Como transformar o modelo de economia capitalista em economia de comunhão, ajudando a desenvolver uma sociedade mais justa e equalitária? Numa época em que os valores monetários têm prevalecido em relação aos valores éticos e morais, já se notam mobilizações em favor de ações coletivas e colaborativas. É nesse sentido, de se recuperar a possibilidade de construção de um mundo econômico e social mais justo, que crescem as ações buscando reverter essa tendência de distanciamento entre os indivíduos, como a Economia de Comunhão.
Por Renato Guimarães, para o Instituto Aurora
(Foto: Marlis Trio Akbar / Unsplash)
É notório que, cada vez mais, a distância, o egoísmo e o individualismo têm contribuído para crescimento da desigualdade social como também para desrespeito ao meio ambiente, o que contribui para o crescimento econômico desregrado e o estímulo a um modelo capitalista.
Analisando, de forma breve, o sistema capitalista, percebemos que, por um lado, esse modelo incentiva tanto o consumo exacerbado quanto a disputa pelo poder como sinônimo de felicidade, contrastando com a “guerra de classes” suportadas por outros sistemas politico-sociais. Neste contexto, percebem-se indícios claros do antagonismo social que culmina numa crise moral e ética sem precedentes.
Atualmente, nosso país vive uma polarização entre o certo e o errado, o meu e o seu em detrimento do nosso, sem convergência para um cenário conciliador que construa uma nação mais igualitária e inclusiva. Pouco nos incomodamos por “ter” e, ao nosso redor, ver o outro vivendo em total miséria. Muitos vivem para ter e não para ser. Esse comportamento já está naturalizado, ou seja, o rico é o rico, e o pobre é o pobre.
Apesar de os apetites materialistas ainda tenderem a perdurar por muito tempo – principalmente entre os jovens que, em sua maioria, expressam suas identidades e dão prova de suas realizações e seus potenciais através do consumo exagerado –parte da sociedade já tem refletido e percebido que, se nada for feito, caminharemos para um final sofrível da humanidade, com guerras, conflitos, destruição dos valores das famílias e do meio ambiente. Precisamos agir, e não apenas reagir, encontrando o equilíbrio mais harmonioso entre o social e o capital.
A reflexão que propomos é sobre a importância dos pensamentos opostos, para seguirmos construindo uma sociedade heterogênea, combatendo a normalização da intolerância e das injustiças sociais.
Este artigo foi escrito para todos aqueles que atuam em empreendimentos de impacto social ou desejam atuar em iniciativas de economia de comunhão. É um meio prático que auxilia na capacitação da população em situação de vulnerabilidade social e econômica, para que encontre novos caminhos de autonomia, através da construção de relacionamentos, trabalho colaborativo, descobrimento de forças e aptidões, o que possibilitará a esses indivíduos o crescimento individual e coletivo em identidade, em busca de maior visibilidade e emancipação social.
Tópicos deste artigo:
- A Economia de Comunhão como uma alternativa conciliadora
- A importância da Economia de Comunhão (EdC) como aliada da sociedade
- Considerações finais
Publicado em 22/05/2025.
A Economia de Comunhão como uma alternativa conciliadora
No contexto brasileiro, a evolução do terceiro setor vem sendo marcada pelo crescente envolvimento organizado da sociedade civil, tendo se fortalecido no processo de democratização do país a partir de 1985, quando a ditadura militar deu lugar a democracia. Ou seja, o terceiro setor, em sua evolução contínua, vem buscando a aproximação dos modelos de economia capitalista e socialista, de forma que se complementem através de suas melhores práticas, oportunizando assim ideias para geração de negócios de impacto social.
Na figura abaixo, demonstramos a composição e intersecções dos três setores da sociedade. Quando ocorre essa interface, os três setores passam a atuar em conjunto na geração de negócios de impacto social:

Na linha dos negócios de impacto social surge, então, a Economia de Comunhão (EdC). Chiara Lubich, idealizadora da EdC, em maio de 2012, problematiza que a EdC, ao contrário da economia consumista (capitalista), baseada na cultura do “ter”, seria a economia do “dar”. acreditando que o ser humano, feito à imagem de Deus, encontra a própria realização justamente no amor, na doação.
É interessante saber, de forma mais precisa, como surge a ideia de EdC. A esse respeito Chiara Lubich narra que, enquanto atravessava a cidade de São Paulo para chegar à comunidade do movimento, foi vendo de um lado prédios imensos e luxuosos e, do outro, um subúrbio e uma pobreza alarmante: “Aqui existe carência, sobretudo de amor verdadeiro e autêntico. Esse é o grande problema destas terras em via de desenvolvimento, um dos maiores problemas de nosso Planeta”. Isso fez com que ela pensasse em como o movimento poderia ajudar para minimizar e, quem sabe, extinguir essa desigualdade no Brasil e no mundo.
A italiana Chiara Lubich, inconformada, decide, então, lançar um projeto com o objetivo de colaborar para a diminuição das desigualdades sociais e a erradicação da miséria. Esse projeto denominado Economia de Comunhão (EdC) foi lançado em 29 de maio de 1991, na sede do Movimento no Brasil, em São Paulo.
O projeto consistiu na ideia de criar uma rede social que envolvesse empresas que destinassem parte do lucro aos pobres, relacionando a atividade econômica à promoção da fraternidade entre os seres humanos.
A comunhão (comum união entre os membros) tem sido uma porta de entrada para um novo modo de fazer economia, no qual esteja presente a prática da comunhão-cooperação-fraternidade. Ou seja, EdC pode ser resumida como sendo a combinação de eficiência econômica com solidariedade, tendo como principal pilar a colaboração, fazendo com que a teoria econômica tradicional seja sensível à economia social, o que faz valer o princípio maior da ciência social: proporcionar melhoria de vida a todos.
A busca pela justiça social e um lugar para se viver em que “entre eles não haja necessitados” (lema da EdC) tem sido discutido entre aqueles que querem construir uma nova maneira de pensar a própria vida a partir das relações econômicas, tendo como elemento integrador desse sistema a participação das empresas. Esse é o modelo de atuação da EdC que procura, por meio de redes, incluir a economia à serviço da população em vulnerabilidade social, pois nota-se que os sistemas econômicos tradicionais têm sido incapazes de endereçar as causas-raiz dos problemas sociais emergentes e frequentes.
O quadro apresentado em seguida permite visualizar os fundamentos da economia clássica, da economia socialista e da economia de comunhão.
Economia Clássica (Capitalismo Tradicional) | Economia Socialista | Economia de Comunhão |
Ética e lucro em conflito: capital tem primazia em relação ao ser humano | Ética e lucro são opostos | Ética e lucro em harmonia: ser humano tem primazia em relação ao capital |
Lucro como causa | Lucro como inimigo | Lucro como efeito |
Individualismo na base das relações | Identidade coletiva como parte da identidade pessoal | Solidariedade na base das relações |
Cultura do ‘ter” e do “ser” para si | Cultura do ter para todos de forma igualitária | Cultura do ser e do oferecer |
Racionalidade baseada no acúmulo de riqueza | Racionalidade baseada na distribuição igual das riquezas | Racionalidade baseada na partilha do lucro e na construção de relacionamentos |
Empresa e Sociedade | Empresa e Sociedade antagônicos | Empresa na Sociedade |
Missão | Doutrina | Propósito |
Competição | Equidade | Colaboração |
Principais métricas econômicas são: risco, retorno financeiro e liquidez | Não existe meritocracia. Metas comuns a grupos e não a indivíduos | Principais métricas são: performance financeira, qualidade da governança, riscos e oportunidades ambientais e riscos e oportunidades sociais |
Contrato lógico e economicamente racional | Não existe contrato entre a classe trabalhadora e o empresariado | Contrato emocional com colaboradores e clientes |
Investimento financeiro, para proteger a riqueza dos acionistas | Investimento comunitário | Investimento responsável, com propósito social |
Fonte: O autor baseado em pesquisa realizada nas diversas fontes referentes à economia socialista, de comunhão e capitalista referenciadas no final do artigo.
Como podemos notar e concluir comparando cada categoria no quadro acima, o contraste dos modelos de economia capitalista e socialista são harmonizados pela EdC, que se apresenta como um modelo alternativo, evoluído e aprimorado, considerando as lições aprendidas provenientes dos modelos tradicionais capitalista e socialista.
A intenção da divulgação e propagação da EdC é a de que o sistema tradicional capitalista migre de um modelo clássico de economia cujo objetivo de seus acionistas e colaboradores é o lucro, ou seja, sem um propósito social ou legado, para que essas empresas deixem ser percebidas como organizações isoladas do restante da comunidade em que estão inseridas, sem responsabilidade social, muitas vezes, permitindo que, na obsessão de lucros cada vez maiores, tenham que passar por cima de valores éticos e morais.
Tudo isso sem considerar que empreender não é apenas implementar um negócio, mas sim ajudar na transformação social. É ser protagonista no desenvolvimento e proliferação de uma cultura capaz de substituir, na população mais privilegiada economicamente, a cultura do “ter” pela cultura do “ser” e, assim, resgatando a autoestima nos mais vulneráveis. Na cultura do “ser”, é possível valorizar a existência coletiva, não só no presente, mas, principalmente, para o futuro que caminha a humanidade.
A importância da Economia de Comunhão (EdC) como aliada da sociedade
As empresas são a espinha dorsal da EdC, sendo estas participantes no mercado, com formas jurídicas regulares, mas que se comprometem a destinar os seus lucros (ou parte dele) de acordo com critérios definidos pelo bem comum.
Bruni (2011) argumenta que essa nova cultura de comunhão é para ser uma nova ordem econômico-social que repensa e liga duas realidades hoje opostas no capitalismo: a empresa e a pobreza; ou seja, uma economia com perfil realmente humano. O sistema econômico vigente, orientado cada vez mais para a produção de riquezas, tem sido apresentado como produtor e reprodutor da desigualdade social. A pobreza e a miséria são, portanto, consequências da concentração da riqueza nas mãos de poucos, enquanto a maioria não consegue satisfazer adequadamente suas necessidades básicas.
Nesse sentido, a pobreza está para além da insuficiência de renda e engloba outros aspectos, como a falta de acesso aos alimentos, a moradia, a proteção, a saúde e a educação. Os desequilíbrios da concentração de renda entre países e entre classes sociais permanecem como um dos grandes problemas da atualidade. As instituições econômicas, sociais, políticas e culturais que foram concebidas nesse sistema reproduzem a desigualdade social e, muitas vezes, amparam-se em um arcabouço teórico-econômico, trazendo modelos de desenvolvimento que reduzem a complexidade das escolhas econômicas, desconsiderando o debate ético.
Com isso, é possível pensar em outras possibilidades de organização da economia que não seja orientada pela obsessão por lucros que vão sendo acumulados e geram desigualdade. De acordo com Bruni (2011), embora o individualismo da ciência econômica tenha sobrevivido e saído fortalecido de todo gênero de crítica, um número crescente de economistas está insatisfeito com essa orientação da teoria econômica predominante, tentando resgatar um dos pilares fundamentais das ciências econômicas: a ética.
É possível, então, repensar a economia a partir de outros valores – da justiça, da igualdade, da solidariedade. Algo que vem sendo defendido, inclusive, por autores das ciências econômicas, como Sen (1999). A economia, assim, pode ser também geradora de igualdades, desde que seja orientada pela justiça social, que significa a partilha justa dos bens e recursos que possam satisfazer as necessidades de todos e não apenas de alguns.
É preciso ressaltar que a ajuda aos mais necessitados não precisaria ser necessariamente financeira. O movimento não tem o objetivo de fazer filantropia. É algo que vai além disso. Segundo Bruni (2000), a proposta é fazer (re)nascer nessas pessoas a autoconfiança, a solidariedade e, consequentemente, uma melhor qualidade de vida. O objetivo é despertar, na comunidade em situação de vulnerabilidade social, uma atividade econômica que possa suprir as necessidades dela. Enfim, não se trata de um assistencialismo e sim de mostrar para essas pessoas que elas são capazes de, por si mesmas, superar suas dificuldades.
Nessa tentativa de responder aos desafios contemporâneos, Bruni afirma que a EdC não entra em conflito com o capitalismo. Tal afirmação gera certa perplexidade: não é contraditório afirmar que uma proposta que introduz conceitos de fraternidade não entre em conflito com um modelo econômico pautado na acumulação, competição e individualismo como é o capitalismo? A resposta é nítida, pois a EdC não perde de foco a realidade econômica na qual está inserida: ela vai ao encontro da principal finalidade do lucro de uma empresa capitalista, porém, a EdC pauta-se por uma nova forma de partilhar o lucro, uma vez que seu objetivo maior é mudar a mentalidade dos indivíduos que trabalham, fazendo crescer entre todos, dirigentes e operários, uma comunhão em todas as dimensões.
Em resumo, nas empresas de EdC, desenvolve-se a cultura de maximização das relações sociais e não apenas de geração de lucro como nas empresas puramente capitalistas ou guiadas por uma racionalidade consumista. O centro da empresa deve ser a comunidade. Portanto, o objetivo de abrir empresas com o espírito de comunhão é exatamente fazer desenvolver-se naquele local e em outros uma relação entre as pessoas de forma que possa nascer e desenvolver-se entre elas a fraternidade.
Considerações finais
É necessário que a sociedade se indigne com as disparidades existentes em nosso meio. Vivemos em um mundo conformado, muitas vezes, por pura comodidade, em que modelos econômicos existentes mostraram-se ineficazes e, sobretudo, antagônicos: o capitalismo, por definição, egoísta e o socialismo, em sua essência, retrógrado. Todo esse cenário é nocivo à construção de uma sociedade de comunhão.
Os resultados alcançados pela economia de comunhão, segundo Crutchfield e Grant (2008), devem ser passíveis de medição considerando o impacto social atingido diretamente (ou indiretamente) associados às soluções aplicadas sobre as causas centrais de um problema socioambiental identificado. Esses resultados oferecem, assim, um retorno para a realidade na qual eles foram gerados, oferecendo um benefício às pessoas envolvidas e impactadas pelas atividades efetuadas e que enxergam um valor naquilo que foi realizado. Esse valor é percebido por meio das transformações reconhecidas no decorrer ou após as ações realizadas. Essa transformação pode ser descrita como um desenvolvimento, um crescimento, uma melhoria ou, até mesmo, um “choque” na realidade afetada, dependendo da natureza do que foi efetuado.
Este estudo é realista e não tem a pretensão de mudar o mundo, porém traz uma ideologia: a de que a mudança realizada em cada indivíduo fomenta um efeito multiplicador na sociedade. Focamos a transformação social por meio da compaixão e colaboração. A jornada deve prosseguir de forma contínua, em que seja possível compartilhar e aprender com os resultados, sejam aqueles que deram certo, ou com as lições aprendidas de algo não saiu como planejamos. Com transparência e resiliência, geraremos confiança em busca da transformação da consciência coletiva.
Referências que usamos neste artigo:
BRUNI, Luigino. Economia de Comunhão por uma cultura econômica com várias dimensões. Vargem Grande Paulista Editora Cidade Nova, 2000
BRUNI, Luigino. Comunhão e as novas palavras em economia. Sao Paulo: Cidade Nova, 2011.
CHIARA, Lubich, Economia de Comunhão: História e profecia. Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 2004.
CRUTCHFIELD, L. R.; GRANT, H. M. Forces for good: the six practices of high-impact nonprofits. San Francisco: Jossey-Bass, 2008.
LEVIN, Mark R. Marxismo Americano. Tradução de Atonietta Braga. São Paulo: Citadel, 2021.
LUBICH, Chiara. O Movimento dos Focolares e a Economia de Comunhão. In: Bureau Internacional Da Economia E Trabalho, 2000, Sao Paulo. Anais… Sao Paulo: Cidade Nova, 2000.
QUARTANA, Pino. A economia de comunhão no pensamento de Chiara Lubich. In:______. Economia de Comunhão. São Paulo: Cidade Nova, 1992.
SEN, Amartya. Sobre ética e economia. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
SOUSA, F.R.F, BARROS, P.F. Economia de comunhão: um estudo na perspectiva de retomada do debate ético na economia, Cariri-CE: Série CEURCA: volume 2, Capitulo 8 – Capitalismo, trabalho e política social, 2016, p.133-158.