O sistema de cotas para acesso ao ensino superior cumpre obrigações assumidas interna e externamente pelo Brasil. Vamos entender o caminho para chegar à legislação atual e sua importância.
Por Ana Paula Maciel Costa, para o Instituto Aurora
(Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil)
Como diria Norberto Bobbio, a conquista de direitos não se dá de uma única vez e nem de uma vez por todas.
Em momentos como este em que estamos vivenciando o retrocesso e a perda de vários direitos tão duramente conquistados, precisamos reavivar em nossa consciência o porquê alguns direitos foram e devem continuar sendo resguardados.
É o caso do sistema de cotas que, através de muita luta e reivindicação da sociedade organizada, foi implementado pela Lei nº 12.711/2012 e atualizado recentemente pela Lei nº 14.945/2024.
O que vamos abordar neste artigo:
- O que diz a lei de cotas?
- Qual o objetivo das cotas para as universidades?
- Por que foi criada a lei de cotas?
- Qual a importância das cotas?
Publicado em 14/05/2025.
O que diz a lei de cotas?
Esse sistema institui um mecanismo de reserva de vagas para determinados grupos populacionais para ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio.
Primeiramente é preciso explicitar, de forma simples e resumida, o público alvo dessa política pública.
A lei de cotas determina que as universidades federais e as instituições federais de ensino técnico de nível médio devem reservar 50% das vagas ofertadas:
- Para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, seja nos cursos regulares ou no âmbito da modalidade de Educação de Jovens e Adultos, ou ainda da educação do campo
- Dentro desse montante, metade é destinada para os estudantes que tenham renda familiar igual ou inferior a 1 (um) salário mínimo por pessoa e a outra metade com renda maior que o mesmo valor
- Dentro de cada faixa de renda, um percentual que varia de acordo com a proporção da população beneficiada no local onde fica a universidade ou instituto, seguindo os dados do censo mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para estudantes que sejam autodeclarados pretos, pardos, indígenas e quilombolas (estes incluídos na última atualização de 2024)
- Dentro de cada critério de renda, um percentual para pessoas com deficiência (PcD), determinado pela proporção de PcDs no local da universidade, segundo o IBGE
Para melhor ilustrar a divisão das cotas, utilizaremos o exemplo dado pelo próprio Ministério da Educação.
Qual o objetivo das cotas para as universidades?
A partir dessa informação, já é possível desmistificar uma grande parte do senso comum que erroneamente acredita que o sistema de cotas beneficia apenas a população negra.
Como pudemos compreender, o primeiro critério utilizado pela lei é a origem da escolaridade, pois para ser beneficiário do sistema de cotas para ingresso na universidade, o estudante deve ter feito todo o ensino médio em uma instituição pública. Vencida essa exigência é que se parte para os demais critérios econômico, racial e de condição física.
Como é típico das ações afirmativas, a proposta da lei é garantir a igualdade de oportunidades para reparar as perdas que esses grupos sociais sofreram e ainda sofrem, provocadas por diferentes formas de discriminação historicamente acumuladas.
Por que foi criada a lei de cotas?
É importante relembrar que na formação da própria sociedade brasileira os negros, os indígenas e as pessoas com deficiência foram institucionalmente alijadas e impedidas de compor e participar dessa formação.
Vamos trazer aqui apenas algumas leis que foram marcadores fundamentais para a condição de desigualdade dessas populações que culminaram ao longo do tempo na precarização de suas vidas.
Ainda no período colonial, na primeira lei de educação (Lei nº 1/1837, art. 2º) estabelecia que os escravos e os pretos africanos, ainda que fossem livres ou libertos eram proibidos de frequentar as escolas.
A Lei de Terras (Lei nº 601/1850), já prevendo o final da escravidão, limitou de diversas formas o acesso à terra, como o não reconhecimento da ocupação como forma de adquirir terras. Também dificultava o acesso à terra mesmo a quem comprasse, pois privilegiava a regularização das grandes propriedades.
Em contrapartida, essa mesma lei (art. 18) previa uma série de subsídios do governo para custear a vinda de estrangeiros para formarem colônias onde quisessem, garantindo a esses, não só a terra, mas também emprego.
Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar vir annualmente à custa do Thesouro certo número de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agrícolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração pública, ou na formação de colônias nos logares em que estas mais convierem; tomando antecipadamente as medidas necessárias para que taes colonos achem emprego logo que desembarcarem.
Diferentemente dos privilégios garantidos aos estrangeiros, a população negra, com o fim da escravidão, não recebeu qualquer tipo de indenização, sendo, portanto, obrigada a ocupar espaços impróprios para moradia, como encostas de morros e margens de rios e lagoas, dando início assim às favelas e comunidades desassistidas de políticas sociais pelo Poder Público, em condições de extrema pobreza.
Mas como se não bastasse tudo isso, o Código Penal (Decreto nº 847/1890, arts.399 e 402) considerava crime quem estivesse na rua sem domicílio certo e quem praticasse capoeira.
Isso significa dizer que além de terem sido arrancados de seus países de origem, sofrido todo tipo de abuso e violação, quando foram descartados sem qualquer tipo de compensação, eles ainda foram perseguidos nas cidades e considerados criminosos por não terem como e onde viver.
Nesse cenário, com teorias raciais e o desejo da implementação da política de branqueamento no Brasil, a população negra passa a ser considerada inapropriada para o mercado de trabalho formal. Não restou, portanto, outra alternativa que não fosse o subemprego, na medida em que não tinha escolaridade formal e moradia.
Nós não estamos falando de uma circunstância ocorrida no início do “descobrimento” do Brasil. Nós estamos falando de mais de 350 anos de escravidão que finda sem qualquer reparação enquanto que em seguida tivemos uma legislação que concedeu tantos privilégios aos grandes latifundiários e estrangeiros.
E aqui é importante frisar que a Lei de Terras só deixou de existir com a Constituição Federal de 1988. Mas foi somente a partir de 1993, com a lei de desapropriação para fins de reforma agrária, é que se tenta minimizar o estrago causado ao longo de todos esses anos.
Mesmo o Brasil sendo constituído por 56,7% de população negra, segundo dados do IBGE 2024, suas condições de vida decorrem desse processo de racismo institucional e consequente pauperização, o que explica a dificuldade de acesso à educação para as pessoas pretas, pardas e quilombolas (comunidades remanescentes de quilombos) na atualidade.
Com esse histórico fica fácil deduzir a condição degradante dos povos indígenas, que não eram considerados plenamente capazes de exercer suas próprias vidas com autonomia (art. 4º CC e legislação própria). Esses povos sofrem até os dias atuais o desrespeito à sua cultura, sua língua, modos de vida e território, o que os coloca numa situação ainda mais complexa de acesso à educação superior.
Outra parcela da população que também esteve alijada da sociedade são as pessoas com deficiência. Até o ano de 2015 elas não podiam exercer seus direitos e ter suas vidas porque eram consideradas incapazes de tomarem suas próprias decisões, o que muitas vezes as deixaram fora da educação formal no Brasil.
Somente a partir da Lei 13.146/2015, que a deficiência física ou mental, por si só, não é considerada incapacidade jurídica, seja absoluta ou relativa. A consequência disso é uma maior inclusão social em favor da dignidade da pessoa humana, apesar das limitações enfrentadas.
Nós estamos falando da mudança de um paradigma muito recente, de apenas 10 anos!
Como pudemos perceber, esses grupos sociais foram e ainda são muito prejudicados em todos os âmbitos de suas vidas. E aqui, especialmente tratando da educação, cada um deles faz jus à reparação aos danos que o próprio Estado, direta e indiretamente perpetrou ao impedir ou dificultar o acesso à educação.
Qual a importância das cotas?
Diante da constatação de que o próprio Estado brasileiro instituiu condições em seu ordenamento jurídico que prejudicaram e até inviabilizaram o acesso à educação desses grupos sociais, será que é preciso ainda falar da importância do sistema de cotas?
Afinal a Lei nº 12.711/2012 nem é a primeira lei de cotas no Brasil.
A Lei nº 5.465 de 1968, conhecida como Lei do Boi, foi a primeira a conceder cotas nas universidades.
Você sabia que essa lei estabelecia que 80% das vagas nos cursos de agronomia, medicina veterinária e técnico agrícola eram destinadas aos fazendeiros e seus filhos?
Não bastava a eles receberem as terras, eles precisavam também garantir suas vagas na universidade!
A sua revogação ocorreu somente em 1985, no início da redemocratização do país. Durante 17 anos os privilegiados detinham 80% das vagas nas universidades.
A Constituição tenta corrigir essa distorção. E é importante ressaltar que o Estado, ao estabelecer políticas públicas com esse fim, não o faz por uma opção política, mas sim para cumprir as obrigações assumidas interna e externamente.
Internamente, o poder público deve obedecer ao ordenamento jurídico pátrio que tem como instância máxima a Constituição Federal de 1988. Ela estabelece como objetivos fundamentais a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos sem distinção (art. 3º CF) e assegura a educação como direito fundamental (art. 5º), a partir da qual o indivíduo poderá desenvolver todo o seu potencial humano. Com isso estrutura-se toda uma legislação referente ao tema.
Externamente, o Brasil participa da comunidade internacional, firmando vários acordos, pactos e instrumentos nos quais se compromete a cumprir aqueles compromissos firmados entre as nações.
A política de cotas, por exemplo, nada mais é do que um dos objetivos firmados na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Essa agenda foi implementada no ano de 2016 por 193 Estados Membros da ONU, os quais firmaram os 17 objetivos (ODS) e 169 metas de ação global para alcance até 2030, abrangendo as dimensões ambiental, econômica e social do desenvolvimento sustentável, de forma integrada e inter-relacionada.
Consequentemente, os países signatários, dos quais o Brasil faz parte, se comprometeram a definir suas metas nacionais incorporando-as em suas políticas, programas e planos de governo.
Isso significa dizer que essa política pública faz parte de uma ação global aceita e integrada pelo Estado brasileiro que, independentemente de qual governo esteja à frente dessa política, deve dar continuidade a ela.
No caso em questão, estamos destacando a educação superior. Logo, é possível perceber que a atualização da lei de cotas é, também, uma resposta à demanda internacional que estabeleceu como um dos objetivos do desenvolvimento sustentável, a criação e desenvolvimento de políticas públicas que garantam a igualdade de acesso à educação superior.
“Objetivo 4. Educação de Qualidade
Meta 4.3
Nações Unidas
Até 2030, assegurar a igualdade de acesso para todos os homens e mulheres à educação técnica, profissional e superior de qualidade, a preços acessíveis, incluindo universidade.
Brasil
Até 2030, assegurar a equidade (gênero, raça, renda, território e outros) de acesso e permanência à educação profissional e à educação superior de qualidade, de forma gratuita ou a preços acessíveis”
O Brasil tem cumprido o seu papel na execução dessa ação afirmativa do sistema de cotas. E os resultados têm se mostrado muito positivos.
O Censo da Educação Superior 2023, realizado pelo Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostrou que os estudantes que acessaram a educação superior federal por meio de cotas tiveram uma taxa de conclusão 10% maior do que a de não cotistas em uma década (2014-2023).
No ano de 2023, 51% dos alunos cotistas da rede federal concluíram o curso, enquanto o índice de conclusão entre os não cotistas foi de 41%.
Restou evidenciado, portanto, que o investimento feito no sistema de cotas nas universidades federais tem sido muito acertado, uma vez que os estudantes cotistas nas universidades federais conseguem melhores rendimentos e têm melhor taxa de conclusão dos cursos.
Aliados à essa ação, a Organização das Nações Unidas (ONU) também instituiu a Década Internacional para os Afrodescendentes (resolução 68/237). Trata-se de um período de 10 anos estabelecido para promover os direitos das pessoas afrodescendentes, implementando ações que garantam a inclusão total dos povos afrodescendentes, dentre elas, o apoio na formação educacional.
Portanto, para termos, efetivamente, a implementação do “Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento”, que é o tema dessa década, é imprescindível analisarmos e repensarmos a história da população negra, assim como da indígena e das pessoas com deficiência. Não há que se pensar as políticas afirmativas, especialmente no tange à educação, como assistencialismo, mas sim como medidas justas e necessárias para restituir as oportunidades de desenvolvimento que foram usurpadas dessas populações.
O Instituto Aurora atua na promoção e defesa da Educação em Direitos Humanos. Conheça a nossa visão para a redução de desigualdades.
Algumas referências que usamos neste artigo:
A inserção da população negra no mercado de trabalho | Dieese