Por Roberto Mesquita
O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 18 — Igualdade Racial — é uma iniciativa voluntária do Brasil que complementa os 17 ODS da Agenda 2030 da ONU, com foco na promoção de direitos sociais sustentáveis para a população negra.
O percurso histórico do povo negro no país evidencia não apenas a urgência de políticas capazes de reduzir a desigualdade étnico-racial que limita o acesso a direitos, mas também a importância de ações públicas voltadas ao desenvolvimento social. Trata-se, portanto, de um objetivo que articula justiça racial, cidadania e sustentabilidade como partes inseparáveis de um mesmo projeto de futuro.
Contexto histórico
Ao iniciar a discussão sobre o ODS 18 — Igualdade Racial — é fundamental estabelecer uma conexão direta com um dos elementos centrais da desigualdade no Brasil: o trabalho. Compreender esse objetivo passa, necessariamente, por reconhecer as origens e as trajetórias do trabalho negro no país.
Esse percurso começa ainda no período escravista, instaurado no século XVI e encerrado apenas em 1888. Após a abolição, a população negra liberta foi empurrada para ocupações socialmente desvalorizadas — sobretudo trabalhos braçais, domésticos e atividades rurais — deixando marcas profundas que ainda estruturam o mercado de trabalho contemporâneo.
Ao longo do século XX e início do XXI, o desemprego e a precariedade passaram a marcar de forma persistente os vínculos laborais dessa população, perpetuando desigualdades que ainda se fazem presentes. Esse percurso histórico consolidou o racismo estrutural no país, um sistema que fragiliza a economia, impacta a sociedade como um todo e atinge de forma especialmente severa as pessoas pretas e pardas.
Racismo estrutural e mercado de trabalho
O racismo estrutural refere-se a um conjunto de práticas, normas e dinâmicas sociais que privilegiam determinados grupos raciais em detrimento de outros, mesmo quando não há intenção explícita de discriminação.
No Brasil, onde a população negra representa cerca de 55%, segundo o Censo do IBGE de 2022, o mercado de trabalho ainda favorece a minoria branca, produzindo desigualdades profundas e persistentes.
Esse funcionamento estrutural sustenta uma cultura de desvalorização das pessoas negras diante das pessoas brancas, gerando um antivalor que atravessa a educação, o acesso a oportunidades e a própria organização social. Diante disso, torna-se imprescindível revisar o sistema educacional e repensar a forma como o trabalho é estruturado no país, de modo a construir trajetórias reais de desenvolvimento que enfrentem e superem essas desigualdades históricas.
Educação e impacto no mercado de trabalho
A falta de acesso à educação de qualidade e a baixa escolaridade contribuem para a dificuldade de inserção no mercado de trabalho e para a concentração em ocupações de baixa remuneração, embora já se observe um avanço nesse quadro.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2022, 7,1% da população preta e parda é analfabeta, mais do que o dobro da taxa entre as pessoas brancas (3,2%).
Outra informação relevante diz respeito à infraestrutura escolar. Segundo estudo do Ministério da Educação (MEC), em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), dos 2,3 milhões de estudantes em escolas públicas não possuem infraestrutura mínima, 86% são pessoas negras ou indígenas.
Ao concluir o ensino superior, muitas pessoas negras acabam concentradas em carreiras de menor prestígio social, como o magistério exercido em bairros periféricos — espaços nos quais elas mesmas cresceram e onde suas comunidades estão inseridas. Segundo os dados, cerca de 64,2% das pessoas negras que concluem a graduação escolhem essa área.
Vale destacar que, nos primeiros 22 anos deste século, o número de pessoas pretas com ensino superior completo quintuplicou no Brasil, de acordo com o IBGE. Esse avanço expressivo, impulsionado principalmente pelas políticas de cotas e pelos programas de financiamento estudantil, representa uma transformação histórica no acesso à educação.
No entanto, esse movimento não se refletiu, na mesma proporção, na inserção de pessoas negras no mercado de trabalho formal e qualificado — revelando que o diploma, sozinho, ainda não rompe as barreiras estruturais do racismo.
O aumento expressivo de pessoas negras recém-graduadas não tem sido suficiente para alterar as taxas de ocupação no país. Segundo o estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, do IBGE, em 2022 a desocupação continuava maior entre a população negra: 16,5% entre pessoas pretas e 16,2% entre pessoas pardas, enquanto entre as pessoas brancas o índice era de 11,3%. Ainda assim, os afro-brasileiros representam 56,1% da população total, o que evidencia a dimensão estrutural dessa desigualdade. Quando analisamos a renda, o cenário não é diferente.
Salários e desemprego
De acordo com levantamento do Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (CEDRA), entre 2012 e 2023, o rendimento médio do trabalho principal de pessoas negras correspondeu a apenas 58,3% da renda das pessoas brancas. Ou seja, mesmo com avanços educacionais importantes, o mercado de trabalho segue reproduzindo disparidades que atravessam gerações.
Além do desemprego mais acentuado, o perfil de ocupações da população negra no Brasil revela desigualdades profundas.
De acordo com estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), em 2023, pessoas negras concentram-se em trabalhos de pequenas e microempresas do comércio, enquanto pessoas brancas ocupam postos em lojas mais estruturadas. Somam-se a isso os ofícios braçais e temporários na construção civil, a informalidade e a prestação de serviços com baixa ou nenhuma proteção social, como é o caso dos entregadores.
Além disso, a população negra está mais exposta a situações de trabalho análogo à escravidão, especialmente em setores como a construção civil e o trabalho doméstico — o que evidencia a continuidade de vulnerabilidades históricas e estruturais.
Por fim, a mesma pesquisa evidencia a baixa valorização profissional da população negra. Em 2012, pessoas negras representavam 53% da população, mas ocupavam apenas 31,5% dos cargos gerenciais. Em 2023, esses números passaram para 56,5% da população e 33,7% dos postos de gerência.
Ou seja, enquanto houve um crescimento de 3,5 pontos percentuais na proporção de negros na população, o avanço nos cargos de liderança foi de apenas 2,2 p.p., revelando uma progressão lenta e desproporcional.
Essas desigualdades, quando analisadas em conjunto, reforçam a compreensão de que a população afrodescendente é justamente é uma das que mais demanda políticas públicas capazes de garantir acesso pleno a direitos sociais e de promover, de fato, o exercício integral da cidadania.
Trabalho, raça e direitos sociais no Brasil
Os direitos sociais — previstos na Constituição de 1988 — abrangem educação, saúde, trabalho, moradia, segurança, previdência, lazer, proteção à maternidade e à infância, entre outros. Entre eles, o trabalho ocupa lugar central, pois é a partir de um emprego digno que o cidadão reúne condições para acessar e sustentar os demais direitos.
A realidade vivida por pessoas pretas e pardas evidencia a distância entre o que a Constituição garante e o que se concretiza no mundo do trabalho. Sem a implementação urgente de políticas públicas que enfrentem essas desigualdades, a população negra seguirá fragilizada em seus direitos — e, com ela, toda a sociedade se desestrutura.
É nesse cenário que atuamos no Instituto Aurora: como uma força propulsora de transformação, empenhada em contribuir para a revisão e reconstrução de um sistema que ainda nega direitos a grande parte da população.
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O racismo estrutural também opera na dimensão psicológica e afeta diretamente o setor educacional, repercutindo no mercado de trabalho: setores empregadores passam a se fechar para pessoas negras, que assistem ao desmantelamento gradual de seus direitos sociais.
Nesse contexto, o ODS 18, ao propor melhores condições ocupacionais para trabalhadores negros, recomenda a criação e a articulação de observatórios de trabalho em todo o país — especialmente nos estados onde a população negra é majoritária — para formular e difundir políticas capazes de enfrentar o racismo estrutural.
Esses observatórios devem contar com agentes especializados em marketing, capazes de apoiar vendedores e prestadores de serviços negros cadastrados em seus bancos de dados, ampliando o alcance e a visibilidade de seus negócios. Esses consultores poderiam receber uma remuneração proporcional ao aumento das vendas e à conquista de novos clientes resultantes de seus atendimentos.
Algumas medidas criativas podem ser implementadas, como a criação de um Prêmio Empresa Destaque Contra o Racismo, voltado a organizações privadas de médio e grande porte que contratem, promovam e remunerem pessoas negras de forma justa e equitativa. O prêmio funcionaria como um selo social, podendo inclusive ser valorizado em processos de licitação pública. As empresas vencedoras seriam divulgadas em horário nobre e nas principais mídias digitais, estimulando uma cultura de reconhecimento e compromisso público antirracista.
Diante desse cenário, o ODS 18 se apresenta como uma ferramenta essencial para enfrentar a persistente desigualdade racial no mercado de trabalho brasileiro. Os dados mostram que, apesar dos avanços educacionais, pessoas negras continuam excluídas dos espaços de prestígio, de renda justa e de mobilidade profissional. Por isso, políticas públicas ousadas, combinadas a iniciativas criativas e comprometidas — como os observatórios de trabalho, o incentivo ao empreendedorismo negro e a valorização de empresas antirracistas — tornam-se fundamentais para transformar essa realidade.
Em quem nos inspiramos
BOCCHINI, Bruno. Renda de pessoas negras equivale a 58% da de brancas, mostra estudo. Agência Brasil, 21 mar. 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-03/renda-de-pessoas-negras-equivale-58-da-de-brancas-mostra-estudo. Acesso em: 21 jul. 2025.
BRASIL. Ministério da Educação. MEC divulga pesquisa sobre desigualdade racial na educação. Notícias, 10 jun. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/2024/junho/mec-divulga-pesquisa-sobre-desigualdade-racial-na-educacao. Acesso em: 28 jul. 2025.
BRASIL. Ministério da Igualdade Racial. Conheça o novo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://www.gov.br/igualdaderacial/pt-br/assuntos/ods18. Acesso em: 19 jul. 2025.
CAMARGO, Orson. Conceito de Cidadania. Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/cidadania-ou-estadania.htm. Acesso em 15 jul. 2025.
PNUD. United Nations Development Programme. ODS 18: marca escolhida enfatiza jornada coletiva da luta pela igualdade étnico-racial. Brasil, 20 set. 2024. Disponível em: https://www.undp.org/pt/brazil/news/ods-18-marca-escolhida-enfatiza-jornada-coletiva-da-luta-pela-igualdade-etnico-racial. Acesso em: 21 jul. 2025.
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Renda, pobreza e desigualdade. Apresentação. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/retrato/indicadores/renda-pobreza-e-desigualdade/apresentacao>. Acesso em: 23 jul. 2025.
MARINGONI, G. O destino dos negros após a abolição. São Paulo: IPEA DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO, 2011.
MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de janeiro: Zahar, 1967.
