Este artigo tem como objetivo mapear o crescimento do neonazismo no Brasil e oferecer uma solução estrutural às violências praticadas por esses grupos. Por meio do ensino para o pensamento crítico e do fortalecimento da história e memória daquilo que foi o Holocausto, a Educação em Direitos Humanos é apresentada como aliada no processo de desnazificação do país.
Por Gabriela Assad de Sousa, para o Instituto Aurora
(Foto: Roque de Sá / Agência Senado)
Frente ao crescimento do neonazismo no Brasil e as violências decorrentes dele, faz-se necessário elaborar uma estratégia para seu enfrentamento. Tal estratégia inclui, dentre outras, a elaboração de um plano de Educação em Direitos Humanos (EDH) para desnazificação.
Para que isso seja possível, é necessário, inicialmente, contextualizar acerca daquilo que levou ao surgimento do Partido Nacional-Socialista Alemão, o partido nazista de Hitler, na Alemanha. Além disso, é necessário considerar a posição do Brasil, que possuía como chefe de Estado Getúlio Vargas (1930-1937), frente ao nazismo.
Em um segundo momento, será analisado como o neonazismo se fixou na sociedade brasileira, os pontos de ruptura e de aprofundamento com tal ideologia nazista hitlerista. Além disso, serão analisados quais os simbolismos e mitos que fundamentam tais grupos neonazistas.
Em sequência, serão analisados os discursos utilizados pela ideologia neonazista. Isso porque eles se baseiam em uma propaganda de massa de suposta superioridade racial e na projeção de uma “guerra de raças”, articulando a linguagem de maneira massificada e mecânica – visando a inibição do pensamento crítico.
Além disso, será evidenciada a relação entre o neonazismo e o Governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022). Não apenas pelos discursos neonazistas utilizados pelo ex-presidente e membros do seu governo, mas também porque foi encontrada carta do ex-chefe de Estado endereçada aos apoiadores neonazi.
Resultado disso é o aumento de manifestações neonazistas no país. Tais manifestações estão relacionadas ao aumento da quantidade de células neonazistas, especialmente nas regiões sul e sudeste. Igualmente preocupante são os casos de violências nas escolas, sendo considerado o maior número em 20 anos.
A fim de superar esses números, é necessário realizar um trabalho de desnazificação da sociedade brasileira. A proposta deste texto possui, no reforço à história e à memória e na educação para o pensamento crítico, a Educação em Direitos Humanos como aliada na construção de um presente e futuro democráticos e de respeito aos Direitos Humanos.
Tópicos deste artigo:
- Contexto de surgimento da ideologia nazista
- O que é o neonazismo?
- Educação em direitos humanos (EDH): aliada pela desnazificação
- Considerações finais
Publicado em 18/10/2023.
Contexto de surgimento da ideologia nazista
O nazismo é a ideologia política oriunda do Partido Nacional-Socialista Alemão, o Partido Nazista, liderado por Adolf Hitler, na Alemanha, em 1920. Tal partido era formado por ex-combatentes e integrantes da classe média alemã, que tinham como propósito recuperar a “pureza” e “dignidade” perdida no país. Esse grupo deu base para Hitler elaborar aquilo que seria o “Terceiro Reich” alemão.
Tal sentimento de insatisfação e recuperação da soberania militar do país se deu em virtude da derrota da Alemanha na 1ª Guerra Mundial (1914-1918), da assinatura do Tratado de Versalhes (1919) e da recessão econômica que alastrava o país, que piorou com a Crise de 1929 – iniciada pela quebra da bolsa de Nova York. Nesse cenário, a extrema-direita encontrou terreno fértil.
Antes de tomar efetivamente o poder, Hitler tentou um Golpe de Estado. Contudo, acabou preso em 1923. Foi na prisão que ele articulou todo o programa nazista a ser implantado na Alemanha e escreveu o seu mais famoso livro entre os nazistas.
O Partido Nazista se organizou dentro da República de Weimar e Hitler se tornou chanceler, em 1933. Após o parlamento alemão ser incendiado – culpa atribuída aos comunistas –, Hitler e seus compatriotas nazistas infiltrados no governo pressionaram o presidente em exercício a lhes conceder maiores poderes, e ele assim fez.
Utilizando do argumento de “perigo iminente”, propôs um decreto que suspendeu diversos direitos sociais, como liberdade de expressão, direito de reunião, Habeas Corpus, permitindo, além disso, a construção de campos de concentração. Somado a isso, houve a aprovação da Lei Habilitante, que permitia a promulgação de leis sem a aprovação do parlamento.
Em 1934, após a morte do então presidente Von Hindenburg, Hitler acumulou os cargos de chanceler, de presidente e de Führer, se autodenominando “senhor” e “líder dos alemães”. O poder de Hitler nunca foi contestado judicialmente em virtude das normas editadas. O regime nazista estava instaurado.
Hitler tinha em mente a ideia de um “espaço vital”, o império alemão, invadido e dominado pelos germânicos, tendo em vista que, para ele, existiam raças que são “superiores” e devem dominar e, outras, “inferiores”, devem ser dominadas.
O Holocausto, como ficou conhecida essa perseguição e assassinato em massa, era parte do plano hitlerista conhecido como “Solução Final”. O extermínio de judeus e de todas aquelas pessoas não favoráveis ao regime foi realizado com a anuência/concordância de muitos alemães, que acreditavam que suas ideias levariam, de fato, à prosperidade do país.
Ressaltamos que algo similar ocorreu com o Fascismo (1922-1943), na Itália, regime liderado por Benito Mussolini. Apesar das suas particularidades, o fascismo guarda muitas semelhanças com o nazismo, não só pelo período em que sucederam, mas porque ambas são ideologias de extrema-direita, autoritárias, conservadoras, que possuíam um nacionalismo acentuado, eram imperialistas e militaristas. Por essa razão, muitas vezes utilizamos a nomenclatura nazifascismo, como uma mistura das características de ambos os regimes.
Tal período se encerrou simbolicamente com a derrota da Alemanha na 2ª Guerra Mundial (1939-1945), na qual as potências dos Aliados (União Soviética, Reino Unido, EUA, e França) derrotaram as potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Após a invasão de Berlim, pelo exército vermelho da ex-URSS, Hitler cometeu suicídio.
Brasil
Em 1936, durante o 1° Governo de Getúlio Vargas (1930-1937), o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou a deportação de Olga Benário, militante comunista e judia, pra Alemanha nazista, mesmo sabendo o que aconteceria com ela. Olga, à época, estava grávida de 7 meses de sua filha, Anita Prestes. Em 2022, a Ministra Carmen Lúcia sugeriu que o STF “pedisse perdão” pela deportação de Olga.
Getúlio se aproximou cada vez mais da Alemanha hitlerista e demorou a somar forças com os Aliados na 2ª Guerra Mundial. Prova disso é que, entre os anos 1937 e 1945, com a Ditadura do Estado Novo implantada, o Brasil sediou a maior filiação do partido nazista fora da Alemanha, com três mil membros, segundo o Relatório de Eventos antissemitas e correlatos no Brasil (2023).
Maria Luiza Tucci Carneiro, professora de História da USP, afirma que, nesse período, o Brasil negou mais de 16 mil vistos a judeus que fugiam do Holocausto de Hitler. Segundo ela, a partir de 1937, o governo Vargas emitiu, ao menos, 26 circulares secretas impedindo a concessão de vistos. Em uma época em que o Brasil estimulava a migração de europeus, brancos e cristãos, os judeus eram considerados “indesejáveis para a formação étnica do povo brasileiro”.
Contudo, apesar do que muitos pensam, isso não ficou no passado. Na realidade, é um passado-presente que insiste em nos assombrar.
O que é o neonazismo?
A nomenclatura “Neonazismo”, com ênfase no prefixo “neo”, novo, sugere que há uma atualização da ideologia nazista.
A ideologia nazista é uma ideologia de extrema-direita que se funda no racismo, na eugenia – crença baseada em uma suposta superioridade genética –, no antissemitismo – ódio aos judeus –, no conservadorismo, no ultranacionalismo, autoritarismo e imperialismo da Alemanha, sob o comando de Hitler.
O ódio nazista era/é destinado a todos aqueles que não são como eles, o “Outro”, ou seja, judeus, pessoas com deficiência, homossexuais, lésbicas, ciganos, comunistas, opositores ao regime, pessoas consideradas “desviantes” ou “impuras”, em resumo, todas as pessoas que estariam “desonrando” o que entendiam por pureza da “raça ariana”. Tal ódio generalizado, que inicialmente estava “apenas” no discurso, culminou no extermínio em massa de mais de 6 milhões de pessoas.
Portanto, o neonazismo é tudo aquilo que foi o nazismo, sob uma nova roupagem – o que pode ser ainda mais perigoso. Contudo, é necessário dizer que, da mesma forma em que há pontos de semelhança, há pontos de aprofundamento e pontos de ruptura. Isso porque essa atualização pode variar de acordo com o país, território, onde ele se manifesta.
Os discursos neonazistas no Brasil, por exemplo, são diferentes dos discursos proferidos por líderes neonazistas na Itália – outro país em que o neonazismo ganha força. Logo, neonazismo é neonazismo em qualquer lugar, mas possui características únicas a depender de onde se localiza.
No Brasil, temos aquilo que ficou conhecido como Neonazismo à brasileira, ou seja, as marcas históricas da sociedade brasileira fazem com que as manifestações neonazistas tenham um cunho colonial, racista, xenófobo contra nortistas ou nordestinos e etnocida contra indígenas e comunidades tradicionais. Isso é um ponto de aprofundamento da ideologia racista nazista.
O discurso neonazista brasileiro é o de ódio às mulheres, às pessoas negras, aos indígenas, à comunidade LGBTQIA+, às pessoas com deficiência, aos nordestinos e nortistas, às pessoas que professam religiões de matriz africana e aos comunistas. Para entender mais sobre discurso de ódio, temos o artigo “Discurso de ódio: ascensão da extrema-direita e práticas discursivas”.
Percebe-se que, nestes discursos, ainda há características semelhantes ao nazismo da Alemanha hitlerista, como o ódio aos comunistas – ou contra aqueles que entendem por comunistas –, aos opositores políticos, às pessoas com deficiência, aos judeus e às mulheres. São pontos de semelhança.
Contudo, há pontos de ruptura, como é o caso da xenofobia contra nordestinos, pois eles seriam “os culpados por toda as mazelas da sociedade brasileira” e “não sabem votar”. Ruptura porque é um discurso de ódio contra nacionais, ou seja, apesar do discurso patriota e nacionalista da extrema-direita, o ódio se volta contra cidadãos e cidadãs que integram o território brasileiro. Notamos um aumento desses discursos pós eleições de 2022.
Mas, ao mesmo tempo, esse é um ponto de aprofundamento, pois torna essa ideologia ainda mais forte. Os discursos de ódio neonazistas contra nordestinos e nortistas aumentam a força do discurso separatista no país. O discurso separatista é aquele que vê o sul, sudeste e parte do centro-oeste do Brasil como portador de “superioridade” em relação aos demais habitantes. Fortalece, portanto, o racismo presente na ideologia neonazi.
Percebe-se uma semelhança discursiva aqui, já que Hitler propôs uma guerra racial não só contra judeus, descendentes ou imigrantes, mas contra aqueles nacionais, alemães, que possuíam aquilo que ele caracterizava de “inferioridade racial” e “incapacidade” física/mental para o trabalho.
Dessa forma, verifica-se que não é porque o neonazismo no Brasil funciona de maneira diferente daquilo que foi o nazismo na Alemanha que é “menos pior” ou “menos preocupante”. Na verdade, as características e particularidades dentro do território brasileiro fizeram com que houvesse não só semelhança como um aprofundamento de tal ideologia.
Sob quais simbolismos esses grupos se amparam?
Os termos utilizados pelos neonazistas são, preponderantemente, voltados ao “sangue alemão”, à “pureza do sangue”, às “mitocôndrias”, ou seja, são terminologias emprestadas da biologia. Existia, inclusive, um documento nazi delimitando o percentual genético que uma pessoa poderia ter de ascendência judaica para ser considerada cidadã alemã: menos de ¾ de sangue judeu.
Nesse sentido, foi buscado na mitologia nórdica a fundamentação para tal alegação racista. Isso porque o “Sangue Nórdico” era visto como aquele que porta a imortalidade simbólica. E, por herança genética, os alemães o traziam.
Da mesma forma, o “sangue ariano” é garantia de imortalidade, purificação, sendo necessário, portanto, a sua perpetuação. Mais ainda, a sua proteção contra aqueles que “sujariam” o sangue.
De acordo com Adriana Dias, antropóloga e pesquisadora do neonazismo no Brasil, “a luta dos arianos visava, portanto, a imortalidade, mas esta eternidade virtual só materializaria-se, no entanto, se ‘o Sangue’ permanecesse puro: isto garantiria a evolução ‘da Raça’ e ‘o Reich’ seria a força transcendente que garantiria esta imortalização.” (DIAS, 2007, p. 155).
A explicação através de mitos é muito utilizada por neonazistas. E os mitos, como se sabe, se projetam à sombra da linguagem, ou seja, se fortalecem quanto mais são ditos, defendidos e propagados. Essa propagação acontece, principalmente, dentro de grupos e comunidades na internet.
Um dos principais mitos utilizados por neonazistas é o mito de Thor, filho de Odin. Thor, o Deus da mitologia nórdica, representaria a força da natureza, é o “protetor da humanidade” contra aqueles que a querem destruir. Tal força hierarquiza raças e sexos: brancos e não brancos, homens e mulheres.
A Thor, em muitos sites e comunidades neonazis na internet, é atribuída a figura de defensor do seu povo, do seu reino (Asgard) e da terra dos homens (Midgard). Um ponto a se destacar é que uma das representações rúnicas do martelo de Thor (Mjolnir) é pela suástica.
O apelo à tradição nórdica também aparece. Alguns sites afirmam que o martelo de Thor era utilizado como amuleto protetor pelos Vikings, para proteção e força. Mais ainda, “para os neonazistas, foi este sinal que posteriormente teria sido ‘copiado pelos cristãos e transformado em sinal da cruz, ele significava proteção imediata e benção para todos que o faziam’”. (DIAS, 2007, p. 177).
Hitler carregaria um “poder simbólico” que também cumula os poderes do martelo de Thor e do sangue Viking – possuidor de força. Conforme Dias, “o austríaco restauraria o povo alemão, por conhecer os poderes mágicos e simbólicos dos antepassados e por manipular, também como um xamã, a carga simbólica necessária”. (DIAS, 2007, p. 202).
Acerca da recuperação simbólica Viking, é interessante mencionar o ocorrido no Capitólio, nos Estados Unidos, em apoio a Donald Trump, ex-presidente e representante da extrema-direita. Nota-se que a maioria esmagadora dos invasores era composta de homens, brancos, com um determinado tipo físico, utilizando ornamentos/indumentárias típicas de um cenário de Game Of Thrones.
A suástica, símbolo apropriado pelo partido nazista, mas que foi utilizada por muitas culturas desde a antiguidade, passa a carregar um discurso de ódio não-verbal por quem a utiliza. A suástica, nesse sentido, é instrumento de poder que permite o exercício do controle sobre os demais – aqueles que não integram o padrão ariano a ser defendido.
Em virtude da criminalização, no Brasil, do uso da suástica e divulgação do nazismo, por força do art. 20, §1°, da Lei 7.716/89, muitos grupos neonazis fazem uso de outros simbolismos que não estão explicitados na lei, portanto, não criminalizados, para se reconhecerem e reforçarem sua ideologia nazi.
Exemplos de símbolos nazistas, e que não são vistos como tais, são a cruz celta, a cruz germânica, o 88 (que remete à 8° letra do alfabeto, H, repetida, em alusão ao cumprimento nazi Heil Hitler), o 14 (por conta dos “14 porquês” de David Lane, líder nazi estadunidense falecido na prisão, em 2007, e cujos escritos possuem amplo alcance em grupos na internet), Valknut – símbolo nórdico constituído por três triângulos entrelaçados – e o próprio martelo de Thor – símbolo máximo do Wotanismo.
Quais os discursos utilizados?
O discurso de superioridade racial nazista se refere à ideia de que existem raças superiores e inferiores. Neste caso, a raça alemã seria a raça “pura” e as outras, não somente aquela formada pelos judeus, mas por todos aqueles que divergiam do “padrão ariano”, seriam as raças “impuras”.
A máquina de propaganda nazista dizia a todo momento que os judeus eram os responsáveis pela recessão econômica pós-1ª guerra, que homossexuais eram “impuros” ou que pessoas com deficiência eram “inúteis à sociedade” .
As imagens de mulheres judias e homens judeus eram representadas com características animalescas e disformes. Sempre é válido mencionar que a tática de animalização e sub-humanização de determinados povos é utilizada pelo dominador para justificar sua dominação.
O racismo é, para Michel Foucault, “o modo em que, no âmbito da vida que o poder tomou sob sua gestão, se introduz uma separação, a que se dá entre o que deve viver e o que deve morrer.”. (FOUCAULT, 1993, p. 206). Ou seja, o racismo é essa separação sob a proteção da raça construída, a hierarquia produzida entre as raças produzidas, na qualificação como umas “boas” e outras “más”. Cria-se, assim, um “inimigo” a ser combatido.
Além disso, o racismo impõe uma lógica bélica, militarista, que estabelece uma relação entre a vida de uns e a morte de outros. A lógica de campo de guerra, “mate ou morra”, ganha força. Assim, quanto mais “inimigos” eliminados, maior é a possibilidade de sobrevida da “espécie” – esses termos emprestados da biologia são extremamente importantes para a ideologia nazi.
O racismo molda aquilo que Foucault denominou de biopolítica. Biopolítica é o controle da vida e da morte, tomada pelo Estado, que passa a controlar as taxas de natalidade e mortalidade da população. A biopolítica passa a definir os campos de intervenção de poder. Tal poder de regulação consiste em “fazer viver e deixar morrer” (FOUCAULT, 1993, p. 199).
Isso se consolidou nos discursos pré-holocausto, ou seja, naqueles dizeres alemães de que os judeus estavam “afundando a economia do país”, de que iriam “pôr fim à pureza da raça ariana”, etc. Era necessário, assim, lutar contra aqueles que colocavam em risco a sobrevivência da raça. Tal discurso ganhou fôlego entre as massas.
Foucault chama de “guerra de raças” esse discurso no qual se baseia a ideia de que uma raça é inferior e merece ser extinta, caso contrário, poderia levar à “impureza” biológica/racial (sempre branca).
Tal discurso, de “guerra de raças”, tem funcionado a partir do séc. XX, como uma “contrahistória”. Isso significa que o discurso funciona como uma “cerimônia” que produz uma realidade de justificação/reforço do poder existente – Status quo.
Nesse sentido, se forma, na sociedade, um sentimento amplificado, massificado, de “guerra racial”. Para ele, o discurso de guerra de raças é um discurso de poder. Mais ainda, é um discurso que coloca uma raça como verdadeira – detentora do poder e da norma – e a outra como um perigo biológico contra ela
Esse discurso de “guerra racial” é um princípio, um motor, de segregação, eliminação e normalização de determinados lugares de poder e inferioridade na sociedade. Essa “batalha” é uma relação de forças que impõe o Status de vencedores e vencidos, na qual os vencidos se submeteriam aos vencedores.
A figura do “líder”, “soberano”, ou seja, aquele que personifica a figura mitológica de salvador, messias, representante da ideologia nazista, aparece na maioria desses discursos. O soberano constituído substituiria os indivíduos. Ele personaliza, portanto, o poder de “toda a nação” – daqueles que lhe colocaram no poder.
Nesse sentido, Foucault ressalta que a soberania, nestes estados/nações, possui agora não a função unificadora, mas subjugadora. A glória do soberano representa o triunfo de uns e a submissão de outros.
O triunfo seria daqueles que se identificam enquanto sujeitos “puros”, da raça ariana, que reivindicam uma superioridade biológica: homens, brancos, classe média/alta, cis-heterossexuais, nacionais, sem deficiência e não judeus.
De outro modo, a submissão seria daqueles à quem consideram como “impuros”, inferiores biologicamente e que “arriscam a soberania da nação”: mulheres, negras e negros, indígenas, classe baixa/média-baixa, LGBTQIA+, imigrantes, pessoas com deficiência ou doenças raras, judeus e, no caso brasileiro, pessoas que professam religiões de matriz africanas, como umbanda, candomblé, jêje, etc.
A linguagem utilizada, além disso, segue um padrão: repetitiva, mecânica e uniformizadora de opinião. É repetitiva porque é feita em cima de termos específicos que servem como “guarda-chuva”. Ela é mecânica porque funciona em uma lógica de fábrica taylorista – produção ostensivamente repetitiva, na qual há a inibição do pensamento crítico. É, dessa forma, uniformizadora de opiniões, uma vez que tem parcela da população repetindo o mesmo discurso.
Sendo assim, o padrão da linguagem é estrategicamente alienante e desprovido de capacidade crítica. Ou seja, ao mesmo tempo que repete, manipula, mecaniza e produz esvaziamento, provoca, naqueles que a reproduzem, alienação de si mesmo e do seu entorno – impossibilitando qualquer desenvolvimento do pensamento crítico. Os termos são de fácil reprodutibilidade, ou seja, a mensagem transmitida é a mesma para todos e todos a encaminham para os seus da mesma forma como foi recebida: pronta.
Esse padrão, contudo, se manifesta em todos os governos de extrema-direita existentes, para muito além de Hitler.
Qual a relação entre o Bolsonarismo e o Neonazismo?
O Governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), como personagem representante dessa ideologia de extrema-direita, representou, e ainda representa para muitos de seus apoiadores, um projeto político de poder. Mais ainda, a semelhança do governo Bolsonaro com tal ideologia nazista não é coincidência.
O que levou à ascensão de Hitler, na Alemanha, de Mussolini, na Itália, do Golpe Civil-Militar (1964-1985) ou à eleição de Bolsonaro, no Brasil, foi, em teoria, a ideia de que existia uma crise econômica, política e social no país, que deveria ser evitada. Além disso, a projeção da culpa, da responsabilidade por essa tal “crise” em minorias e a pretensa defesa da “nação” sobre as demais, é característica comum a todos esses regimes.
Tais governos estabeleceram, em grande proporção, um projeto político de morte, extermínio, dominação e subjugação de um grupo populacional em detrimento de outro. Aqui, tal soberania era representada pela figura do “Mito”.
Bolsonaro se elegeu sob o amparo dos discursos sobre a crise econômica, a corrupção – praticada pelos “governos comunistas”, que nunca existiram no país –, a existência de direitos trabalhistas “que prejudicam o empresário”, a defesa da “família tradicional brasileira” diante das feministas e LGBTQIA+, o medo da perda dos “valores cristãos” etc.
Nesse sentido, o ex-presidente já negou a existência do Holocausto repetidas vezes e, durante evento evangélico no Rio de Janeiro, sugeriu que ele deva “ser perdoado”. Tal negação é característica do discurso neonazista, o qual afirma existir um “holoconto” em cima daquilo que foi o Genocídio de mais de seis milhões de pessoas, a maioria delas judeus.
Para a ideologia neonazi, o holocausto foi, na verdade, a tentativa de extermínio da nação e cultura alemã. Isso se assemelha ao discurso da extrema-direita brasileira quando nega o crescimento dos ataques às religiões de matriz africana e afirma haver perseguição de evangélicos. O negacionismo é um fator relevante na construção discursiva neonazi e bolsonarista.
Além disso, o governo Bolsonaro foi marcado pelo extremo nacionalismo (ufanismo) e pela defesa da supremacia brasileira – em discurso, já que a base desse nacionalismo é falsa. Exemplo disso é o reiterado slogan “Brasil acima de tudo”. Vale salientar que o slogan “Alemanha acima de tudo” fazia parte da campanha nazista e chegou a integrar o hino alemão durante o regime hitlerista.
A base militarista e masculinista, especialmente quando incentivou o uso e facilitou a compra de armas de fogo por civis – visando uma falsa “proteção/defesa da família” –, como sinônimo de virilidade e poder masculino, não é coincidência. O ideal de “família” à quem desejam proteger é sempre o mesmo: patriarcal, branca, nacional, com traços europeizados, sem deficiência, classe média/alta e não judia.
Saudado por Bolsonaro durante a votação do golpe da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016, Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador da Ditadura Civil-Militar, foi promovido a marechal do exército em 2021, o que conferiu pensão vitalícia de R$ 15.307,90, para cada uma das suas duas filhas. Falecido em 2015, Ustra foi condenado em 2008 pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) pelos crimes cometidos.
As políticas implementadas em seu governo possuíam, também, uma base profundamente eugenista, por isso a omissão e conivência frente às emergências indígenas e negras.
Tal fato pode ser exemplificado pela omissão frente à crise humanitária Yanomami. Apesar da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) ter enviado ofício ao Ministério da Justiça reportando a presença de garimpos ilegais na terra indígena, nada foi feito. Durante a gestão bolsonarista, as mortes por desnutrição entre os Yanomamis cresceram 331% em comparação aos 4 anos anteriores.
Durante a pandemia da COVID-19, o então presidente negou sua emergência, defendeu a “imunidade de rebanho” frente à doença – lembremos de Manaus como laboratório dessa teoria – e o uso da cloroquina, remédio utilizado no tratamento de malária, mas que não possui comprovação científica contra o vírus.
O atraso na compra das doses do imunizante, ignorando mais de 85 e-mails da Pfizer, é o maior exemplo da tentativa de implementação política da eugenia racial no país. Isso porque as parcelas da população mais prejudicadas com a doença são aquelas mais atacadas pelo governo: pobres, negras, em situação de vulnerabilidade social, com deficiência ou comorbidade.
Além disso, a afirmação do ex-presidente de que possui “físico de atleta” e por isso a COVID-19 não lhe atingiria, funciona como uma tentativa de reiterar o ideal de “imortalidade” e força da raça ariana sobre as demais. De igual modo, a afirmação constante de Bolsonaro sobre sua “força”, sua “virilidade” (à exemplo do fatídico “imbrochável”, “imorrível” e “incomível”), remete ao mesmo padrão de superioridade racial nazista.
O ex-Secretário de Cultura do Governo Bolsonaro, Roberto Alvim, fez discurso semelhante ao de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista. Não suficientemente criminoso, ele proferiu tais dizeres ao som de Richard Wagner, maestro alemão e compositor favorito de Hitler. Após as críticas, inclusive, dos presidentes da Câmara e do STF, Alvim foi demitido. Entretanto, é impensável o desconhecimento do presidente quanto a seu posicionamento.
Além disso, a ex-Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), Damares Alves, cumpria papel fundamental na disseminação do ódio e desinformação bolsonarista. Durante um culto realizado na Assembleia de Deus, no dia 09/10/22, dias antes do 2° turno das eleições, a então ministra afirmou que crianças e adolescentes, na Ilha do Marajó (PA), eram vítimas de tráfico sexual, estupros e sofriam mutilações pra “facilitação sexual”.
Porém, a Secretaria Nacional de Justiça (Senajus), do Ministério da Justiça, afirmou que não tem nenhuma informação de exploração sexual no Marajó. Após a repercussão do caso, Damares afirmou que fala se baseou em “conversas com o povo nas ruas”. Portanto, tal conto não se passou de uma inverdade usada para espalhar o medo e inflamar as discussões eleitoreiras.
O que não se sabe sobre o discurso proferido pela ex-ministra, contudo, é a similaridade entre ele e uma história publicada em um site neonazista. Na referido texto, o autor relata a prática sexual com meninas em situação de escravidão sexual, como “bonecas humanas”. Mas não somente isso, os termos utilizados por Damares são os mesmos.
Prova cabal de vínculo entre Bolsonaro e o neonazismo, a pesquisadora Adriana Dias encontrou carta de Bolsonaro em um site neonazista, escrita em 2004, quando era Deputado Federal (RJ) pelo Partido Progressista (2003-2007). No texto, o ex-presidente afirmou categoricamente que todo retorno que recebia desses grupos apoiadores se transformava em “estímulo ao seu trabalho”. Ele finalizou a carta dizendo: “vocês são a razão da existência do meu mandato”.
Diante disso, Dias sugere que, ao invés de utilizar a terminologia “bolsonarismo”, para nomear o fenômeno de extrema-direita personificado na figura do ex-presidente, é necessário fazer uma troca e nomear esse fenômeno corretamente: “bolsonazismo”.
Crescimento das manifestações neonazistas no Brasil
É notável o peso das falas inflamatórias do ex-presidente, tanto para aqueles que só estavam esperando a legitimação discursiva de ódio para colocar em prática o que estava adormecido, quanto para criar novos focos de extremismo de direita. Tal legitimação discursiva acarretou um aumento considerável nos crimes de ódio (em razão de gênero, raça e origem étnica), nas violações de Direitos Humanos e nas manifestações públicas de caráter nazifascista.
Prova disso é que houve um aumento exponencial das células neonazistas no Brasil. Em 2015, a pesquisadora Adriana Dias registrou 72 células. Já em 2019, esse número aumentou para 334 e em 2021 passou para 530 células. Ao final de 2022, contudo, registrou-se a existência de 1.117 células neonazistas no país. Foi um aumento de 210% em um ano.
Segundo levantamento feito por Dias, a maior concentração de células neonazi são nas regiões Sul e Sudeste do país, com 676 e 337 células, respectivamente. O estado com maior concentração de células é Santa Catarina (SC), com 320. Em segundo lugar no ranking estadual está São Paulo (SP), com 268 células. A menor concentração dessas organizações fica no Tocantins (TO), com 2 células.
Exemplo dessas manifestações neonazis foi a ocorrida em São Miguel do Oeste, Santa Catarina (SC). Em ato a favor de Bolsonaro e contra o resultado das eleições do dia 30/10/22, manifestantes fizeram gesto similar ao realizado na Alemanha nazista em saudação ao Führer, enquanto cantavam o hino nacional diante de um tanque de guerra.
Da mesma forma, no dia 12/11/22, o Centro de Formação Paulo Freire, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), em Caruaru (PE), foi invadido e pichado com a suástica e a palavra “mito”. A casa da coordenadora do Centro também foi invadida e incendiada.
Houve, além disso, um crescimento de grupos neonazistas na internet. A internet, sem dúvida, possibilita o aumento do alcance desses grupos, tendo em vista a fluidez e conexão interpessoal nesse espaço. Mas, mais ainda, é um território ainda pouco judicializado e que, a depender da plataforma, pode garantir anonimato aos seus usuários.
De acordo com levantamento feito pelo Núcleo Jornalismo no Telegram, dos 46 grupos neonazistas monitorados, 45 foram criados após 2018 e 20 deles surgiram em 2022. Entretanto, quando solicitados, a plataforma se recusou a fornecer dados dos usuários à Polícia, sob a alegação de que estaria “violando os direitos dos usuários à comunicação privada”. Essa “comunicação privada”, contudo, envolve a existência e articulação de grupos neonazis.
A rede social russa VK, dos mesmos criadores do Telegram, apesar de pouco conhecida, é amplamente utilizada por tais grupos. Da mesma forma que a anterior, essa rede ganha adeptos por conta da dificuldade jurisdicional brasileira, especialmente no que tange derrubar algumas publicações de cunho ofensivo, supremacista ou de apologia ao nazismo.
Da mesma forma, outro canal de comunicação com grande aderência entre os grupos neonazis é o Discord. Essa plataforma, que teve seu início vinculado ao mundo gamer, já possui no Brasil o seu segundo maior público. As mensagens disseminadas são de caráter racistas, misóginas, homofóbicas, eugenistas, supremacistas, neonazistas e de incitação ao crime.
Os discursos de ódio propagados são em tom de “piada”, denominado “shitposting”, onde os usuários “brincam” com assassinatos e suicídios. Muitos desses grupos, inclusive, promovem “desafios” de automutilação entre jovens.
Segundo Relatório de Eventos Antissemitas e correlatos no Brasil (2023), em 2019 foram notificados 24 eventos neonazistas e antissemitas, em 2020 foram 35 e em 2021 foram 67. Já em 2022, foram 114 eventos neonazis e antissemitas no país. Tais eventos, entre os anos de 2019 a 2022, mais que quadruplicaram.
De acordo com o relatório, dos 240 eventos ocorridos durante esse período, 24,2% deles ocorreram em ambiente escolar. Esses eventos envolvem agressões verbais, propaganda de cunho nazista, discursos antissemitas, vandalismo e violência física.
Entre 2019 e 2022, no que diz respeito à ocorrência de eventos nazistas e antissemitas em ambiente escolar, houve um aumento de 5 para 43 eventos, em 2022. Dentre o total das ocorrências, 58 eventos durante esses 4 anos, o ano de 2022 responde por 74,13% delas.
Aracruz (ES) viveu o resultado disso. No dia 25/11/22 duas escolas foram invadidas pelo mesmo atirador: a Escola Estadual Primo Bitti e o Centro Educacional Praia de Coqueiral. Na escola Primo Bitti, 3 professoras foram mortas. Já na 2ª escola, Praia de Coqueiral, uma adolescente de 12 anos foi atingida e não resistiu.
O autor do ataque tinha 16 anos – idade sensível para a cooptação de jovens para o extremismo de direita, usava as armas do pai policial e possuía o símbolo nazista da suástica em seu braço. Segundo a polícia, ele integrava grupos neonazi no Telegram.
No dia 27/03/23, uma professora foi morta e outras 4 pessoas ficaram feridas após serem esfaqueadas por um aluno, de 13 anos, na Escola Estadual Thomazia Montoro, localizada na Vila Sônia, em São Paulo (SP).
No dia 05/04/23, a creche Cantinho Bom Pastor, em Blumenau (SC), foi alvo de um ataque brutal, acarretando na morte de quatro crianças e deixando cinco feridas.
Em Cambé, no Paraná (PR), no dia 19/06/23, o Colégio Estadual Professora Helena Kolody foi invadido e dois adolescentes foram mortos, um menino e uma menina, com 17 e 16 anos, respectivamente.
Apenas esse ano foram sete (7) ataques a escolas – no término desse artigo, estamos em julho/2023. Desde 2002, esse é o maior número registrado, seguido de 2022, com seis (6) e 2019 com três (3) ataques, segundo levantamento realizado pelo Instituto Sou da Paz (2023). Desde 2002, foram 25 casos, 139 vítimas e, dentre elas, 46 fatais.
Educação em direitos humanos (EDH): aliada pela desnazificação
A estratégia adotada para o enfrentamento aos ataques extremistas e/ou neonazistas, incluindo aqueles em ambiente escolar, longe de envolver a militarização desses espaços e o amedrontamento da sociedade, deve resgatar as origens desses ataques, ou seja, ir à raiz daquilo que faz com que jovens e adultos cometam tais atos violentos.
Nesse sentido, existem algumas condições que contribuem para o crescimento das violências proveniente da ideologia de extrema-direita e neonazista no país, dentre elas, consideramos quatro como fundamentais:
- A existência e/ou surgimento de personagens “líderes”: a presença de figuras que personificam esses ideais reacionários de extrema-direita são muito importantes para dar vazão à massa e legitimar determinadas condutas. Nos EUA, isso foi personificado na figura do ex-presidente Donald Trump, na Itália, pela primeira-ministra Giorgia Meloni e no Brasil, com o ex-presidente Jair Bolsonaro;
- A ausência de uma legislação eficiente: na maioria dos lugares há uma confusão – proposital e pouco producente – entre a liberdade de expressão e a criminalização do discurso de ódio neonazista ou nazifascista como Incitação ao Crime (Art. 286,CP). No Brasil, essa discussão segue sendo travada, sob a alegação de possível “censura”. Acontece que tal ineficácia coloca a decisão desses casos nas mãos da discricionariedade do judiciário, ou seja, à encargo da subjetividade do juiz, podendo ele decidir conforme suas próprias convicções;
- A ausência de história e memória: ausência de memória sobre o que foi a 2ª Guerra Mundial, o holocausto e o genocídio judeu. Possui-se como premissa, em muitos casos, que o esquecimento enterra a história. Mas, ao contrário, a história passada serve como marco/referência para que o presente e o futuro sejam construídos. A Alemanha, por exemplo, possui um museu do Holocausto, para que os alemães se lembrem daquilo que foi o maior genocídio do séc. XX, diferentemente do Brasil, que nega o passado colonial, escravocrata e autoritário;
- A ausência de Educação para o pensamento crítico: o modelo de educação existente no país é aquele denominado por Paulo Freire de “Educação Bancária”, onde se deposita conhecimento na(o) educanda(o). É uma lógica mecânica, repetitiva, sempre visando ao vestibular/mercado de trabalho. Tal lógica favorece a disseminação desses discursos repetitivos e prontos disseminados pela ideologia neonazi, que inibem a construção do pensamento naquele que a repete.
Diante dessas quatro causas, este tópico pretende aprofundar as duas últimas: História e Memória e Educação para o pensamento crítico. Ambas integram a Educação em – e para os – Direitos Humanos (EDH).
A ausência de discussões históricas que fortaleçam a memória sobre aquilo que foi o Holocausto nazista faz vir à tona a possibilidade de que algo semelhante volte a acontecer. Não porque um fato histórico possa ser revivido, mas porque a memória dele não foi usada como fonte de conhecimento e orientação para a construção do presente e futuro.
A memória do Holocausto deve seguir viva para que, aquilo que foi fruto de um projeto de morte e acarretou em diversas violações de direitos humanos, não volte a acontecer. Assim como da escravização negra e indígena, do genocídio e epistemicídio indígena, da Ditadura Militar e das torturas cometidas por ela
Além de existir a possibilidade de desconhecermos a história e, por isso, estarmos correndo o risco de viver novamente aquilo que se assemelha à ela, há também a possibilidade de conhecermos a história, mas a história contada pela perspectiva dos vencedores e não dos vencidos.
Para Walter Benjamin, a história conhecida até hoje é a história dos vencedores, daqueles sujeitos hoje considerados “dominantes”, e que deveríamos, no entanto, contar a história dos vencidos, os “dominados”. É necessário, portanto, “escovar a história a contrapelo”. (BENJAMIN, 1987, p. 225). Isso significa que é necessário ir no sentido oposto àquele contado pela ideologia dominante – presente não só nas escolas como nas mídias de massa.
A história, a depender de quem a conta, é uma via de operação de Poder. Nesse sentido, existe uma razão para a negação ou deturpação da história e memória do Holocausto – e não é apenas por ter sido um período histórico nefasto. Contar a história diferente daquilo que ela é em memória produz desconhecimento e falta de senso crítico.
Diferentemente disso, o reforço à memória e à verdade histórica faz com que qualquer outra história não verdadeira contada seja, de imediato, rejeitada. Ou seja, os discursos negacionistas da história, presentes na ideologia da extrema-direita neonazi, serão enfraquecidos.
Somado a isso, os parâmetros educacionais devem seguir os ideais de educação freireana. Apesar de Paulo Freire ser considerado o patrono da educação no Brasil, seus escritos e ensinamentos são pouco conhecidos e disseminados, tanto por educadores/as quanto pela sociedade em geral.
De acordo com Freire (2001), a educação vigente no país serve ao modelo de “Educação bancária”, a qual deposita conhecimento no aluno acriticamente. Além disso, tal modelo educacional se concentra na figura do/a professor/a, ao invés do/a aluno/a, retirando qualquer capacidade criativa, crítica e autônoma.
Entretanto, para uma pedagogia crítica, o/a educador/a deve se colocar ao nível dos/as alunos/as, retirando a centralidade da sua pessoa. A postura dos/as educadores/as deve ser de “educador humanista revolucionário”, no sentido de guiar estudantes para o pensamento crítico e na procura da mútua humanização.
Tal educação crítica produz a conscientização. Diante daquilo que chamou de “ideologia da opressão”, ou seja, a ideologia dominante na sociedade, a realidade é velada. A conscientização, entretanto, produz um des-velar da realidade.
Para Freire, “a conscientização é o olhar mais crítico possível da realidade, que des-vela para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante.” (FREIRE, 2001, p. 33).
Sob essa perspectiva, a conscientização é capaz de produzir a desmitologização da sociedade. Isto significa que a captação mistificada, realizada pelos opressores para a continuidade de seus projetos de poder, não encontrará solo fértil para se multiplicar.
Portanto, a linguagem massificada, repetitiva, mecânica, a “lógica de fábrica” da qual nos referimos no tópico “Quais os Discursos Utilizados?”, amplamente utilizada pela extrema-direita neonazista, terá sua recusa apenas no exercício consciente do pensamento crítico.
Nesse sentido, a educação crítica deve promover a conscientização sobre o racismo, o machismo, o preconceito em razão do gênero e orientação sexual, o imperialismo, o antissemitismo e o capacitismo. Deve abordar temas diversos, incentivando o pensamento autônomo, crítico, não mecânico, a fim de que se promova a diversidade e inclusão, não apenas em discurso, mas na prática social.
Consideramos fundamental, também, o reforço ao multiculturalismo, ou seja, ao respeito às diferentes culturas e estados-nações ao redor do mundo. Isso porque o nacionalismo exagerado propicia o ressurgimento de tal ideologia imperialista e autoritária.
Mais ainda, o pensamento crítico auxilia na prevenção à cooptação de adolescentes/jovens para o extremismo de direita neonazista. Isso porque esses discursos supremacistas de ódio mitificados e falseados chegarão neles com uma consciência sólida, democrática e de defesa dos Direitos Humanos.
A partir do momento em que se ensina a reflexão crítica a estudantes, o negacionismo científico ganha cada vez menos adeptos – e o negacionismo, como se sabe, é uma das principais bases discursivas do neonazismo.
Os discursos de ódio utilizados pela ideologia neonazista, os quais se concretizam nas violências e nos ataques vivenciados nos últimos anos, devem ser trabalhados neles próprios e não na suposta resolução sob um caráter militarista, ostensivo e punitivo. Dito de outro modo, é na análise discursiva, através da argumentação engajada e crítica, que encontramos a lacuna da ideologia neonazi.
A exigência primeira da educação, segundo Theodor Adorno (1967), é a de que Auschwitz não se repita. A nossa função é, portanto, através da Educação em Direitos Humanos para a conscientização e o pensamento crítico, construir a história presente e futura diferente daquilo que ela foi no passado.
Considerações finais
Diante disso, nota-se que o neonazismo carrega consigo mitos, simbolismos e discursos de ódio característicos, especialmente no que diz respeito aos debates acerca da “guerra racial” e a “pureza da raça ariana”. Mais ainda, aquilo que culminou no Holocausto não foi um fato aleatório, foi um projeto político. Logo, já estava sendo trabalhado no discurso muito antes de se tornar o que se tornou.
A história do país e a recente eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), demonstraram o quanto o sentimento antissemita, racista, misógino, eugênico, capacitista e ultranacionalista está infiltrado na sociedade brasileira. Mais ainda, tal projeto político de extermínio foi responsável, nos últimos 4 anos, por legitimar e incentivar diversas condutas criminosas contra minorias.
Sendo assim, o discurso bolsonarista inflamou as manifestações e intervenções neonazistas no Brasil. Tal fato provocou o aumento exponencial de células neonazistas no país, prova disso é que, entre maio de 2019 e novembro de 2022, houve um aumento de 334 para 1.117 células, respectivamente. Além disso, em 2019 foram registrados 29 eventos antissemitas e neonazistas no Brasil, já em 2022 foram 114 ocorrências, boa parte delas em escolas.
A superação desse quadro, no entanto, longe da militarização dos espaços, deve envolver a articulação de diversos mecanismos. A normatização e judicialização de eventos neonazistas, incluindo a aprovação de legislação sobre a regulação das redes sociais (PL 2630/20), é fundamental, tendo em vista a urgência da temática. Contudo, sistemicamente, não provoca alterações a longo prazo.
Uma vez que os discursos de ódio neonazistas são massificados, repetitivos e mecânicos, produzindo os diversos atos de violência neonazi presenciados nos últimos anos, o intuito é trabalhá-los em sua produção discursiva. Isso será feito através de uma Educação Conscientizadora, voltada para o pensamento crítico, democrática e de respeito aos Direitos Humanos.
Pensando nisso, indicamos alguns filmes sobre o Holocausto:
- Diário de Anne Frank (1959)
- O menino do Pijama Listrado (2008)
- A lista de Schindler (1993)
- Olga (2004)
Com o objetivo de contribuir para a diminuição da violência às escolas, por meio dos Direitos Humanos, o Instituto Aurora desenvolveu o projeto “(Re)conectar”.
Acompanhe o Instituto Aurora nas redes sociais: Instagram | Facebook | Linkedin | Youtube
Algumas referências que usamos neste artigo:
ADORNO, Theodor W. Educação após Auschwitz. In: Coleção Grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1986.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, volume I. 3ed. São Paulo: brasiliense, 1987.
DIAS, Adriana. Os Anacronautas do Teutonismo Virtual: Uma etnografia do neonazismo na Internet. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), IFCH. Campinas, São Paulo, 2007.
DIAS, Adriana. Observando o Ódio: Entre Uma Etnografia do Neonazismo e a Biografia de David Lane. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), IFCH. Campinas, São Paulo, 2018.
FOUCAULT, Michel. Genealogía del racismo. La Plata, Argentina: Editorial Altamira, 1993.
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Centauro, 2001.
GODOI, Antonio Roberto de. “Heil Hitler”! Alemanha Acima de Tudo!. In: A Tribuna, 30/09/22.
LANGEANI, Bruno. Relatório: Raio-X de 20 anos de ataques a escolas no Brasil 2002-2023. In: Instituto Sou da Paz, 05/23.
RELATÓRIO de eventos antissemitas e correlatos no Brasil (01/07/2022-31/12/2022). In: Observatório Judaico de Direitos Humanos no Brasil, 2023.