecimento não funciona além do papel. Além de cultuar torturadores e criminosos e ocultar registros da repressão, essa medida favorece a criação de uma cultura permissiva e negligente, em que se enaltecem os esforços e a conduta moral exemplar de países desenvolvidos, enquanto se acovarda na hora de reproduzi-los em território nacional.
Apesar dos obstáculos, lenta e burocraticamente o Brasil vem avançando na efetivação do direito à memória e à verdade. Nesse prisma, destacam-se a implementação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (Lei nº 9.140/95), que reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro por mortes e desaparecimentos durante o regime militar, e a Comissão de Anistia (Lei nº 10.559/02), que buscou reparar esses atos.
Com a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2012, cujo objetivo é investigar violações a direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro entre os anos de 1937 e 1985, foi elaborado um relatório requerendo a responsabilização administrativa, civil e criminal de 377 pessoas.
A ignorância e o esquecimento nunca serão benéficos para nenhuma pessoa ou sociedade. A verdade liberta e impede que os erros do passado se tornem tão insignificantes a ponto de serem enaltecidos ou repetidos no futuro.
Como a educação em direitos humanos pode contribuir para a efetivação do direito à verdade e à memória?
A educação em direitos humanos é uma educação focada em valores. Isso significa que educar é muito mais do que letramento e não está necessariamente relacionado a um processo formal de transmissão de conhecimento.
Os valores, por sua vez, são um conjunto de análises qualitativas das situações que servem para guiar as decisões de uma pessoa ou de uma sociedade. Atribuir valor a algo significa um processo mental de interpretação dos acontecimentos a partir de um conjunto de regras (jurídicas e morais) e experiências próprias dos seres humanos.
Portanto, há uma relação de dependência entre a educação em direitos humanos e a efetivação do direito à verdade e à memória, na medida em que a educação em valores é precedida pela valoração de diversos eventos, incluindo eventos históricos fundamentais para a criação da identidade de um indivíduo e de um povo.
Ao mesmo tempo, a valoração e sua posterior transmissão a partir do resgate da memória e da verdade depende de uma pessoa apta a pensar além de seus próprios interesses e interpretar esses acontecimentos a partir dos princípios de solidariedade.
Os princípios que regem uma sociedade pautada na efetivação de direitos humanos dependem do resgate confiável dos acontecimentos históricos, ao mesmo tempo que os acontecimentos históricos precisam de pessoas aptas a interpretá-los de maneira condizente com o espírito de seu povo.
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Algumas referências que usamos neste artigo:
Lei da Anistia. Lei nº 6.683/79.
Gallo, C. A. (2010). O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE NO BRASIL PÓS-DITADURA CIVIL-MILITAR. Revista Brasileira De História & Ciências Sociais, 2(4).