A violência obstétrica é uma realidade no Brasil, e no cárcere não é diferente. Neste artigo, trazemos dados sobre as mulheres em situação de cárcere no país – especialmente aquelas que são mães – e de que forma os direitos dessas mulheres e seus filhos poderiam ser melhor assegurados e não violados.
Por Brenda Lima, para o Instituto Aurora
No Brasil, existem inúmeras leis de defesa de direitos das mulheres mães – entendendo-se por mãe, nesse contexto, todas as mulheres gestantes, puérperas (no período pós-parto), lactantes (que amamentam) e adotantes. Mesmo existindo várias regiões, grupos voluntários e ONGs que se preocupam em realizar ações em prol desse grupo, a violência obstétrica é uma realidade cotidiana, muitas vezes velada, que faz vítima 1 a cada 4 mulheres.
Diários são os relatos de mães que tiveram seus direitos violados em algum momento do gestar e/ou do maternar, sendo possível observar essa questão com uma breve pesquisa em jornais ou sites de notícias. Inúmeros são os indicadores dessas violências. Diversos são os órgãos que tratam essa questão, a nível nacional e internacional. Contudo, apesar de toda atenção e visibilidade que esse problema vem recebendo, ainda são recorrentes os relatos de violação desses direitos.
Ainda que esse tema seja tão caro às áreas que se dedicam a estudá-lo, nota-se que, no Brasil, quando essa questão é observada dentro de uma perspectiva de cárcere, o preço é ainda mais alto e as violações encontram pormenores relacionados a raça, gênero e classe social.
Tópicos deste artigo:
- A população prisional feminina e as mães no cárcere
- A violência obstétrica no cárcere
- Como mudar esse cenário?
Publicado em 19/01/2022.
A população prisional feminina e as mães no cárcere
Atualmente o Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking de países que mais encarceram no mundo, possuindo uma população prisional de 748.009 pessoas, segundo registros do INFOPEN num período de julho a dezembro de 2019.
Embora alguns veículos da mídia tenham noticiado que em 2021 houve uma redução do número de encarcerados no sistema prisional brasileiro, as informações constantes no site da INFOPEN mais recentes datam de 2019. E, mesmo que haja essa redução, o Brasil continua na mesma colocação do ranking e a superlotação do sistema ainda é uma realidade, já que o déficit nas unidades prisionais ultrapassa as 300 mil vagas.
Ainda de acordo com dados do INFOPEN, 104.019 pessoas privadas de liberdade têm um filho, porém, na aba que consta essa informação não há menção específica sobre a maternidade no cárcere. Contudo, em outro campo, dos estabelecimentos prisionais para mulheres, num período de julho a dezembro de 2019, observa-se que 1.446 é o número de filhos inseridos no cárcere, entre nascidos, gestantes e lactantes.
O Código Processual Penal traz previsão legal de substituição de prisão preventiva para domiciliar para que mulheres que são mães, a depender de alguns requisitos:
Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:
III – imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência;
IV – gestante;
V – mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos;
Art. 318-A. A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que:
I – não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa;
II – não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.
O Supremo Tribunal Federal, após solicitação de Habeas Corpus Coletivo nº 143.461 pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu), julgou no dia 20 de fevereiro de 2018, no mesmo sentido do texto de lei, para que encarceradas provisórias por crimes não violentos sejam contempladas com a privação de liberdade em regime domiciliar e não em instituições públicas de cárcere. Uma das justificativas do pedido aponta o Marco Legal da Primeira Infância, regulamentado pela Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016, além do aumento de prisões preventivas e a precariedade de acesso à saúde, principalmente às gestantes e puérperas.
Contudo, não se sabe quantas mulheres foram alcançadas por essa decisão, que se dá somente à modalidade de prisões provisórias, não contemplando as encarceradas por sentenças condenatórias. Observa-se no site do INFOPEN que de julho a dezembro de 2019, 12.441 mulheres são presas provisórias, mas como há uma defasagem da alimentação de dados do site, não há como saber se estas presas provisórias foram contempladas pela decisão deste Habeas Corpus Coletivo, ou ainda se suas defesas trabalharam nesse sentido.
Porém, considerando que cerca de 3.171 mulheres têm penas atribuídas de 0 meses a 4 anos, o que as possibilita regime inicial aberto e também, considerando que o índice maior das prisões se dá por crime de tráfico de drogas, essas mulheres-mães poderiam estar em prisão domiciliar, visando o cuidado e convívio com seus filhos, prezando pelo Princípio do Melhor Interesse da Criança, que se origina da Doutrina da Proteção Integral contemplada no Estatuto da Criança e do Adolescente, o que minimizaria o afastamento entre mães e filhos, e ainda evitaria que crianças crescessem em um ambiente hostil, como é o do cárcere.
A violência obstétrica no cárcere
Esse ambiente hostil do cárcere faz vítima não só as mulheres-mães, ele penaliza as crianças violando seus direitos, como o caso de Enrico, filho de Jessica Monteiro, presa grávida que deu à luz a seu terceiro filho encarcerada, sendo ferido o direito à liberdade de Enrico com apenas um dia de vida. Além do direito à liberdade violado, a Enrico e sua mãe foi negada uma assistência humana com a exposição de ambos a uma cela insalubre, em uma instituição que não deve abrigar crianças de qualquer idade.
A realidade de Jessica se repete todos os dias. Fora do cárcere já existem relatos de violações de direitos, nos quais mulheres são expostas a procedimentos não recomendados pela Organização Mundial da Saúde e pelo Ministério da Saúde, como manobras de kristeller (aplicação de pressão no útero com o objetivo de facilitar a saída do bebê) e até mesmo episiotomias sem indicação (aumento da abertura vaginal por uma incisão no períneo no momento do parto). Dentro do cárcere as mulheres são punidas duas vezes: pelo seu crime e por ser uma mulher que gesta, numa sociedade onde ser mãe é cobrado de todas, mas não é compreendido por quase ninguém, nem pelas próprias mulheres que já são mães.
Embora incompatível com os direitos previstos para as mulheres, cerca de um terço das grávidas do sistema prisional relatam ter sido algemadas na hora do parto, o que é grave. Em relação ao acompanhamento do pré-natal, cerca de 55% delas relatam que o fizeram menos do que o recomendado pelos médicos, pois o acesso à saúde é escasso no ambiente carcerário.
Para agravar esse cenário e demonstrar a falta de assistência, 4,6% das crianças nasceram com sífilis congênita, porém um percentual considerável de detentas não foram diagnosticadas com sífilis durante a gestação. Além de relatos de violências físicas, há também relatos de violências psicológicas e verbais, num momento de mais vulnerabilidade que, somado ao cárcere e ao medo da separação de seus filhos, pode levar essas mulheres a doenças psicológicas intensas logo após darem à luz.
No período atual, se a prisão feminina já era difícil, considerando a pandemia da Covid-19, a situação piorou. Com a suspensão das visitas e períodos de convivência, por conta dos riscos de contaminação, das presas é tirado o direito de ver seus filhos e ainda, suas mães, que na maioria dos casos são a rede de apoio que encontram e é para onde conseguem enviar seus filhos logo após darem à luz, ou ainda, após os seis meses de vida, para que as crianças sejam inseridas na sociedade e saiam do ambiente do cárcere.
Embora o Marco Legal da Primeira Infância, que assegura o direito às presas gestantes ou com filhos menores de 12 anos responderem seus processos em liberdade provisória ou prisão domiciliar tenha sido aprovado em 2016, e mesmo que a decisão já mencionada acima do Supremo Tribunal Federal tenha dado força a esse entendimento, esse direito assegurado ainda não é exercido integralmente e poderia contemplar cerca de 70% da população carcerária feminina. Mas como segue negligenciado, violações de direitos da criança continuam sendo praticadas e elas continuam tendo suas vidas e desenvolvimento marcadas pela negativa do Sistema Judiciário Brasileiro.
Como mudar esse cenário?
Para que esse cenário melhore e os direitos assegurados sejam plenamente garantidos e não violados, os agentes penitenciários, bem como os profissionais da saúde, deveriam receber cursos e orientações atualizadas, além de capacitação profissional para saber lidar com cada particularidade desse sistema. Ainda, as mulheres gestantes deveriam ser orientadas e educadas para que reconheçam e saibam seus direitos e os exijam nos momentos oportunos.
A sociedade vive um retrocesso nas práticas médicas relacionadas ao parto, visto a quantidade de relatos de violência obstétrica. O Poder Público deveria se debruçar em análise e desenvolver políticas públicas para otimizar o sistema e dar a essas mulheres uma condição mais humana de gestar e parir.
Cabe ainda ao Poder Público a capacitação dos agentes penitenciários, bem como de todo o judiciário que atua direta e indiretamente nessas situações e, como forma mais efetiva de alcance à toda população, disseminar informações reais e alimentar os canais de busca dessas informações, pois há uma defasagem e omissão muito grandes desses dados.
Nós, do Instituto Aurora, realizamos atividades em prol da igualdade de gênero. Você pode saber mais sobre a nossa visão em relação ao ODS 5.
Acompanhe o Instituto Aurora nas redes sociais: Instagram | Facebook | Linkedin | Youtube