As eleições se aproximam e, com elas, é comum nos depararmos com a expressão: “vote em mulheres”. Mas será que apenas isso é suficiente para ter nossas pautas sendo representadas? Neste texto serão abordados os limites dessa representação, especialmente no que tange às representatividades fictícias, bem como das demais políticas públicas de inclusão das mulheres nos espaços públicos.
Por Gabriela Assad, para o Instituto Aurora
(Foto: Pablo Valadares / Câmara dos Deputados)
Durante a primeira onda feminista, ocorrida entre o final do século XIX e início do XX, o movimento sufragista das mulheres foi às ruas demandar o exercício dos direitos civis e políticos, antes apenas concedidos aos homens. O período que compreendeu o entreguerras postergou a causa em muitas partes da Europa, mas seguiu firme no resto do mundo, especialmente na América Latina.
De maneira inédita no país, a lei estadual n° 660, sancionada no Rio Grande do Norte (RN) em 1927, estabeleceu a não distinção de gênero para o exercício do voto e dos direitos políticos. Alzira Soriano foi eleita a primeira prefeita mulher em 1928. Constitucionalmente, o movimento das mulheres conquistou o direito ao voto apenas em 1934 – antes, em 1932, o Código Eleitoral concedia o direito apenas às mulheres casadas, sob a apreciação do marido, e viúvas com renda própria.
Embora esse cenário tenha sofrido algumas alterações com o tempo como, por exemplo, a implementação de algumas políticas afirmativas e leis de proteção à vítimas de violência política de gênero, o Brasil demonstra crescimento diminuto no que tange à participação das mulheres na política. Os números são preocupantes especialmente porque a baixa participação feminina em cargos decisórios está intimamente relacionada com o aumento da desigualdade de gênero e a baixa efetividade da democracia.
No entanto, como de praxe, o sistema patriarcal-capitalista coopta algumas bandeiras levantadas pelo movimento feminista. Nesse sentido, não será qualquer representação que garantirá a representatividade e a mudança necessária para desafiar o status quo vigente, razão pela qual devemos nos atentar na hora de escolher as (os) representantes a cada eleição. Este texto visa, sobretudo, alinhar as demandas cidadãs ao pensamento crítico.
Visando fugir de qualquer interpretação reducionista e normativa de sexualidade e gênero, sempre que utilizarmos as expressões “feminina” ou “mulheres”, estamos nos referindo a todas as pessoas que se identificam como mulheres, sejam elas cis ou trans.
O que vamos abordar neste artigo:
- Separação público X privado
- Demanda por igualdade de gênero
- Limitações às políticas públicas de inclusão e equidade de gênero
- Representação e representatividade feminina na política: faces da mesma moeda?
- Lugar de Fala
- Considerações finais
Publicado em 29/05/2024.
Separação público X privado
Historicamente, forjou-se a divisão – fundamental para a manutenção do sistema capitalista – entre produção econômica, a de mercadoria, e reprodução social. Essa divisão foi, essencialmente, marcada pelo fator gênero.
Às mulheres, coube o trabalho de reprodução social, de cuidado e quase restrito à esfera privada, enquanto que aos homens a produção econômica, o trabalho nas fábricas e o poder social, garantiram a ocupação da esfera pública. No entanto, este não aconteceria sem aquele. Isso significa que o trabalho realizado nas fábricas, nos bancos, nos escritórios não aconteceria sem um trabalho de reprodução da vida material fora desses espaços.
Para Tithi Battacharya (2013), a reprodução social é percebida em três processos distintos mas interligados: nas atividades que regeneram o trabalhador fora do processo de produção, como alimentação, vestuário, saúde; nas atividades que mantém os trabalhadores passados e futuros fora do processo produtivo, isto é, crianças e idosos; na reprodução de novos trabalhadores, com gravidez e parto.
Embora essencial à produção de valor, por não ser pago, socialmente o trabalho reprodutivo é visto como “desimportante”. Sendo, por sua vez, um trabalho considerado sem importância, destinado à esfera privada, entendeu-se desnecessária a representação política. Desse modo, a seara política foi, durante muito tempo, um espaço pensado e produzido pelos e para os homens. Com homens, queremos dizer, homens brancos, em um padrão cis heteronormativo, e de classe social mais abastada.
Percebe-se, dessa forma, que a ausência de mulheres em cargos decisórios, em especial no cenário político, nada tem a ver com incapacidade ou “jeito”, mas sim com a perpetuação de determinada estrutura, a qual separa as mulheres da tomada de decisão – processos iniciados dentro da própria estrutura familiar.
No entanto, como em todas as outras esferas da vida social, é imperativo romper com a separação público-privado na política, de modo que a busca pela igualdade de gênero dentro das instituições é fundamental não apenas para que se tenha representação igualitária nesses espaços, mas também – e principalmente – para que as demandas das mulheres sejam ouvidas e satisfeitas.
Demanda por igualdade de gênero
Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) tenha sido enfática ao afirmar que toda pessoa tem direito de tomar parte, em condição de igualdade, dos negócios públicos do seu país, diretamente ou mediante representação (artigo 21, DUDH), diante da desigualdade de acesso de mulheres aos cargos públicos fez-se necessária a elaboração de outros documentos internacionais de DH abordando a temática, mas agora sob uma perspectiva mais específica e com caráter vinculante.
A Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW – sigla em inglês), de 1979, representa um importante marco na luta pela não discriminação das mulheres, em especial no âmbito político.
A Convenção orienta que os Estados-parte tomem medidas cabíveis para garantir, inclusive nas esferas social e política, os direitos humanos das mulheres. Desse modo, “medidas especiais de caráter temporário” podem ser utilizadas para acelerar esse processo – tais como a adoção de políticas afirmativas.
A Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, também denominada de Declaração de Viena (1993), pactua que a participação plena das mulheres na vida política, civil, socioeconômica e cultural, em condição de igualdade, como agentes e beneficiárias do processo de desenvolvimento, é prioridade da comunidade internacional, de modo que os governos devem atuar em todas as esferas para a sua promoção.
No mesmo sentido, durante a IV Conferência Mundial sobre a Mulher (1995), intitulada “Ação para a Igualdade, Desenvolvimento e Paz”, foi levantada a discussão sobre a promoção e o fortalecimento da justiça e democracia mediante a persecução da igualdade entre homens e mulheres na tomada de decisões.
Como objetivos estratégicos, a Conferência defende a promoção da igualdade de direitos das mulheres no acesso às estruturas de poder e tomada de decisão, a adoção de práticas não discriminatórias pelos governos, além da capacitação de lideranças femininas.
Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), lançados em 2015 pela ONU, consideram como fundamental a promoção e defesa da Igualdade de Gênero para a construção da paz e da prosperidade necessária até 2030.
De acordo com a Organização, o intuito do ODS 5 é “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”. Além disso, a meta 5.5 visa garantir a “participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública” (ONU, 2016).
Ainda de acordo com a ONU, no Glossário sobre Igualdade de Gênero (ONU, 2016), participar da vida pública é um Direito Humano e, por sua vez, a tomada de decisões públicas é uma medida-chave para a promoção de igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres. A participação da vida pública, vale dizer, compreende o direito de votar e de ser votada.
Ademais desse objetivo, também é cabível mencionar outros que, apesar de não especificarem o recorte, estão relacionados ao primeiro. O ODS 10, a respeito da redução das desigualdades, possui, na meta 10.2, o empoderamento e a promoção da “inclusão social, econômica e política de todos, independentemente da idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra”.
Por fim, destaca-se o ODS 16, o qual fala sobre a promoção de sociedades pacíficas e inclusivas para se alcançar o desenvolvimento sustentável, além de “proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”. Mais ainda, a Organização insta aos Estados a promoção e cumprimento de “leis e políticas não discriminatórias para o desenvolvimento sustentável” (meta 16.b).
Ao considerar que, sem a participação ativa das mulheres na tomada de decisão, objetivos como Igualdade, Desenvolvimento e Paz não podem ser plenamente satisfeitos, a ONU Mulheres (2015) destaca que a Democracia Paritária transcende o meramente político e destina-se à transformação das relações de gênero, contribuindo para um novo equilíbrio entre mulheres e homens.
Entendemos, desse modo, que efetivar a representação feminina equitativa na política funciona como um condutor, uma espécie de “motor”, para concretização dos direitos humanos das mulheres, bem como para alcançar o Desenvolvimento Sustentável proposto pela Agenda 2030.
Relatório divulgado pela União Interparlamentar (UIP, 2024) apontou que, mundialmente, a proporção de mulheres em cargos parlamentares se situa em 26,9%, 0,4% a mais em relação ao mesmo período do ano anterior (1 de janeiro de 2023). Embora seja um avanço considerado comparável ao de 2022, ocorre em um ritmo mais lento que nos anos anteriores.
No mesmo sentido, levantamento realizado pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (2023), aponta que a meta 16.7, dos ODSs, referente à governança mundial inclusiva, possui um melhor desempenho na América Latina em comparação com o restante do mundo. Para atingir esse objetivo até a data estipulada pela Organização, contudo, faz-se necessário um maior esforço por parte dos agentes públicos.
Conforme o Mapa Mulheres na Política (2023), divulgado pela ONU Mulheres em parceria com a União Interparlamentar, o Brasil ocupa a 129ª posição no ranking de 186 países, no que diz respeito à representatividade feminina nos cargos considerados parlamentares, como Câmara dos Deputados e Senado Federal – com 17,7% e 12,4%, respectivamente.
Após as eleições de 2022, o quantitativo de mulheres nos cargos ministeriais cresceu consideravelmente em relação aos anos anteriores do Mapa, ainda que esteja longe da equidade necessária. Ocupando a 37ª posição de 182 países analisados, o Brasil possui 36,7% de cadeiras preenchidas por mulheres, ou seja, onze (11) do total de trinta (30) ministros (ONU; IUP, 2023).
Tal cenário parece indicar uma crescente no que diz respeito à ocupação das mulheres nos espaços públicos, muito por conta das políticas afirmativas implementadas e novos caminhos políticos traçados. No entanto, ainda persistem alguns empecilhos em virtude da estrutura misógina que permeia esses espaços.
Limitações às políticas públicas de inclusão e equidade de gênero
Fraude às cotas de gênero
Objetivando concretizar a paridade de gênero demandada, as cotas são um fator decisivo para a representação das mulheres nos espaços de decisão. Em espaços em que se adota algum tipo de cota, apenas a exigida por lei ou acrescida da implementada voluntariamente pelo partido, houve um aumento de, aproximadamente, 2,2% de participação feminina em 2024, à nível mundial, em relação aos anos anteriores (IUP, 2024).
No entanto, inúmeros fatores influenciam na efetividade de determinadas políticas públicas, incluindo as cotas. Dentre eles, podemos considerar como fundamental a cultura de determinada localidade, a qual pode vir a ser mais ou menos favorável à inclusão das mulheres no cenário político. Nesse caso, o conservadorismo latente na cultura política brasileira age impedindo a plena realização da igualdade de gênero
A Lei 12.034/09 alterou o artigo 10, §3°, da Lei 9.504/97, responsável por estabelecer normas para a realização das eleições, instituindo cota mínima e máxima de 30% e 70%, respectivamente, para candidaturas de cada gênero. Na prática, o que ocorre é que apenas esses 30%, o mínimo, são destinados às mulheres – contrariando a própria noção de paridade defendida com a instituição da política afirmativa.
Importante mencionar que, em 2020, sob força da Emenda Constitucional n° 97/2017, as coligações, junção de dois (2) ou mais partidos, deixaram de ser permitidas em caso de eleições proporcionais – para deputados ou vereadores. Portanto, essa porcentagem valerá apenas para o partido, que deverá ter suas próprias candidaturas.
Além disso, ainda existem candidaturas fictícias, popularmente chamadas de “candidaturas laranjas”. Essas candidaturas se referem ao registro de mulheres como candidatas apenas para preencher os números mínimos estabelecidos legalmente, sem a intenção de se elegerem de fato. Ou, ainda, para receberem recursos do fundo eleitoral, os quais futuramente serão desviados às candidaturas masculinas do partido.
Nesse sentido, as pesquisadoras Malu Gatto e Kristin Wyllie apontam que, nas eleições de 2018, 35% de todas as candidaturas de mulheres para a câmara dos deputados foram realizadas apenas para preencher formalmente as cotas exigidas por lei.
Embora essa prática seja corriqueira entre todos os partidos brasileiros, tanto à direita quanto à esquerda, alguns partidos lideram os índices de disparidade na competitividade entre mulheres e homens – indicativo do uso de candidaturas fictícias. Esse é o caso do Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), do Partido Social Democrático (PSD) e do Partido Social Liberal (PSL), com 65%, 20% e 16%, respectivamente.
Para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), dentre os indícios para a caracterização de fraude às cotas de gênero estão a ausência de participação nas campanhas, a votação inexpressiva ou nula e a ausência de prestação de contas. Em caso de fraude comprovada, esta afeta o partido ou coligação como um todo, já que enseja a anulação dos votos recebidos pela legenda e a cassação do Demonstrativo de Regularidade dos Atos Partidários (DRAP).
O Tribunal identificou fraude às cotas de gênero nas duas últimas eleições, de 2020 e de 2022, nos oferecendo indícios de que o cenário não parece promissor. Desde o ano passado, foi confirmada a fraude em 81 recursos julgados pelo TSE, a exemplo do estado do Mato Grosso do Sul (MS) e dos municípios de Igarapé (MG) e Maranguape (CE).
Violência política de gênero
É sabido que um dos maiores desafios da atualidade dentro da agenda pela Igualdade é Gênero é o enfrentamento à violência contra a mulher. Entendamos Violência como todo e qualquer ato em razão do gênero que cause dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, podendo ou não levar ao resultado morte, na esfera pública ou privada – conceito adotado dentro da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 1994.
Quando inserida no contexto político, a violência contra as mulheres toma outros contornos. Em geral, ela visa impedir o pleno exercício de seus direitos políticos, incluindo o de votar e ser votada, fazer campanha e se expressar livremente dentro das sessões. Em sentido estrito, age impedindo que mulheres tenham voz e, consequentemente, possam dar voz a todas as mulheres que se sentem representadas por elas, razão pela qual, em maior ou menor grau, a violência política de gênero afeta todas nós.
Podemos considerar como exemplos de violência política de gênero os comentários misóginos – sem ou com delineamentos interseccionais –, o assédio moral ou sexual e as ameaças dirigidas a elas ou a membros de sua família. Embora não seja um problema recente, nos últimos anos observamos um aumento vertiginoso desses ataques em decorrência da internet, a qual atua com o um “agente facilitador”.
Visando coibir essa prática, a Lei 14.192/21 estabelece algumas normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher. Dentre outras disposições, a Lei altera o Código Eleitoral (Lei 4.737/65), estabelecendo o assédio, constrangimento, ameaça ou perseguição à mulher candidata ou detentora de mandato eletivo como crime eleitoral – acrescido de aumento de pena em caso de realização mediante a internet ou qualquer rede social. Entretanto, a normatização está longe de ser suficiente.
Segundo relatório produzido pelo Observatório de Violência Política Contra a Mulher (2022-2023), da Transparência Eleitoral Brasil, durante as eleições gerais de 2022, o tema da violência política de gênero foi pauta, no mínimo, 90% das vezes. As principais promotoras dessa discussão foram as próprias candidatas, com 48%, seguidas pelas Organizações da Sociedade Civil e autoridades eleitorais, com 20% e 16%, respectivamente (TE Brasil, 2023).
Uma consideração importante a ser feita é que, das vezes em que as candidatas levantaram essa discussão, 40% delas foi através das denúncias realizadas em causa própria. A violência psicológica aparece em 85% desses casos, evidenciando a dificuldade de tornar a violência política de gênero tangível, perceptível à maior parte da sociedade, que ainda enxerga a reação equivalente como “mimimi”.
Além disso, o crescimento da extrema-direita, somado aos discursos de ódio comumente utilizados contra grupos minoritários, reforça essa violência de gênero. Levantamento realizado pela Justiça Global em conjunto com a Terra de Direitos (2020-2022) revela que casos de violência política aumentaram 400% se comparados a 2018, as ameaças se revelam como a principal expressão dessa violência.
Ataques direcionados às mulheres, cis ou trans, somam 41,3% dos casos e são 2 vezes mais alvos de ofensas, ameaças e agressões em comparação aos homens cisgêneros. Mulheres negras, ainda, correspondem a 20% desses ataques. Soma-se a isso o fato que de houve um aumento considerável dos ataques à esquerda (PT e PSOL, principalmente), totalizando 28,7%, quase o triplo se comparados ao levantamento anterior (2016-2020) (Justiça Global; Terra de Direitos, 2023).
Manuela d’Ávila (PCdoB) e Isa Penna (PSOL), à época de seus mandatos, bem como Erika Hilton (PSOL), deputada eleita nas últimas eleições de 2022, foram algumas das parlamentares vítimas de violências políticas de gênero nesse período. Em última instância, essas agressões podem ser transmutadas em assassinato, como o que vitimou a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), em 2018.
De acordo com o relatório divulgado pela IUP (2023), essa conjuntura – ataques pessoais, violência política de gênero e esgotamento mental – contribui para que muitas mulheres tenham abandonado a política nos últimos anos, razão pela qual a criação de ambientes seguros e favoráveis para que os direitos políticos das mulheres sejam plenamente realizáveis contribui para a criação de um cenário democrático paritário.
Representação e representatividade feminina na política: faces da mesma moeda?
Uma vez que mulheres tenham alcançado posições de destaque no cenário político, por meio de cotas ou não, não existe garantia de que mudanças reais ocorrerão em prol do fortalecimento da democracia. Primeiro em razão da dificuldade na manutenção dessa posição, principalmente pela violência política a que são submetidas diariamente. Segundo em virtude daquilo que chamamos de representatividade fictícia ou, meramente, representação.
A representatividade fictícia se refere apenas à representação “simbólica” de mulheres, isto é, olhar e vê-las presentes nas três esferas de poder (executivo, legislativo e judiciário), sem que isso, de fato, traga benefícios à concretização dos direitos das mulheres. Funciona mais como uma atualização “2.0” das estruturas da velha política, visto que mantém as mesmas disposições de outrora, do que um sinal de que estamos no caminho certo.
Tal representatividade é, em maioria, a ofertada pelo neoliberalismo dentro dos canais de comunicação de massa, como a televisão, principalmente aberta – por conta dos horários de propaganda eleitoral gratuita –, e as redes sociais. Esses canais são construtores de discursos, os quais cumprem uma função primordial na formação das subjetividades de quem os escuta. Assim, a ideia comprada é a do feminismo liberal, onde ter mais mulheres em cargos de chefia é suficiente para se atingir a igualdade.
De outro modo, a representatividade substantiva, concreta ou real, é aquela que usa a política como um instrumento de promoção e defesa dos direitos humanos e democráticos das mulheres, com políticas de promoção à saúde sexual e reprodutiva das mulheres, ampliação dos direitos trabalhistas, assistência social às mulheres em situação de vulnerabilidade e recusa aos estereótipos de gênero. Acreditamos na mudança proveniente deste cenário.
Portanto, não será qualquer representação política que garantirá representatividade substantiva. Ou seja, não basta apenas eleger mulheres, sejam elas negras, LGBTQIA+, PCDs ou indígenas. É necessário que estas mulheres sejam aliadas, e estejam alinhadas, à luta feminista, antirracista, indígena, anticapacitista e contra todas as opressões – incluindo aqui a defesa do meio ambiente seguro e habitável como condição sem a qual não há o exercício dos demais direitos.
Realizar essa diferenciação é importante para explicar porquê a eleição de algumas mulheres não promove a mudança almejada, precisamente por levantarem bandeiras conservadoras e agirem, de maneira consciente ou não, em benefício do patriarcado. Exemplo disso é a senadora e ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves (Republicanos-DF), cuja bandeira é a defesa de um conceito de família cristã normativa.
De acordo com Souto e Sampaio (2021), buscar representatividade substantiva é mais importante do que apenas buscar o aumento no número de mulheres eleitas. Embora ações com vistas ao aumento da participação feminina sejam importantes, como a política de cotas, é importante pensar em formas de ampliar esse número verdadeiramente, a fim de alcançar a igualdade de gênero e promover a democracia.
Para os autores, essa se revela uma armadilha do sistema patriarcal reinante, uma vez que adentrar esses espaços já se mostra uma tarefa complicada, mais ainda se a intenção for buscar consolidar as pautas de gênero (Souto; Sampaio, 2021).
Mulheres que já estiveram envolvidas com assuntos políticos no passado ou, ainda, que pertencem a famílias tradicionalmente conhecidas, tendem a se aliar mais aos homens, dado que ainda guardam o imaginário – construído socialmente – de que à eles se deve o sucesso eleitoral. Agora, todavia, utiliza-se do diferencial de ser a representante da ala feminina do partido.
Embora não completamente protegidas, já que ocupam espaços de liderança, observa-se que mulheres alinhadas às pautas hegemônicas estão menos suscetíveis às manifestações de violência política de gênero. Isso é o que indica o levantamento ora mencionado: mulheres alinhadas à esquerda, principalmente as negras, estão mais suscetíveis à violência política de gênero. Portanto, alinhar-se mais à direita também pode funcionar como um “escudo protetor” – não há desafio ao status quo vigente.
É verdade que representatividade também pode carregar um viés subjetivo, ou seja, se sentir representada(o) nas pautas defendidas por alguém no poder varia de pessoa para pessoa. Entretanto, o cenário democrático desejado é aquele que incorpora a demanda por representatividade de todas as diversidades existentes na pólis.
Atualmente, apenas uma parcela minoritária da população – a classe dominante – tem, de fato, seus interesses sendo representados ali, razão pela qual a maioria das políticas públicas ou leis aprovadas dentro das casas legislativas favorecem setores mais conservadores e reacionários, como a bancada ruralista e/ou evangélica. Mais da metade das mulheres eleitas em 2022 para o Congresso Nacional estão alinhadas a essas pautas, favorecendo o desenrolar de contrarreformas sociais.
Diferentemente disso, apenas compreendemos um cenário democrático paritário com a efetiva representatividade substantiva de todas as mulheres, sejam elas brancas, negras, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, com deficiência, cis ou trans, lésbicas, bissexuais e demais diversidades existentes. Frisa-se, com isso, a necessidade da demanda de gênero ser também interseccional, ou seja, de modo a considerar as conexões e cruzamentos de opressões.
No entanto, isso não implica dizer que só mulheres podem defender o direito das mulheres e pleitear políticas de inclusão dentro de espaços públicos. Ou, ainda, que só quem sofre com determinada opressão pode falar sobre e/ou lutar contra ela. Nessa seara, um homem pode ser mais aliado à pauta feminista do que uma mulher, que se afirma aliada enquanto é favorável a projetos de lei que possam vir a prejudicar as mulheres.
Lugar de Fala
É necessário, desse modo, fazer uma ressalva sobre o conceito de lugar de fala, trabalhado pela filósofa Djamila Ribeiro (2019). Costuma-se pensar – principalmente pela massificação do termo trazida pela internet – que o conceito impede que uma pessoa traga sua perspectiva/opinião sobre determinado assunto. É o famoso “não vou falar sobre isso porque não tenho lugar de fala”.
Contudo, lugar de fala é um conceito muito mais analítico que proibitivo, o que significa que ele analisa o lugar do qual a pessoa fala, não a proíbe de falar. Denota que todas(os) podem e devem discutir sobre as diversas opressões existentes na sociedade, mas existem pessoas que falam a partir do lugar de quem é vitimada por determinada opressão – e são essas pessoas que precisam ter suas vozes reconhecidas e representadas.
Segundo Ribeiro, o que se espera com o uso desse termo é que “indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar, e como esse lugar impacta diretamente na constituição dos lugares de grupos subalternizados” (Ribeiro, 2019, p. 85). Isto é, que se reflita criticamente sobre as opressões.
A demanda por um cenário onde mais mulheres ocupem posições de liderança na política advém da necessidade de ter alguém que vivencie, compreenda e defenda a causa das mulheres – bem como a emancipação de todas as outras formas de opressão existentes na sociedade. Todavia, no caso de representatividades fictícias, buscar um candidato que se alie às pautas de gênero pode provocar mudanças bem mais sólidas.
Considerações finais
O atual sistema político brasileiro reflete a supremacia masculina e cisheteropatriarcal vigente na sociedade. Nesse cenário, a política funciona mais como um instrumento de opressão e violação de direitos e menos como a busca pelo bem comum dos cidadãos e cidadãs. Em contrapartida, cada vez mais demanda-se igualdade de gênero nas tomadas de decisão, a fim de que os direitos das mulheres sejam assegurados.
Embora a busca pela igualdade de gênero não deva ser uma busca isolada, mas coletiva, uma vez que beneficia a sociedade como um todo, grupos conservadores e que visam a manutenção das estruturas vigentes oferecem empecilhos à concretização desse objetivo. Desse modo, observamos a fraude às cotas de gênero e o crescente número de violência política de gênero como expressões dessa reação.
Além disso, outra armadilha oferecida pelo sistema é a representatividade fictícia ou falseada. Isso ocorre quando candidatas ou mandatárias, na maioria das vezes muito bem assistidas pelos homens dos seus respectivos partidos, defendem e votam pautas contrárias aos interesses das mulheres em sentido estrito. Embora seja mais “benéfico” se aliar às pautas hegemônicas, essa articulação não produz os efeitos necessários no que tange à concretização dos direitos das mulheres.
Concebemos, dessa forma, um cenário democrático que integre todas as mulheres, de maneira transversal, inclusiva e com atenção às interseccionalidades de gênero, sexualidade, raça e classe. A participação equitativa e substantiva de mulheres na política aponta, no sentido de indicar um desabrochar, a eficácia da democracia e dos Direitos Humanos das mulheres.
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