Por Victória Praseres
Neste artigo, conheceremos os conceitos de Cultura de Paz, a história do surgimento do termo, os pilares fundamentais dessa cultura e sua relação com a educação e a defesa dos direitos humanos.
O mundo passa por problemas que geram crises complexas e que, muitas vezes, podem estar interligados e interdependentes. São desafios atuais, por exemplo, a crise climática, as guerras religiosas, as múltiplas violências, o racismo, o genocídio, assim como exclusões e rivalidades a níveis pessoal, grupal e territorial.
Direta ou indiretamente, todas estas e outras condições afetam o nosso cotidiano, e, às vezes, parece difícil encontrar uma saída. Diante de tantos problemas, costumamos buscar a paz.
O que você pensa quando lê ou ouve a palavra “paz”? Ao decorrer da história da humanidade, o conceito de paz esteve presente em distintas culturas e tradições, desde os gregos na Antiguidade, em que a paz era associada a uma divindade feminina mitológica.
Muito comum em nosso cotidiano, o termo costuma estar associado à passividade, à escassez de ação, ou pode ainda ser definido através do que seria seu antônimo: a paz como ausência de guerra (De Oliveira; Vieira; Brum, 2021). Com isso, podemos entender, de início, que a paz possui um conjunto de significados, os quais podem ser, inclusive, divergentes entre si.
O surgimento do termo “Cultura de Paz”
A expressão “cultura de paz” apareceu pela primeira vez na documentação da Conferência Internacional sobre Paz na Mente dos Homens, convocada pela UNESCO, em um evento realizado na Costa do Marfim, em julho de 1989. Este foi um dos primeiros documentos internacionais a salientar a mudança conceitual de Paz e os desdobramentos do conceito na formulação de agendas e prioridades dos governos.
Desde então, o documento sugeria a necessidade da construção de uma nova visão sobre o assunto, em que houvesse o desenvolvimento de uma cultura de paz baseada em valores universais de respeito à vida, liberdade, justiça, solidariedade, tolerância, direitos humanos e igualdade entre gêneros (Diskin, 2011, Boschi, 2018).
Outro documento importante surgiu a partir do Primeiro Fórum Internacional sobre a Cultura de Paz, realizado pela UNESCO, em El Salvador, em 1994. Neste material está a associação entre os direitos humanos e a paz, demonstrando que, para haver paz, precisa haver a realização e a proteção das necessidades essenciais, essas que estão previstas enquanto direitos humanos.
O documento delineia aspectos relacionados à cultura de paz, como:
- O objetivo de uma cultura de paz: assegurar que os conflitos inerentes ao relacionamento humano sejam resolvidos de maneira não violenta, a partir de valores tradicionais de paz (justiça, liberdade, equidade, solidariedade, tolerância, respeito pela dignidade humana).
- A indissociabilidade entre a paz e os direitos humanos: desta maneira, são indivisíveis, sendo o respeito e garantia dos direitos humanos um princípio norteador da paz.
- Fundamentos para a implementação de uma cultura de paz: O objetivo seria a educação de todos a partir dos valores básicos da cultura de paz. Para tanto, uma mobilização universal dos meios de comunicação e educação, formais e informais, se faz necessária.
- Requisitos para a existência de uma cultura de paz: o aprendizado e uso de técnicas que favoreçam o gerenciamento e resolução pacífica de conflitos.
O ano 2000 foi proclamado pela Assembleia Geral das Nações Unidas como o Ano Internacional por uma Cultura de Paz, a partir da Resolução de 20 de Novembro de 1997.
Já a década 2001-2010 foi denominada de “Década Internacional para uma Cultura de Paz e Não Violência para as Crianças do Mundo” (Resolução de 10 de Novembro de 1998), cuja responsabilidade coube à UNESCO no que se referia à promoção e articulação da campanha mundial que congregou muitas iniciativas no mundo (Diskin, 2009; Werthein, 2000).
Quais os pilares da Cultura de Paz?
Importante mencionar que o conceito de paz, diferente do senso comum, destoa da concepção de ausência de guerra. Desta forma, cultura de paz não significa ausência de conflitos, no entanto a cultura de paz não envolve confronto.
O conflito é pertencente à dinâmica e às relações da vida humana, e — espera-se — ocorre em ambientes democráticos, de modo que a diversidade existente seja respeitada e valorizada. O confronto, por sua vez, se dá quando duas opiniões e crenças não podem ser simultaneamente atendidas.
Por conseguinte, se uma das partes ou ambas tentarem impor suas visões de mundo, e especialmente, a atitude for potencialmente ameaçadora, é possível que seja instaurada uma luta ou abuso de poder, por exemplo.
Por isso, há na cultura de paz a busca ativa para resolver algum problema de maneira construtiva tendo como direcionadores aspectos como a negociação, o diálogo e a democracia (Diskin e Roizman, 2021).
Então, o que norteia a cultura de paz é a não violência, sendo um processo dinâmico, direcionado à resistência e ao engajamento. São seis os pilares da cultura de paz. Abaixo, detalharemos um pouco cada um desses princípios (Diskin; Roizman, 2021; Diskin, 2011; Werthein, 2000):
- Respeitar a vida: promover o respeito e a dignidade a todas as formas de vida, sem discriminação e nem preconceito.
- Rejeitar a violência: baseia-se na prática de não violência, repelindo-a em todas as suas formas (sexual, física, psicológica, econômica, social), em especial em relação às populações vulneráveis.
- Ser generoso: refere-se ao compartilhamento de tempo e recursos materiais promovendo a generosidade e a fim de eliminar a exclusão, a injustiça, a opressão política e econômica.
- Ouvir para compreender: menciona a defesa da liberdade de expressão e da diversidade cultural, priorizando a escuta e o diálogo.
- Preservar o planeta: demonstra a importância do consumo responsável e de um modelo de desenvolvimento que leve em consideração a importância de todas as formas de vida e o equilíbrio dos recursos naturais do planeta.
- Redescobrir a solidariedade: busca contribuir para o desenvolvimento das comunidades através da participação de mulheres e o respeito aos princípios democráticos a fim de criar novas formas de solidariedade.
Caminhos para a construção da cultura de paz
Um caminho chave para construir uma cultura de paz e não violência é a educação. No contexto escolar, não restrito à sala de aula, há potencial para o desenvolvimento de um espaço de acolhimento, possível de trabalhar e transformar a realidade do mundo em que vivemos. Neste ambiente escolar, as crianças e jovens passam a encontrar como referência um(a) tutor(a) e a encontrar seus pares, os quais podem compartilhar necessidades similares.
Nos espaços de diálogo, aspectos como a noção de pertencimento e de participação em grupo, solidariedade, empatia, cooperação e tolerância podem ser desenvolvidos, contribuindo para a formação de uma consciência crítica sobre o mundo em que vivemos (Diskin; Roizman, 2021).
No Instituto Aurora, acreditamos na educação e, por extenso, na educação em direitos humanos, como elementos essenciais para que os pilares da construção de paz sejam propagados no cotidiano. Para conhecer alguns de nossos projetos, você pode clicar aqui.
Como podemos contribuir com a cultura de paz no cotidiano?
Já sabemos que paz não corresponde ao sentido de passividade. Por isso, conhecer sobre a cultura de paz nos convoca à ação. Algumas alternativas para resolução de conflitos e possíveis encaminhamentos foram propostas pelo prof. John Paul Lederach. O professor atribuiu alguns objetivos para transformação de conflitos nos lembrando que a transformação deve ocorrer em distintos níveis, pois todos estes nos impactam (Diskin, 2011; Lederach, 2022):
- Em nível pessoal: os efeitos destrutivos advindos de conflitos sociais podem ser minimizados ao passo que haja a valorização do crescimento e bem-estar de cada sujeito, englobando sua existência nas dimensões física, emocional, intelectual e espiritual.
- Em nível estrutural: observa-se que é importante compreender, assim como tratar, motivos subjacentes e as condições sociais que motivam a expressão violenta ou nociva de um conflito. Orienta-se ainda a promoção de estratégias não violentas que reduzam o confronto em caso de opositores, a fim de diminuir a violência e, depois, eliminá-la e fomentar o desenvolvimento de estruturas que suportem às necessidades humanas básicas e aumentem a participação popular em decisões que afetam a vida deles.
- Em nível relacional: a este ponto, a orientação é voltada a minimizar a comunicação disfuncional, de modo a favorecer a compreensão. O autor atenta para a evocação e o trabalho acerca dos medos e esperanças relacionadas às emoções e à interdependência no relacionamento.
- Em nível cultural: a identificação e compreensão dos padrões culturais que contribuem para o aumento de expressões violentas do conflito são fundamentais. De mesmo modo, o autor demonstra que é importante identificar e construir, com recursos e mecanismos próprios do contexto cultural, reações construtivas para lidar com o conflito.
Refletir sobre a cultura de paz nos faz pensar sobre o mundo em que vivemos, o passado, o presente e tendências para o futuro. A partir dos pilares da cultura de paz, é possível também observarmos nossa relação com o planeta e as vidas existentes nele.
Trata-se de um convite à transformação, a mudanças que contemplam os níveis individuais, grupais e estruturais, revelando a nossa indissociabilidade do todo. Na esteira da cultura de paz, podemos pensar na filosofia do bem viver, a qual nos impulsiona a uma forma de organização alinhada à construção de um mundo habitável para a existência e convivência das próximas gerações.
Agora que você já conhece um pouco mais sobre os pilares da cultura de paz, lhe convidamos a refletir:
quais ações no seu cotidiano, na sua comunidade e no seu território podem contribuir para um mundo justo, solidário e sustentável?
Quem nos inspirou
BOSCHI, Helena. ” Cultura de paz”: gênese de uma fórmula entre discursos de guerra e violência. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 57, n. 2, p. 848-876, 2018.
DISKIN, Lia; ROIZMAN, Laura Gorresio. Paz, como se faz?: semeando a cultura de paz nas escolas. 4. ed. São Paulo: Palas Athena; Brasília: UNESCO, 2021. 230 p.
DISKIN, L. Cultura de Paz. São Paulo, SENAC (2011). Disponível em: https://www1.sp.senac.br/hotsites/gd4/culturadepaz/arqs/cartilha.pdf Acesso em: 26 Nov 2025
DE OLIVEIRA, Simone Barros; VIEIRA, Monique Soares; BRUM, Letícia. Cultura de Paz: Aspectos históricos e conceituais. Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 20, n. 1, p. e38618-e38618, 2021.
LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos. São Paulo: Palas Athena, 4 ed., 2022
WERTHEIN, Jorge. Manifesto 2000 por uma cultura de paz e não-violência. EccoS–Revista Científica, v. 2, n. 2, p. 108-114, 2000.
