A terminologia utilizada até então para nomear o Golpe de 1964 parece não ser a mais apropriada para demarcar quais atores participaram ativamente desse movimento. O objetivo deste texto é apresentar um ponto de partida para essa discussão.
Por Gabriela Assad, para o Instituto Aurora
(Foto: João Henrique / Unsplash)
A proposta deste texto é discutir a adequação terminológica do Golpe de 1964 contra as estruturas do estado democrático de direito. Embora se fale que o golpe, iniciado na madrugada do dia 31 de março de 1964, tenha sido contra e pela deposição de João Goulart (PTB), ele, na verdade, foi contra a democracia – em clara articulação de diversos setores da sociedade.
Abordar a intentona golpista apenas como “golpe militar” parece não ser a denominação mais apropriada, já que identificamos a participação de outros atores no regime ditatorial além dos militares. Da mesma forma, a terminologia “civil-militar”, apesar de demarcar a participação da sociedade civil, parece carecer de informações sobre o caráter de classe do regime. Defendemos, desse modo, a utilização da terminologia “civil-empresarial-militar” para adjetivar o golpe e o período ditatorial no Brasil.
O redirecionamento dessa discussão ocorreu em virtude dos ataques golpistas do 08 de janeiro de 2023, nos quais os manifestantes que reivindicavam a intervenção militar no país possuíam financiamento do empresariado nacional, motivo pelo qual demandamos o reforço à memória e à história do Golpe de 1964 para que não se repita. Tais ataques demonstraram que a militarização dos espaços públicos, acirrada pelo governo Bolsonaro (2018-2022) em claro saudosismo à ditadura, deu os resultados esperados no tempo necessário.
Tópicos deste artigo:
- Breve histórico do Golpe de 1964: interesses emergentes e disputa por hegemonia
- O Golpe Civil-empresarial-militar: adequação terminológica
- Ditadura nunca mais
- Justiça de Transição: verdade, memória e reparação
- Educação em Direitos Humanos
- Considerações finais
Publicado em 30/04/2025.
Breve histórico do Golpe de 1964: interesses emergentes e disputa por hegemonia
Há 61 anos, na madrugada do dia 31 de março para o dia 01 de abril de 1964, tanques saiam de Juiz de Fora, Minas Gerais (MG), indo em direção ao então estado da Guanabara, hoje território do Rio de Janeiro (RJ), na intenção de tomar o poder da república e concentrá-lo em mãos militares.
Embora a conversa do presidente em exercício, João Goulart (PTB), em Brasília, tenha deixado claro sua resistência no Rio Grande do Sul com apoio das tropas do III exército, o presidente do Senado declarou vacância do cargo alegando que Goulart havia deixado o território nacional. Tal cenário deixou nítido o apoio das instituições do Estado, especialmente do Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal, no Golpe de 1964.
Em síntese, o Golpe foi uma reação de alguns setores à tentativa de João Goulart de ampliar a democracia brasileira, principalmente no pós-ditadura Vargas, através de reformas de base. Por reformas de base entendemos a proposição de algumas mudanças de caráter estrutural no Estado, as quais geraram um certo desconforto na burguesia brasileira à época, que não mais possuía condições de se perpetuar no poder.
Dentre essas reformas podemos mencionar a reforma tributária, a qual visava a instituição de um imposto mais progressivo, aumentando a carga para os mais ricos e reduzindo o déficit público, e as reformas urbana e agrária, que coibiam a manutenção de terras improdutivas e permitiam a desapropriação em caso de desuso total/parcial. Esta última foi fundamental para estimular a intensa mobilização da burguesia, já que o Brasil possuía estruturas majoritariamente agrárias – herança de um passado colonial.
Em um comparativo demasiado esdrúxulo, Goulart era, assim como Lula, acusado de ser comunista por suas reformas progressistas demais para o campo reacionário. No entanto, a defesa de direitos à classe trabalhadora, da cidade ou do campo, a defesa do direito ao voto – uma das reformas propostas por ele, visto que na Constituição de 1946 analfabetos ainda não votavam – ou o aumento da carga tributária para quem ganha mais, não faz, isoladamente, alguém comunista.
Pelo contrário, nenhuma das reformas propostas por ele objetivava uma ruptura com o capital internacional, mas sim visava a formação do que considerava uma nação forte e desenvolvida economicamente sem prescindir de justiça social (Silva, 2019). Era, em suma, um governo que, passado o nacional-desenvolvimentismo das décadas anteriores, buscava quase que uma conciliação entre a burguesia nacional e o operariado.
De algum modo, entretanto, o projeto de Jango mudava a agenda política que reinava no Brasil, uma agenda profundamente oligárquica e conservadora, razão pela qual o Golpe veio na tentativa de interromper essa empreitada. Sob uma atmosfera de “guerra interna”, a ditadura tratou de beneficiar os setores empresariais e a burguesia local – o chavão de “milagre econômico” surgiu a partir daí, onde os militares, com suas estruturas de repressão, sustentavam a falácia igualmente propagada pela grande mídia.
Perante a justificativa de que a “revolução vitoriosa” teria impedido um “levante comunista no país”, a ditadura se instalou no Brasil por vinte e um anos, de 1964 a 1985, e, embora não surpreendente, com considerável apoio de massa. As instituições funcionavam sob o controle hiperbólico dos militares, através das quais se editavam Atos Institucionais (AI).
O primeiro (AI-1) veio pouco mais de um mês após o golpe, ainda em 1964, o qual conferia o poder ao presidente da república de suspender direitos políticos por até 10 anos e cassar mandatos legislativos sem a apreciação do judiciário.
O segundo AI (AI-2), em 1965, dentre outras medidas, transferiu a competência para a Justiça Militar de processar e julgar os crimes de civis contra o que seria a “segurança militar” e instituiu o bipartidarismo, em que os únicos partidos permitidos eram a ARENA (Aliança Renovadora Nacional) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), existente até hoje.
O Ato Institucional mais conhecido, e talvez o mais danoso para as estruturas democráticas, é o AI-5, editado em 13 de dezembro de 1968. Nele, além de anunciar a primeira lista de cassações entre deputados, senadores e ministros do STF, foi autorizado o fechamento do Congresso Nacional e houve a decretação do estado de sítio, com a suspensão indeterminada de direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição. Ao todo foram 17 AIs, o último publicado em outubro de 1969.
A fim de garantir a reprodução das estruturas de repressão do regime, diversas violações de direitos humanos foram perpetradas, dentre elas a detenção ilegal, a tortura e o desaparecimento forçado. A Comissão Nacional da Verdade (2014), em volume I do Relatório, demonstrou que, além da censura e vigilância permanente, a ditadura fazia uso de maneira sistemática de instrumentos mais violentos contra quem denominava de “inimigos da nação” – ou seja, todos aqueles que não compactuavam com o poder instituído, de militantes a políticos.
Esse período nefasto da história brasileira não acabou com a eleição democrática do primeiro presidente pós-ditadura, Tancredo Neves, e a posse de José Sarney (1985-1990), então vice-presidente, isso porque seguimos sem trabalhar a memória do golpe na sociedade brasileira. A prova disso é que passamos quatro anos de governo Bolsonaro, no qual boa parte população corrobora(va) com suas ideias saudosistas da ditadura, e, por bem pouco, não elegeu um segundo mandato.
Possivelmente, estamos diante de uma “fascistização do mundo”, nas palavras de Marcia Tiburi (2018). No Brasil, herança de um passado ditatorial que não se curou, a eleição de Bolsonaro, bem como a atual aliança do campo reacionário no Congresso Nacional, escancara o retrocesso democrático vigente. Mas, não apenas, demonstra os perigos de seguir fingindo que os anos de chumbo, período que corresponde à ditadura, não reverberam no país – isso inclui o veto de Lula à rememoração dos 60 anos do Golpe, em 2024.
O Golpe Civil-empresarial-militar: adequação terminológica
Embora costumemos usar o termo “ditadura militar”, ou até “civil-militar”, para demarcar a participação de setores da sociedade civil na organização e no endosso à ditadura, este último talvez não seja suficiente para demarcar o caráter de classe do regime. Uma vez que não podemos descartar a participação do setor empresário no golpe, é necessário que a terminologia seja adequada para nomear o período.
A participação da sociedade civil e do empresariado – nacional e estrangeiro – foram tão necessários para a articulação do Golpe quanto dos militares, razão pela qual apontamos a necessidade de reformular esse conceito para “civil-empresarial-militar” quando abordamos a ditadura que ocorreu entre 1964 e 1985.
A participação da sociedade civil
Quando falamos da participação de civis no Golpe de 1964 não estamos nos referindo apenas à contribuição de boa parte do setor industrial ou empresário, cenário que detalharemos no tópico seguinte, mas sim naqueles que, sem poderio econômico ou político, garantiram a ocupação das ruas em apoio à intervenção das forças armadas.
O II volume do Relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014) detalhou a colaboração de civis com a ditadura. De acordo com o Relatório, “a participação de setores civis no golpe de Estado de 1964, na efetivação do regime autoritário e posteriormente na montagem da própria estrutura da repressão é uma dimensão crucial daquele processo histórico”. Portanto, embora as forças armadas tenham assumido posição de destaque, esse fenômeno não foi exclusivamente militar.
Nesse sentido, de acordo com Melo (2012), o que caracteriza a natureza “civil-militar” do golpe decorre não apenas do apoio de civis, mas da participação direta na preparação e execução do golpe. Talvez a construção mais expressiva da participação de civis no regime foram as “Marchas com Deus, pela Pátria e Família”, ocorridas antes e depois do Golpe – não é surpreendente que o lema Deus, Pátria e Família tenha ressurgido nos últimos anos.
A própria votação expressiva para a ARENA, partido da ditadura, nas eleições parlamentares, principalmente as de 1966 e 1970, demonstra o apoio que as ideias difundidas pelo regime possuíam no seio da sociedade. Essa é a razão pela qual inferimos que o golpe foi uma operação política que contou com o apoio de uma parte da sociedade contra a outra – ou os outros, neste caso, os militantes, guerrilheiros, comunistas, artistas, alguns políticos, etc.
De certo que a participação de civis nos movimentos que antecederam o Golpe e de apoio ao regime já em vigor não são escusas de responsabilidade das forças armadas, como se isso os tivesse legitimado. Do contrário, chamar atenção para a colaboração da sociedade civil no regime, ainda que não tão influente quanto as demais, nos impõe uma tarefa primordial de discutir o poder de influência da ideologia reacionária na composição dos delírios de massa.
Em Os líderes e as massas, Gramsci (2023) aponta que é típico de líderes oportunistas culpar as massas por suas falhas e/ou traições. A vontade das massas, neste caso, é o reflexo das vontades dos chefes – estes seriam os líderes de governos, autoritários ou não –, ideologicamente propagandeada através dos meios de comunicação de massa.
Dito isso, importante mencionar a relação entre a Agência de Inteligência dos Estados Unidos (USIA, na sigla em inglês) e a ditadura brasileira, especialmente no que tange ao controle ideológico.
De acordo com Moser (2024), a ação da USIA no Brasil, além de se voltar para a construção de um consenso, o que incluiu popularizar e transmitir uma imagem positiva dos Estados Unidos, associando-o ao sucesso do desenvolvimento nacional, direcionou esforços para apoiar o novo regime caracterizando-o como revolucionário e democrático, inclusive no cenário internacional.
A Agência, além disso, chegou a selecionar vários títulos de livros que deveriam sair pelas editoras brasileiras, como a Saraiva, e distribuídos aos estudantes. Os livros de Richard M. Ketchum “O que é democracia” e “O que é comunismo” são exemplos disso. No geral, os livros deveriam sustentar narrativas falaciosas em relação ao governo deposto, induzir a existência de uma infiltração comunista que justificaria a deposição do governo e demonstrar apoio ao regime (Moser, 2024).
Em suma, a investigação revela a conexão entre os eventos que desencadearam o golpe e a inteligência dos Estados Unidos na construção narrativa do regime, de modo que, longe de se limitar à 1964, o governo estadunidense almejava controle político-ideológico de mais um extenso território latino-americano – a participação do governo dos EUA nas ditaduras latinas também foi apontada por Joffily (2018).
A participação das empresas
As modificações na estrutura do capitalismo brasileiro no período da ditadura não permitem que negligenciemos o projeto de classe que tomou o Estado em 1964 (Melo, 2012). Isso porque, de algum modo, o golpe visava preparar o Brasil para uma modernização subalterna, dentro dos moldes – e limitações – próprias de um país de capitalismo periférico.
O II volume do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, denominado civis que colaboraram com a ditadura, seção 8, subseção II e III (ou B e C), aponta a participação de grandes grupos econômicos nos acontecimentos do período, incluindo a repressão aos trabalhadores – cuja realização ocorreu sob a justificativa de proteção aos “invasores comunistas” nas empresas –, bem como a superexploração da força de trabalho.
A Comissão apontou, ainda, a participação de alguns grupos no financiamento das atividades do IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) – um dos principais articuladores do Golpe de 64, através de campanhas publicitárias e distribuição de livros e curtas-metragens –, tais como a Light, o Grupo Gerdau, o Grupo Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.
Nesse sentido, Santos e Costa (2022) apontam que o movimento de deposição do presidente Goulart foi incentivado, corroborado e legitimado pela atuação da grande imprensa – fundamental para entender os aspectos ideológicos que interligam o discurso da imprensa e o contexto político em que ela se insere. As pesquisadoras levantaram o papel da Folha de S. Paulo no Golpe de 64, cujo lucro foi mais significativo nos anos de chumbo.
O jornal atuou estrategicamente no campo ideológico de acordo com o momento político. Prática percebida nos discursos utilizados, as matérias eram elogiosas ao papel das forças armadas diante daquilo que se considerava “tendência anticomunista” (Santos; Costa, 2022). Não demorou muito para que, na década de 80, assumisse uma postura democrática quando todos os outros segmentos defendiam a ideia – rebranding necessário para que o lucro se mantenha.
O livro A serviço da repressão (Ribeiro, et al., 2024) aborda a participação do Grupo Folha nas violações de direitos Humanos na ditadura. Flora Daemon, professora da UFFRJ e uma das pesquisadoras do livro, sustenta que a colaboração do Grupo não se deu apenas na utilização da imprensa para disseminar os ideais do regime, mas também influiu na sustentação material do golpe, inclusive com financiamento ao IPES, apontado pelo Relatório da CNV como o “ovo da serpente” do Golpe de 1964.
Além disso, o Relatório apontou a fundamental participação dos empresários industriais do estado de São Paulo no abastecimento de unidades militares com veículos, peças de exposição e equipamentos variados. Essa participação foi uma via de mão dupla, visto que houve crescimento significativo nos ganhos econômicos das empresas participantes do golpe.
Por fim, a própria Comissão ressalta que, embora falemos da participação de civis ao longo do regime ditatorial, é importante que lembremos da colaboração dos grandes empresários no fortalecimento e financiamento das estruturas de repressão. A participação do empresariado nas graves violações de direitos humanos ocorridas no período foi demonstrada no filme Pra frente Brasil!, de Roberto Farias.
As violações, de acordo com o Relatório, ocorriam em três frentes. Através do uso da força, com perseguições, torturas e encarceramento, na atribuição de “inimigo da nação” e subversivo ao trabalhador e, por fim, com a divulgação do que consideravam “listas negras”, ou seja, os nomes dos trabalhadores que deveriam ser investigados.
Concomitante a isso, foi observada a intensificação da exploração da força de trabalho, o que se refletiu no aumento do número de acidentes de trabalho, principalmente em 1976, quando o Brasil foi o campeão mundial de acidentes de trabalho, com 743.025 sinistros e 3.900 mortes. No entanto, o setor privado nacional não era o único envolvido na mobilização pelo regime, tampouco em exploração de mão de obra.
A participação da Volkswagen na ditadura foi sintetizada por Silva, Campos e Costa (2022). Assim como a Folha, a montadora cresceu ao longo da ditadura, isso se deu – não somente, mas também – em virtude da comprovada colaboração da empresa com órgãos repressivos da ditadura. Documento enviado pelo diretor geral da polícia do DEOPS, Departamento de Ordem e Política Social, admitiu a sua participação no regime através da vigilância dos operários.
Não surpreende, no entanto, que a própria construção da empresa remeta a um período autoritário. A empresa, que praticamente participou daquilo que viria a ser o nazismo, nasceu a partir de uma ideia do Partido Nacional-Socialista Alemão, em 1930. Após o fim da guerra, e ainda com participação ativa no capital estatal alemão, a montadora teve sua primeira filial no exterior, no Brasil, mercado mais atrativo da América Latina.
Em setembro de 2020, o Ministério Público Federal (MPF) realizou um acordo com a Volkswagen para reparar as violações cometidas durante a ditadura. O Termo de Ajuste de Conduta (TAC) assinado impele a doação de R$ 36 milhões para iniciativas ligadas à defesa de direitos humanos, além da investigação de crimes cometidos à época. Parte desse montante deverá ir para ex-trabalhadores ou seus sucessores.
Além disso, em 2022 a montadora foi, finalmente, responsabilizada pelos crimes cometidos à época da ditadura em fazendas da Amazônia (LINK). A denúncia se tratava de acusações de trabalho escravo e ameaças a trabalhadores da fazenda da montadora, no Vale do Rio Cristalino, em Santana do Araguaia, no Pará. Em decorrência dos incentivos oferecidos pelos militares, a empresa se instalou na região visando produzir o que chamou de “gado do futuro” – que, é claro, contou com denúncias de desmatamento ilegal.
Nesse viés, a Organização das Nações Unidas (ONU), em relatório denominado Normas sobre as Responsabilidades das Empresas Transnacionais e Outras Empresas em Relação aos Direitos Humanos (2003), apontou que as corporações têm o dever de, dentro de suas respectivas esferas de influência, promover e proteger os direitos humanos consagrados pelo direito internacional e pela legislação local, incluindo os direitos e interesses dos povos indígenas e dos mais vulneráveis.
Portanto, independe se a empresa estava no pleno exercício de suas funções, garantidas por contrato ou pelas leis nacionais, é responsabilidade da própria companhia zelar pela proteção e promoção dos direitos humanos de todos aqueles que, de algum modo, são afetados pela sua atividade. Isso inclui a responsabilização corporativa por fatos passados, ainda que anteriores ao tratado internacional, por se tratarem de normas imperativas.
Tal cenário comprova o caráter empresarial da ditadura brasileira, a qual tinha como principais beneficiários as maiores companhias privadas, nacionais ou estrangeiras, que mantinham atividades no país – ao mesmo tempo em que os trabalhadores e integrantes das classes subalternizadas eram as principais vítimas das violações de direitos perpetrados pelo período.
O poder nas mãos dos militares
Embora o caráter de classe do regime não seja apagado com a ocupação permanente de generais do exército na presidência, devemos apontar como fundamental a direta intervenção dos militares no Golpe de 1964. Mantenedores das forças autoritárias do Estado, e com o legítimo monopólio da violência, as forças armadas garantem – ao menos declaradamente constituídas dessa forma – a lei e a ordem.
Nesse sentido, a repressão a um “inimigo” criado – profundamente classista, racista e misógina –, disseminada pela ideologia do regime ditatorial, só poderia ser feita pelas estruturas militarizadas do Estado. Esse “inimigo” a ser combatido, discursivamente criado, atentaria contra a “ordem” da nação, a família e os bons costumes, razão pela qual demandaria forças especiais para a sua repressão.
Até hoje, em clara conciliação com as forças armadas pós-redemocratização, o artigo 142 da Constituição Federal (1988) atribui às forças armadas a Garantia da Lei e Ordem (GLO), bem como da defesa nacional e dos poderes constitucionais – esse dispositivo segue sendo utilizado para justificar práticas autoritárias e antidemocráticas, a exemplo da Intervenção Federal no Rio de Janeiro, em 2018.
Relatório da Comissão Nacional da Verdade aponta a função dos militares no aparato de repressão necessário à manutenção do regime. Um dos principais centros de tortura e morte na ditadura foi o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), do I Exército. Do total de presos políticos que passaram pelo DOI-CODI, o Relatório aponta 49 mortos, destes, 33 seguem desaparecidos.
A CNV apontou, ainda, a investigação a respeito da tortura e assassinato cometido contra Rubens Paiva, ex-deputado federal (PTB), preso em 1971 por conspirar contra o regime. A história de Paiva foi tema do filme, adaptado do livro homônimo, Ainda estou aqui (2024), escrito por Marcelo Rubens Paiva – filho de Rubens – e dirigido por Walter Salles.
O próprio Hospital Central do Exército (HCE) foi apontado como um dos centros de repressão, como demonstra o Relatório. Relatos obtidos pela CNV apontaram a prisão e a tortura cometida pelos militares dentro das dependências do Hospital. De acordo com informações recebidas pelo Ministério Público Federal, responsáveis pela busca e apreensão, os servidores ocultaram documentos antes da diligência da CNV.
Outro local apontado como uma das instalações militares responsáveis por aplicar práticas de tortura e outras violações de direitos humanos é a base de fuzileiros navais da Ilha das Flores, no Rio de Janeiro. Há relatos de que os militares utilizavam, dentre os instrumentos de tortura, a palmatória, os eletrochoques e o pau de arara. Ao menos 200 pessoas estiveram presas no local – número impreciso em decorrência das obstruções realizadas no período.
Importante frisar, no entanto, que, embora a maior parte dos militares em serviço à época ditatorial era condescendente com as práticas do regime, o Relatório da Comissão apontou a repressão e a tortura contra alguns militares que não compactuavam com tais práticas – alguns, inclusive tendo sido exilados –, a maioria sendo acusado de “comunista”. Isso significa dizer que o regime vislumbrava tornar as forças armadas um centro de poder, onde todos ali possuíssem os mesmos ideais.
De acordo com o a CNV, a política de cassação nas Forças Armadas atingiu centenas de oficiais e praças. No entanto, a maioria dos militares atuou discretamente nos partidos de oposição pela agenda da redemocratização. Muitos deles acabaram fundando associações de militares após o retorno da democracia e a concessão de uma anistia ampla, geral e irrestrita – vide Lei da Anistia (1979).
Não obstante a isso, resta claro que os militares deram sustentação repressiva e bélica ao regime, embora a sustentação ideológica e financeira tenha ficado a cargo de outros atores. O medo mobilizado antes e, principalmente, após 1964 pelas forças armadas no comando do executivo federal, as quais governavam através de seus atos institucionais, demonstrou ser fundamental para que quaisquer insurgências revolucionárias fossem silenciadas – o que não significou a inexistência de resistência por parte da sociedade civil.
Ditadura nunca mais
A história se repete duas vezes, a primeira como tragédia, a segunda como farsa. A essa conclusão chegou Marx (1852) quando, interpretando Hegel, analisou a conjuntura segundo a qual Luis Bonaparte ascendeu na França. Eduardo Galeano (2020), por sua vez, ao discorrer sobre os períodos de exploração e repressão nos quais a América Latina foi mergulhada, aponta que, entre nós, a tragédia se repete do mesmo modo, como tragédia.
Dessa forma, podemos afirmar que, sob o perigo de repetir a história do Golpe de 1964, de maneira tão trágica quanto, é imprescindível analisar as condições sob as quais essa ameaça ganha corpo. Essa discussão torna-se necessária uma vez que experiências recentes sugerem que as forças armadas seguem sendo um risco à estabilidade da democracia.
O quadro de instabilidade ficou demonstrado não somente após 2018, quando o militar reformado, Jair Bolsonaro, assumiu a presidência da república carregando consigo boa parte da estrutura militarizada da qual ele mesmo se desvencilhou para entrar na política mas, principalmente, após o término das eleições de 2022 – ocasião em que o cargo de chefe do executivo foi concedido à Lula.
As diversas manifestações de caráter golpista, as quais pediam pela Intervenção Militar no país, bem como a anulação das eleições democráticas pelos militares, apesar de terem sido articuladas por civis – com o financiamento de muitos empresários, diga-se de passagem –, caminham lado a lado com a ideologia conservadora e reacionária das forças armadas.
Culminando no ataque às sedes dos Três Poderes, em Brasília, no dia 08 de janeiro de 2023, símbolos do Estado Democrático de Direito, esses atos antidemocráticos, comprovadamente realizados com a omissão de muitos agentes de segurança pública, sugerem uma tentativa, ainda em voga, de militarização da política nos moldes de 1964.
Assim como a conjuntura que deu vasão ao Golpe, a crise socioeconômica brasileira, bem como as raízes coloniais racistas, segue sendo uma das maiores justificativas utilizadas para a eleição de figuras autoritárias, como Bolsonaro, bem como o consentimento ao uso da repressão pelo Estado. É perceptível, no entanto, que esses discursos acabam por ser uma cortina de fumaça para inebriar as reais intenções do setor reacionário.
Justiça de Transição: verdade, memória e reparação
A Justiça de Transição é composta por medidas políticas, jurídicas e, por vezes, econômicas, geralmente promovida após um período de governos autoritários e ditatoriais – como foram as ditaduras na América Latina –, nos quais a população e/ou grupos subalternizados vivenciaram quadros de repressões perpetrados pelo Estado. O conceito de justiça de transição, juridicamente, originou-se no Direito Internacional após a criação do Tribunal de Nuremberg, para julgar criminosos nazistas pós – 2° guerra.
As políticas que compõem a justiça de transição devem envolver, necessariamente, a discussão acerca da memória e da busca pela verdade da época, isso porque a possibilidade de pleitear acesso à justiça – princípio fundamental dentro do Estado Democrático de Direito – demanda a existência de informações verídicas e transparentes sobre o período que corresponde a violação.
A memória, neste caso, é uma construção e pode ser formada no seio da sociedade – diferente da história, que possui uma leitura teórico-científica sobre um fato passado. Ou seja, nem sempre a memória e a história andam juntas, razão pela qual a memória pode ser controlada mediante discursos (a exemplo dos pedidos pela volta da ditadura, com a justificativa de que o período foi o auge da prosperidade econômica e social do país embora as pesquisas demonstrem o oposto).
O lema “lembrar para não repetir” parece ser útil aqui. Tendo em vista que a memória pode ser uma construção social, a ausência dela também é. Portanto, a ausência de memória sobre períodos autoritários, como a ditadura civil-empresarial-militar (1964-1985), é uma construção político-ideológica por parte de alguns setores da sociedade, em especial, aqueles já citados por corroborarem com o regime.
O silêncio que a ditadura impôs no passado parece se perpetuar no presente, não apenas com a recusa em (re)memorar e, consequentemente, responsabilizar, as violações de direitos humanos cometidas à época, mas também com a manutenção das estruturas autoritárias e violentas que dão causa, por exemplo, ao genocídio da juventude negra e periférica no país. Longe de enfrentar o passado, a ausência de memória nos condena às sombras.
A Comissão Nacional da Verdade, instituída pela Lei 12.528/11, foi um dos pilares fundamentais na concretização da justiça de transição no Brasil, bem como no fortalecimento de uma democracia tão jovem, principalmente por (re)lembrar os horrores da ditadura e nomear os perpetradores de violações de direitos humanos, possibilitando a sua responsabilização.
No entanto, apenas essa medida não parece ser suficiente. A Anistia, Lei n° 6.683/79, ainda em vigor no país, concedeu anistia a todos os considerados criminosos políticos, aos que tiveram direitos políticos suspensos e aos servidores da administração, incluindo os militares. Embora esse diploma tenha retirado do rol de criminosos políticos aqueles que foram, injustamente, acusados pelo regime, ele acabou por conceder anistia àqueles que violaram direitos humanos – apesar do direito internacional dos direitos humanos rejeitar a utilização da anistia como excludente de responsabilidade.
Educação em Direitos Humanos
Não é de hoje que a educação é um campo em disputa no país, cenário já apontado por Paulo Freire, razão pela qual o educador foi um dos exilados da ditadura, ficando fora do país de 1964 a 1980. Uma das reformas de Jango era, inclusive, com relação à educação. Além de trabalhar pela ampliação do acesso às universidades, enxergava no método de Freire a criação de um plano nacional de alfabetização.
Na sociedade capitalista, a escola funciona como um local de reprodução do modo de produção capitalista, de modo a formar novos trabalhadores – Freire vislumbrou isso quando apontou a existência de uma educação bancária, na qual os estudantes são depositários e meros reprodutores de conhecimento.
Em Pedagogia do Oprimido, livro finalizado em seu exílio no Chile, Freire aponta que a educação bancária é utilizada como um instrumento de opressão. Uma vez que anula o poder criador dos educandos e estimula a ingenuidade ao invés da criticidade, é uma dimensão da cultura do silêncio, logo, reflete a sociedade opressora (Freire, 1987).
Nesse sentido, Ferreira e Santos (2024) consideram que o Novo Ensino Médio (NEM), proposto e sancionado pelo então presidente Michel Temer, através da Lei 13.415/17, possuía raízes autoritárias e ideológicas na ditadura civil-empresarial-militar brasileira. Embora tais mudanças tenham sido propagadas como neutras, para declaradamente melhorar a educação no país, ela é carregada de vieses ideológicos – para construir consensos e trabalhar no sentido hegemônico.
Tal reforma na educação fez parte de um conjunto de medidas propostas por Temer, tal qual a reforma da previdência e a reforma trabalhista. A intenção era não mais preparar o estudante para a universidade, mas sim para o mercado de trabalho. Sob o mesmo discurso de “preparar a mão de obra técnica necessária para o desenvolvimento do país” utilizada pelos militares quando na publicação da Lei 5.692/71, a inspiração ditatorial de Temer continuou com Bolsonaro.
De outro modo, a Lei 14.945/24, sancionada por Lula e que começa a ser aplicada em 2025, revoga parcialmente a anterior. A promulgação garante a manutenção da carga horária em 2.400 destinadas à Formação Geral Básica (FGB), já definida na BNCC – antes essa carga havia sido reduzida para 1.800 horas. Os itinerários formativos, que dão a escolha aos alunos sobre os processos educativos, ficaram com carga horária mínima de 800 horas, podendo chegar a 1.200.
Embora ainda possua ressalvas, como quanto aos itinerários formativos – divididos em linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; ciências humanas e sociais aplicadas; e formação técnica e profissional – e a capacitação dada aos profissionais da educação para articulá-los, a revogação parcial do antigo NEM oferece um sopro à comunidade acadêmica.
A educação, quando na busca pela construção de um pensamento acrítico, reprodutor e ideologizado – cenário vislumbrado com a reforma de 2017 –, só serve aos propósitos da burguesia, razão pela qual Ferreira e Santos (2024) apontam a educação como fundamental na produção de um consenso e na garantia de reprodução da estrutura capitalista, e com o menor uso possível da coerção.
De outro modo, a Educação em Direitos Humanos, por ser profundamente questionadora, dialógica, inclusiva e democrática, longe de caminhar no sentido hegemônico, caminha no sentido de disruptura com o consenso produzido no seio da sociedade, razão pela qual a apontamos como uma alternativa concreta diante de ideologias autoritárias.
Considerações finais
A ditadura foi e é uma construção histórico-social na sociedade brasileira, na qual a versão da memória que prevalece oculta, vela – no sentido freireano de velar uma realidade dada –, os reais atores que contribuíram e deram causa ao Golpe de 1964. A fim de nomear os partícipes dessa trama, propusemos a readequação da terminologia para “golpe civil-empresarial-militar”, uma vez que a sociedade civil, o empresariado e os militares tiveram, não igual, mas fundamental participação no regime.
É verdade que o período ditatorial não inseriu nada novo na sociedade, apenas reforçou aquilo que o Brasil já possuía, como o racismo, patriarcalismo, colonialismo, reacionarismo etc. Do mesmo modo, a eleição de figuras autoritárias e antidemocráticas, justamente pela ausência de um amplo trabalho na história e na memória do período, reacende a chama pelo que foi – ou pelo que acham que foi – a ditadura, com os devidos valores incutidos.
Apontamos, por fim, a Educação em Direitos Humanos como uma das formas de enfrentamento, além ou dentro do escopo da Justiça de Transição, ao saudosismo e conservadorismo presente nas ideologias de extrema-direita que levam à cenários antidemocráticos. Se a concepção bancária nega a própria razão de existir da educação, a educação libertadora a reafirma, de modo a questionar as ideias hegemônicas que sustentam o autoritarismo.
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Outras referências que usamos neste artigo:
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2020.
GRAMSCI, Antonio. Os líderes e as massas: escritos de 1921 a 1926. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2023.
MARX, Karl. 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
RIBEIRO, Ana Paula Goulart; ROMANELLI, Amanda; BONSANTO, André; DAEMON, Flora; ROUCHOU, Joëlle; PEDRETTI, Lucas. A serviço da repressão: Grupo Folha e violações de direitos na ditadura. 1ed. Rio de Janeiro: Mórula Editora, 2024.
SANTOS, Cynthia Adrielle da Silva; COSTA, Alessandra. Empresas e ditadura civil-militar brasileira: os editoriais do jornal Folha de S. Paulo em uma perspectiva histórica. Cadernos EBAPE.BR, Fundação Getúlio Vargas, v. 20, nº 5, Rio de Janeiro, Set.- Out. 2022.
SILVA, Marcelo Almeida de Carvalho; CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira; COSTA, Alessandra. A Volkswagen e a ditadura: a colaboração da montadora alemã com a repressão aos trabalhadores durante o regime civil-militar brasileira. Revista Brasileira de História, v. 42, nº 89, São Paulo, 2022.