As ações afirmativas são um importante mecanismo para equilibrar as relações sociais, permitindo que grupos historicamente desfavorecidos tenham maior participação em espaços nos quais são sub-representados.
Por Felipe Pinheiro, para o Instituto Aurora
(Foto: Gaia Schüler. CC BY-NC-SA 2.0 DEED)
As oportunidades da vida não se apresentam igualmente para todas as pessoas. Muitas vezes, em função de nossa origem, condição social ou constituição étnica, conseguimos nos introduzir com mais facilidade nas redes de sociabilidade, tendo maior acesso ao mercado de trabalho e a todo o leque de possibilidades que a vida em sociedade pode oferecer.
Ao longo do tempo, essa condição [injustificadamente] privilegiada deu origem ao chamado “poder privado”. Trata-se da autoridade desproporcional que certas entidades ou grupos de indivíduos guardam em relação a seus semelhantes, de maneira que as relações sociais estabelecidas entre as partes tenham como ponto de partida uma disparidade na troca de poder que acaba subordinando o mais fraco àquele que detém o poder privado.
Essa autoridade desproporcional é construída ao longo dos muitos anos em que a assimetria nas relações sociais ou econômicas privilegiou um grupo em detrimento de outro, fazendo com que, mesmo após a superação do período em que a centralização de poder era legitimada pelo Estado e pela sociedade, o grupo antes favorecido continue a colher os frutos da injusta disparidade de poder existente no passado.
Por essa razão, as ações afirmativas surgiram como um importante mecanismo para equilibrar as relações sociais e assegurar iguais condições de liberdade nessa troca de poder, incluindo nas redes de sociabilidade e proteção social grupos discriminados e colocados à margem.
Discriminar é tratar desigualmente sem um critério objetivo que justifique a contraposição. As ações afirmativas visam a exterminar as pré-concepções subjetivas que levam a tratamentos injustificadamente desiguais.
Vamos conferir?
Tópicos deste artigo:
- O que são ações afirmativas?
- Como a educação em direitos humanos pode contribuir para as ações afirmativas?
Publicado em 13/12/2023.
O que são ações afirmativas?
As ações afirmativas são um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter temporário que visam a integrar determinado grupo de pessoas à sociedade, aumentando sua participação em setores em que são sub-representadas em razão de discriminação ou estigma social.
Elas podem se destinar a grupos discriminados em função da orientação sexual, etnia, sexo, religião, condição física e mental, ou qualquer outro fator que “diminua” uma pessoa com base em sua condição.
O que essas políticas têm em comum é o objetivo principal de promover a igualdade de acesso a bens e oportunidades entre todas as pessoas. Essas medidas são fundamentais, especialmente em sociedades caracterizadas pela assimetria nas relações sociais originada a partir de traumas históricos que enraizaram a discriminação em suas culturas, de maneira a contribuir para a estratificação social.
Qual a importância das ações afirmativas?
Nas sociedades atuais, em que predomina uma cultura de desempenho, criou-se a falsa sensação de que o sucesso de uma pessoa depende unicamente do esforço que ela empreende em busca de seus objetivos.
Esse discurso é extremamente perigoso porque proclama uma falsa meritocracia que desconsidera o impacto que fatores biológicos, históricos, sociais e culturais causam na vida das pessoas. No âmbito das relações interpessoais, em que avaliações subjetivas e emocionais têm grande importância na tomada de decisões, estigmas e preconceitos influenciam as oportunidades oferecidas e definem o destino de cada um e cada uma de nós.
Por causa disso, as ações afirmativas são extremamente importantes para combater as segregações e impedir que as pessoas sejam injustamente classificadas a partir de critérios subjetivos e que não levem em conta as diferenças biológicas, culturais e sociais que nos tornam únicos.
Por meio dessas políticas, pessoas de origens e com experiências de vida distintas têm acesso às mesmas oportunidades e se veem ocupando os mesmos espaços públicos e privados. Além disso, a inclusão social dessas pessoas nas redes de influência no âmbito educacional, econômico, político e cultural contribui para a criação de um ambiente coletivo heterogêneo e enriquece o tecido social.
As pessoas a quem se destinam as ações afirmativas não são beneficiadas com nada. Suas vidas não são facilitadas e muito menos privilegiadas em relação às dos demais. As ações afirmativas são um mecanismo de correção dos efeitos persistentes do passado.
Políticas de ações afirmativas
No Brasil, as ações afirmativas começaram a ganhar corpo no início dos anos 2000, a partir do reconhecimento internacional de que o Brasil é um país racista, durante a Conferência de Durban.
Essa medida foi fundamental, uma vez que não poucos perceberam a ficção de liberdade que a Lei Áurea havia instituído ao abolir uma das mais cruéis expressões da escravidão ocorridas no país. Afinal, de nada adianta promulgar a liberdade formal de uma população que passou quase 300 anos excluída e marginalizada sem medidas eficazes de inclusão social.
Nos anos seguintes à Conferência, medidas de discriminação positiva se tornaram prioridade na pauta de políticas públicas do país. Em 2003, a Lei 10.639 estabeleceu a inclusão no currículo oficial da rede de ensino nacional a obrigatoriedade do estudo sobre a história e cultura afro-brasileira.
Já em 2012, a Lei 12.711, mais conhecida como Lei de Cotas, se tornou um marco legal para a reserva de vagas em cursos superiores de instituições federais de ensino para minorias historicamente excluídas. Essa Lei focou na inclusão de estudantes negros, aos oriundos de escola pública, ou com renda de até 1,5 salário-mínimo por pessoa.
Os impactos dessa medida são atestado por estudos que apontam, no período de 2013 e 2019, um aumento de 205% na quantidade de alunos universitários pretos, pardos, indígenas, de baixa renda ou vindos de escolas públicas. Considerando o período de 2010 a 2019, o aumento foi ainda maior, totalizando quase 400%.
As medidas também visam a inclusão de pessoas negras nas esferas do poder e nas atividades públicas. A Lei 12.990/14 reserva 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos e em cargos públicos para a população negra.
Não há história e experiência brasileira sem a história e experiência negra.
Outros exemplos de ações afirmativas
Apesar de tardio, o reconhecimento institucional do racismo, no Brasil, possibilitou que se voltassem os olhos também a outras formas de discriminação persistentes no país, dessa vez contra mulheres, pessoas com deficiência e contra a população LGBTQIA+.
Destaque para a Lei 11.645/08, que inclui no currículo oficial da rede de ensino nacional a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nas diretrizes e bases da educação nacional. A criação de um Ministério dos Povos Originários, no Poder Executivo, para garantir os direitos dos povos indígenas, como saúde, educação, demarcação territorial e valorização de sua cultura também é uma medida impactante.
No âmbito das relações de trabalho, a Lei 8.213/91 reserva cota de 2% a 5% de contratações de pessoas com deficiência (PCD) em empresas com 100 ou mais empregados. Em relação à inclusão de mulheres, o Programa Emprega + Mulheres (Lei 14.457/22) implementou medidas para promover o acesso e a manutenção de mulheres no mercado de trabalho a partir de estímulos de aprendizagem profissional e para a parentalidade na primeira infância, além de medidas de combate ao assédio sexual no ambiente de trabalho.
Do ponto de vista legislativo, infelizmente, ainda não existem ações afirmativas em favor da inclusão da população LGBTQIA+. Contudo, considerando que o direito à igualdade é um direito fundamental previsto na Constituição Federal, a discriminação positiva na iniciativa privada é mais que incentivada. A criação de vagas de trabalho e outras oportunidades exclusivas para mulheres, pessoas negras, PCDs e para a população LGBTQIA+ é uma forma de reparação histórica e conta com respaldo da legislação Brasileira.
Como a educação em direitos humanos pode contribuir para as ações afirmativas?
Aceitar as diferenças e entender o ganho coletivo de uma população heterogênea faz parte de uma educação voltada para a promoção dos direitos humanos. Cada pessoa, em sua individualidade, é um mundo de possibilidades para o proveito do bem comum. A variabilidade (de opiniões, ideias, culturas, escolhas) é condição chave para a evolução da sociedade, de forma que excluir ou marginalizar qualquer pessoa é uma grande perda coletiva.
Como sempre gostamos de lembrar aqui, a educação em direitos humanos ensina as pessoas a se importarem umas com as outras. Portanto, é uma formação em valores que transcende a educação formal. Seu objetivo é estimular uma cidadania ativa e crítica e transmitir os valores da coletividade e solidariedade a fim de provocar uma transformação ampla na sociedade, fazendo com que cada cidadão e cidadã se enxergue como um vetor de promoção do bem comum.
A missão do Instituto Aurora é promover e defender a Educação em Direitos Humanos. Saiba mais sobre a nossa atuação para a redução de desigualdades.
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Algumas referências que usamos neste artigo:
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.
Apesar do aumento de pessoas negras nas universidades, cenário ainda é de iniquidade | GIFE