No Brasil, a maioria dos casos de intolerância religiosa está relacionada ao racismo religioso, herança de nosso impiedoso período colonial. A educação em direitos humanos é um caminho para que todos aprendam a distinguir sem separar.

Por Felipe Pinheiro, para o Instituto Aurora

(Foto: Maurício Santos / Unsplash)

O complexo da existência humana contempla algumas características que, se estudadas da maneira apropriada, são capazes de explicar as razões de nossa organização social e a necessidade de criar normas de conduta aptas a regular a vida comum.

Nota-se que, além de naturalmente sociais – o que implica a necessidade de convivência, também somos seres naturalmente racionais, de forma que temos potencialmente a capacidade de tomar decisões informadas.

Essas decisões, por vezes, são baseadas em raciocínios lógicos e amparadas pelo método científico; por vezes são baseadas em explicações místicas e fundamentadas em doutrinas de fé. Isso porque, além de sociais e racionais, também somos naturalmente emocionais. E essas três características – sociabilidade, racionalidade e sensibilidade – formam a base daquilo que chamamos de dignidade da pessoa humana.

Na doutrina jurídica, o valor dignidade humana foi alçado à posição de “valor fonte” de todos os demais valores, de forma que as necessidades existenciais humanas devem ser protegidas e zeladas pelo Estado e por todos os membros da sociedade.

Essa proteção envolve a garantia de uma ampla gama de direitos aptos a conciliar a convivência cívica com as expectativas pessoais e existenciais de cada um. Nesse aspecto, destaca-se o direito fundamental à liberdade religiosa, que será nosso tema de hoje.

Vamos conferir?

Publicado em 03/05/2023.

O que é intolerância religiosa?

A intolerância religiosa é uma forma de violência física ou moral que implica discriminar, ofender ou agredir de qualquer forma pessoas em razão de suas religiões, cultos, crenças ou práticas religiosas.

O tema voltou a ganhar destaque no Brasil diante do aumento de casos de agressão a praticantes de certos cultos religiosos, especialmente aqueles de matrizes africanas, como a umbanda e o candomblé.

Uma vez que a religião acaba demarcando aspectos próprios da cultura de um povo, o ataque à sua religião acaba sendo, na realidade, uma tentativa de agredir a própria população. Isso demonstra que, no país, os casos de intolerância religiosa estão, em grande parte, relacionados ao racismo e à xenofobia. Daí porque o tema é tão importante.

Intolerância religiosa no Brasil

Um relatório publicado em janeiro de 2023 pelo Observatório das Liberdades Religiosas, com apoio da Unesco, apontou um aumento exponencial na quantidade de casos de intolerância religiosa registrados entre os anos de 2019 e 2022.

Os dados apontam que foram registrados 477 casos de intolerância religiosa em 2019, 353 casos em 2020 e 966 casos em 2021. A queda do número de casos em 2020 ocorreu em função do agravamento da pandemia e das medidas restritivas de circulação. Já em 2022, o Disque 100, canal de denúncia de violações de direitos humanos, registrou 1,2 mil casos de intolerância religiosa. Em 2023, só nos 20 primeiros dias do ano foram registradas 58 ocorrências.

De todas as denúncias registradas, a maior parte foi feita por praticantes de religiões de matrizes africanas, como o candomblé e a umbanda. Isso acontece porque, no Brasil, a intolerância religiosa está, em sua maioria, atrelada a questões étnicas. Vale dizer, no país, a intolerância religiosa se confunde com uma espécie de racismo religioso, herança do racismo estrutural existente no país desde o período colonial.

Os casos de intolerância religiosa também acontecem no meio virtual. Segundo a ONG Safernet, as ofensas online aumentaram 522% no intervalo de um ano. Se entre janeiro e outubro de 2021 foram registrados 614 casos apenas no canal de denúncias da instituição, no mesmo período de 2022 a marca saltou para 3,8 mil denúncias.

Intolerância religiosa é crime?

No Brasil, a liberdade religiosa é um direito fundamental protegido pela Constituição Federal. O texto assegura a liberdade de consciência e de crença, bem como o livre exercício de cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e respectivas liturgias (art. 5º, inciso VI, CF). Também garante que ninguém será privado de seus direitos em razão de suas crenças religiosas ou convicções filosóficas e políticas (art. 5º, inciso VIII, CF).

Ou seja, o direito fundamental à liberdade religiosa garante a prerrogativa de crer nos valores transcendentais que bem entender e o direito de livremente exteriorizar suas crenças e visão de mundo, desde que respeitem os direitos e liberdades das demais pessoas.

Por esse motivo, a intolerância religiosa é crime tipificado no art. 208 do Código Penal. São passíveis de punição com pena de 1 mês a 1 ano ou multa aqueles que ultrajarem, impedirem ou perturbarem, por motivo de crença religiosa, cerimônia ou a prática de culto religioso, ou depredarem ato ou objeto de culto religioso. A pena será aumentada em um terço em caso de emprego de violência.

No início de 2023, a Lei n. 14.532/23 acrescentou ao texto do art. 140 do Código Penal disposição que determina que, caso o crime de injúria consista na utilização de elementos referentes à religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência, a pena para o crime será de 1 a 3 anos de reclusão e multa.

Alguns casos de intolerância religiosa no Brasil

Em janeiro de 2022, um pai de santo foi vítima de intolerância religiosa enquanto celebrava seu culto em um terreiro de candomblé, em Vitória da Conquista/BA. Na tentativa de interromper a cerimônia religiosa, um homem autodeclarado evangélico estacionou um carro de som do lado de fora do terreiro e começou a se manifestar contra a prática religiosa. Segundo ele, a agressão foi uma tentativa de “exorcizar” os praticantes que se aproximavam do local.

Já em abril do mesmo ano, em Joinville/SC, uma garota praticante de umbanda foi agredida por uma colega que não concordou com suas crenças religiosas. Para a agressora, a prática da umbanda é uma forma de “culto ao demônio”.

Mais recentemente, em março de 2023, uma professora da rede pública municipal foi ofendida em um ônibus enquanto seguia para o trabalho, no município de Queimados/RJ, por trajar roupas e colares característicos do candomblé. O motorista do ônibus teria pedido uma Bíblia a outro passageiro para fazer uma “leitura da salvação sobre o céu e o inferno”, proferindo palavras em direção à professora. Segundo testemunhas, ele teria sido aplaudido por alguns passageiros do ônibus.

Os ataques e ofensas às práticas religiosas acontecem em todo o Brasil e revelam uma realidade que deve ser combatida com urgência.

Caminhos para combater a intolerância religiosa

Está certo que todas as práticas discriminatórias, qualquer seja sua natureza, devem ser julgadas e punidas na forma prevista em lei. A publicidade dos casos e consequente condenação pública também auxiliam na regulação das condutas sociais. Contudo, a repressão, ainda que tenha um papel pedagógico importante, se demonstra ineficaz quando o tema é a elevação do patamar civilizatório.

Para isso, algumas ações positivas devem ser tomadas em conjunto com a aplicação da lei penal. O objetivo dessas ações é educar e conscientizar as pessoas a respeito da importância da tolerância e sobre as vantagens coletivas de sermos diferentes.

A educação, portanto, é o melhor caminho para combater a intolerância religiosa. Afinal, ela é fundamental para auxiliar as pessoas no desenvolvimento de habilidades sociais e o sentimento de coletividade. Além disso, estudar aspectos culturais de povos diferentes é importante para desenvolver o respeito e apreço pelas nossas diferenças.

Outra ferramenta importante é o diálogo social. Ele pode ocorrer tanto entre as religiões, permitindo que as pessoas troquem informações sobre seus valores e tradições, quanto por meio de entidades governamentais e da sociedade civil. Promover debates, incentivar festas tradicionais religiosas e outras políticas de inclusão são fundamentais para combater a intolerância religiosa.

Nesse aspecto, a mídia tem papel fundamental, seja para divulgar conhecimento sobre as diferentes culturas e religiões, trazer publicidade a debates e eventos públicos, além de promover a tolerância religiosa por meio de campanhas publicitárias. O exemplo de alguém que admiramos sempre ajuda a transformar comportamentos.

As redes sociais também podem auxiliar da mesma maneira, com a vantagem de seu potencial para alcançar um público mais jovem e espalhar a rede de tolerância com muito mais velocidade.

Como a educação em direitos humanos pode ajudar a prevenir a intolerância religiosa?

A educação em direitos humanos é uma educação em valores. Esse processo transcende a educação formal e tem como objetivo transmitir os valores da coletividade e solidariedade a fim de provocar uma transformação ampla na sociedade, fazendo com que cada pessoa se enxergue como um veículo de promoção do bem comum.

Em relação à intolerância religiosa e outras práticas discriminatórias, uma pessoa desconectada de valores de coletividade e solidariedade se vê predisposta a, ao se deparar com pessoas diferentes, imediatamente separá-las umas das outras. Por sua vez, quem se conecta com uma cultura de direitos humanos tem a capacidade de distinguir sem separar, a não ser que haja critérios objetivos que justifiquem a contraposição.

Esse é o papel da educação em direitos humanos: estimular uma cidadania ativa e crítica, desenvolvendo em cada pessoa a capacidade de distinguir sem separar, de discordar sem depreciar, de criticar sem destruir. A noção de responsabilidade coletiva e o aculturamento sobre a diversidade de valores que existem entre os diferentes povos é o caminho para extinguir a intolerância religiosa.

O Instituto Aurora tem como missão defender e promover a educação em direitos humanos. Durante a pesquisa “Panorama da Educação em Direitos Humanos: órgãos, políticas e ações”, entrevistamos responsáveis pela EDH em órgãos dos estados brasileiros. Dentre os temas trabalhados na Educação em Direitos Humanos, a questão da intolerância religiosa foi citada pelo Maranhão, que realiza campanhas educativas sobre este e outros temas. A pesquisa completa, bem como as publicações anteriores, está disponível para download gratuito.

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Algumas referências que usamos neste artigo:

Código Penal

Constituição Federal

TAVARES, André Ramos. “O direito fundamental ao discurso religioso: divulgação da fé, proselitismo e evangelização”. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 3, nº 10, p. 17-47, abr./jun. 2009.

Pontes ou muros: o que você têm construído?
Em um mundo de desconstrução, sejamos construtores. Essa ideia foi determinante para o surgimento do Instituto Aurora e por isso compartilhamos essa mensagem. Em uma mescla de história de vida e interação com o grupo, são apresentados os princípios da comunicação não-violenta e da possibilidade de sermos empáticos, culminando em um ato simbólico de uma construção coletiva.
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Quem é você na Década da Ação?
Sabemos que precisamos agir no presente para viver em um mundo melhor amanhã. Mas, afinal, o que é esse mundo melhor? É possível construí-lo? Quem fará isso? De forma dinâmica e interativa, os participantes serão instigados a pensar em seu sistema de crenças e a vivenciarem o conceito de justiça social. Cada pessoa poderá reconhecer suas potencialidades e assumir a sua autorresponsabilidade.
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A vitória é de quem?
Nessa palestra permeada pela visão de mundo delas, proporcionamos um espaço para dissipar o medo sobre palavras como: feminismo, empoderamento feminino e igualdade de gênero. Nosso objetivo é mostrar o quanto esses termos estão associados a grandes avanços que tivemos e ainda podemos ter - em um mundo em que todas as pessoas ganhem.
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Liberdade de pensamento: você tem?
As projeções para o século XXI apontam para o exponencial crescimento da inteligência artificial e da sua presença em nosso dia a dia. Você já se perguntou o que as máquinas têm aprendido sobre a humanidade e a vida em sociedade? E como isso volta para nós, impactando a forma como lemos o mundo? É tempo de discutir que tipo de dados têm servido de alimento para os robôs porque isso já tem influenciado o futuro que estamos construindo.
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Formações customizadas
Nossas formações abordam temas relacionados à compreensão de direitos humanos de forma interdisciplinar, aplicada ao dia a dia das pessoas - sejam elas de quaisquer áreas de atuação - e ajustadas às necessidades de quem opta por esse serviço.
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Consultoria em promoção de diversidade
Temos percebido um movimento positivo de criação de comitês de diversidade nas instituições. Com a consultoria, podemos traçar juntos a criação desses espaços de diálogo e definir estratégias de como fortalecer uma cultura de garantia de direitos humanos.
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Minha empresa quer doar

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    Depoimento de professora de Campo Largo
    Em 2022, nosso colégio foi ameaçado de massacre. Funcionárias acharam papel em que estava escrito o dia e a hora que seria o massacre (08/11 às 11h). Também tinha recado na porta interna dos banheiros feminino e masculino. Como gestoras, fizemos o boletim de ocorrência na delegacia e comunicamos o núcleo de educação. A partir desta ação, todos as outras foram coordenadas pela polícia e pelo núcleo. No ambiente escolar gerou um pânico. Alunos começaram a ter diariamente ataque de ansiedade e pânico. Muitos pais já não enviavam os filhos para o colégio. Outros pais da comunidade organizaram grupos paralelos no whatsapp, disseminado mais terror e sugestões de ações que nós deveríamos tomar. Recebemos esporadicamente a ronda da polícia, que adentrava no colégio e fazia uma caminhada e, em seguida, saía. Foram dias de horror. No dia da ameaça, a guarda municipal fez campana no portão de entrada e tivemos apenas 56 alunos durante os turnos da manhã e tarde. Somente um professor não compareceu por motivos psicológicos. Nenhum funcionário faltou. Destacamos que o bilhete foi encontrado no banheiro, na segunda-feira, dia 31 de outubro de 2022, após o segundo turno eleitoral. Com isto, muitos estavam associando o bilhete com caráter político. A polícia descartou essa possibilidade. Enfim, no dia 08, não tivemos nenhuma ocorrência. A semana seguinte foi mais tranquila. E assim seguimos. Contudo, esse é mais um trauma na carreira para ser suportado, sem nenhum olhar de atenção e de cuidado das autoridades. Apenas acrescentamos outras ameaças (as demandas pedagógicas) e outros medos.
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