Falar em justiça social é diferente de falar sobre justiça. Apesar de ser uma expressão cada vez mais comum em debates políticos e notícias, nem sempre seu sentido é compreendido. Entenda o que significa justiça social e como a sociedade pode fazer escolhas melhores e mais justas para todas e todos por meio de políticas de redistribuição e reconhecimento.
Por André Bakker, para o Instituto Aurora
(Foto: Lu Berlese)
Já é de praxe começarmos nossos textos com uma pergunta. Não tem como ser diferente com esse. Então, aqui vai: o que é justiça para você?
Falar de justiça é tocar em um tema caro a todas as pessoas. É um assunto sobre o qual quase todo mundo tem alguma opinião. É um debate que perpassa vários meios e se relaciona como uma série de situações de nossas vidas. E é por isso que a questão “será que isso é justo?” já passou pela cabeça de, novamente, quase todo mundo.
Esse assunto não é nada novo. A justiça – ou o justo – é um dos temas básicos da filosofia ocidental e tem suas origens na antiguidade clássica, com Platão e Aristóteles. A partir desses pensadores, podemos colocar como ponto de partida dessa discussão a seguinte pergunta: o que é devido a quem e por quê? Dessa interrogação podem derivar muitas outras, tais quais: o que faz alguém merecer algo? Por que devemos isso ou aquilo para alguém? Por que alguém tem algo e eu não tenho? Dentre tantas outras. Certamente essas questões já pipocaram na sua mente, não é?
Mas aqui, nesse texto, estamos falando de um tipo específico de justiça. Falamos sobre justiça social. Mais especificamente, falamos sobre justiça social no mundo de hoje, na contemporaneidade. Quando nos referimos à justiça social, temos que ter em mente que é um conceito relativamente novo e quem tem sido tema de debates bastante complexos ao longo do século XX, por parte de filósofas e filósofos e cientistas sociais. Por isso, é impossível esgotar esse tema aqui. É importante ter em mente, também, que a justiça social trata do reconhecimento de que existem desigualdades econômicas e sociais e que é preciso lidar com elas na hora de definir o que é justo.
“Ok, mas isso ainda parece um pouco abstrato… Lidar com as desigualdades de que forma?”.
Vamos por partes. Tomemos o exemplo de um economista, vencedor do prêmio Nobel, que tem dedicado parte de sua carreira à investigação dessa importante questão filosófica, Amartya Sen. Logo no início de seu livro A ideia de justiça, o autor indiano nos coloca diante de um dilema: imagine que três crianças querem brincar com uma flauta e cabe a você decidir qual fará isso. Acontece que a primeira criança é a única que sabe tocar flauta. A segunda, por sua vez, foi quem fez a flauta. E a terceira, por ser muito pobre, nunca teve a oportunidade sequer de ver uma flauta de perto. Qual seria sua decisão?
O que Sen quer nos mostrar é que escolher quem merece o quê ou quem receberá alguma coisa – isto é, distribuir recursos (no caso a flauta) – é realmente muito difícil e não há uma resposta consensual, puramente lógica ou óbvia para isso. Por outro lado, o caso das crianças também revela que todas as definições de quem terá prioridade para receber algo são, no fim das contas, escolhas. Simples assim. Posso escolher que é justo dar uma flauta para quem sabe usar, ou para quem a fez ou, ainda, para quem nunca teve acesso a uma flauta. Nesse caso, não importa muito se a decisão se dá por conta da minha fé, ideologia, raciocínio ou o que for. O que importa é que, em algum nível, foi feita uma escolha.
E tem mais, se pensarmos com calma para nossas opções nesse caso poderemos concluir que tanto a primeira quanto a segunda criança também partiram de escolhas pessoais: uma quis aprender a tocar flauta, e o fez. A outra quis construir uma flauta, e também o fez. Agora, a terceira criança certamente não escolheu ser pobre. Ninguém escolhe nascer em uma certa circunstância, família, tempo, local e com certos talentos ou dificuldades. Sendo assim, é justo privar alguém de algo que independe de suas escolhas? A justiça social levará tudo isso em consideração na hora de fazer a escolha e é dessa maneira que ela lida com as desigualdades.
O que vamos abordar neste artigo:
- Justiça social como distribuição e reconhecimento
- Mas o que é preciso redistribuir para fazer justiça social?
- E o que é preciso reconhecer para fazer justiça social?
- Como eu posso começar a pensar e agir considerando a justiça social?
- Se eu ajudo pessoas que necessitam eu estou praticando justiça social?
- Mas, então, como o Instituto Aurora contribui com a justiça social?
Publicado em 24/03/2021.
Justiça social como distribuição e reconhecimento
Quando tratamos de desigualdades, podemos entendê-las a partir de uma divisão. Existem desigualdades relacionadas a fatores econômicos e desigualdades relacionadas a como a sociedade vê as pessoas em razão de seu gênero, sexualidade, etnia, nacionalidade, raça etc. (o que chamamos de status. Por exemplo, o status de uma pessoa heterosexual é diferente de uma pessoa homossexual. Assim como o status de um homem é diferente do status de uma mulher). Esses elementos, econômicos e de status, podem ou não se misturar. O que importa é que a justiça social busca garantir que todas as pessoas sejam vistas de maneira igual e tenham acesso às mesmas possibilidades de escolha, o que é chamado de reconhecimento e redistribuição.
Se a pergunta básica sobre justiça era “o que é devido a quem e por quê?”. As questões básicas da justiça social são:
- Por que existem desigualdades?
- Elas são justas?
- Como lidar com essas desigualdades?
Algumas pessoas entendem que para fazer justiça social basta redistribuir recursos materiais na sociedade. Outras pessoas pensam que é preciso garantir a igualdade de oportunidades para todas as pessoas. E há, também, quem ache que a justiça social exige um certo tipo de reconhecimento das identidades, que não ocorre com a mera distribuição de recursos e oportunidades. É no debate entre essas vertentes que surgem as grandes discussões sobre justiça social.
Assim, pensar em justiça social é, de maneira geral, aceitar que a sociedade não precisa ser como é e que desigualdades existem não porque o mundo é assim, ou porque é algo natural, mas porque foram e são feitas escolhas. E se é assim, então a sociedade pode ser diferente. A sociedade pode escolher formas para lidar com as desigualdades, as quais passam pela redistribuição, pelo reconhecimento ou pelas duas coisas juntas.
Mas o que é preciso redistribuir para fazer justiça social?
Depende! Basicamente, tudo aquilo que é necessário para se ter uma vida boa. Podem ser bens materiais e riquezas (que são redistribuídas por meio de tributação e de programas de auxílio na renda, por exemplo), podem ser oportunidades (que são distribuídas com políticas de acesso à educação, à seguridade social e cotas, por exemplo) ou qualquer outro recurso.
Vejamos um exemplo do cinema: O filme O poço, de 2019, dirigido pelo espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, aborda bem essa questão. Aqui vai um pequeno spoiler (se preferir, pule esse parágrafo): no filme as pessoas estão presas em uma espécie de torre, sendo que há apenas dois indivíduos por andar. Diariamente, uma mesa farta desce, andar por andar, e fica parada por alguns minutos para que as duas pessoas se alimentem e, então, segue para o andar de baixo, estaciona por alguns minutos e assim por diante, até o último (desconhecido) andar. Imagino que o problema já tenha pipocado na cabeça da leitora ou leitor: quem come primeiro come mais e melhor, quem como por último não tem a mesma sorte. Nessa ficção (ou não … ¯\_(ツ)_/¯ ), é óbvio que os recursos são limitados e que, se os de cima não quiserem, os de baixo não comem. Portanto, se falássemos em justiça social nesse contexto, estaríamos falando da (re)distribuição do recurso comida.
E o que é preciso reconhecer para fazer justiça social?
Esse caso é um tanto mais complexo. De maneira simplificada, justiça social tem a ver com reconhecimento de certos grupos e identidades com pouca representação política e/ou com necessidades específicas: mulheres, indígenas, negras e negros, pessoas vivendo em miséria ou pobreza, pessoas com deficiências, LGBTQI+’s e outros grupos que possam existir ou vir a existir.
Uma pessoa homossexual financeiramente satisfeita pode não se preocupar com redistribuição de renda para si, mas certamente quer ter a mesma oportunidade de casar e doar sangue que as pessoas não homossexuais têm. No fim das contas, querem ser reconhecidas como iguais.
Em outros casos, o reconhecimento pode exigir algo a mais. Pessoas com deficiência, em certas situações, necessitam de meios acessíveis para se locomover pela cidade. Nesse caso, também querem ser reconhecidas como iguais, mas para isso precisam ser tratadas desigualmente, pois é indispensável que se entenda as especificidades e necessidades que têm e sejam providenciadas formas de garantir os meios adequados de locomoção.
Voltemos a mais um exemplo da cultura pop. Se você já leu ou viu algo da série X-Men, sabe que a temática de fundo dessas histórias é a luta dos mutantes por aceitação em uma sociedade que despreza o diferente. Soa familiar? Essas histórias são baseadas nas lutas por direitos civis de mulheres, negros e LGBTQI+s, que são lutas por reconhecimento.
Como eu posso começar a pensar e agir considerando a justiça social?
Primeiro, deixe de lado a ideia de que todas as pessoas são plenamente responsáveis por suas situações na vida. Aceite que algumas desigualdades não dependem da vontade dos indivíduos, e que, em realidade, boa parte das diferenças entre as pessoas é resultado de fatores que estavam além das possibilidades de escolha. Ninguém escolhe nascer em um determinado país, em uma época, em um tipo de família, com talentos ou dificuldades ou sofrer de alguma doença ou acidente. Isso apenas acontece. Pensar em justiça social é, no mínimo, levar em consideração esses fatos para, aí então, começar a se perguntar o que cabe a quem e quem merece o quê.
Em resumo, quando falamos em justiça social, estamos nos perguntando: as pessoas estão tendo as mesmas oportunidades? Elas estão sendo tratadas de maneira diferentes? Se sim, por quê? Por simples discriminação ou porque sem o tratamento desigual elas não teriam as mesmas chances que outras pessoas? A justiça social entende que nem tudo depende do esforço e da vontade das pessoas.
Caso você queira se inteirar mais, vale a pena buscar as principais fontes. Talvez, o mais importante representante contemporâneo desse debate seja o filósofo americano John Rawls (1921-2002), autor que renovou a discussão acerca da justiça, propondo uma teoria baseada na distribuição equitativa de recursos na sociedade, sem deixar de lado a liberdade individual. Esse filósofo nos legou uma forma muito perspicaz para entendermos as ideias de justiça. Imagine-se na seguinte situação: você tem que escolher como a sociedade vai funcionar, mas tem que fazer isso sem saber qual é seu sexo, gênero, idade, cor, religião, classe social… Parece difícil? Pois é justamente essa situação de não saber qual sua posição na sociedade que, segundo Rawls, fará com que você crie uma sociedade baseada na justiça social.
Para além desse autor, outros dois nomes devem ser mencionados: Nancy Fraser e Axel Honneth. Ambos continuam conduzindo análises que nos fazem pensar nos dois elementos primordiais da ideia de justiça social, a redistribuição e o reconhecimento.
Por fim, outra excelente referência para esse debate é o professor de Harvard, Michael Sandel. Esse filósofo ficou famoso pelo seu livro (que é um best-seller e que recomendamos a leitura) Justiça, o que é fazer a coisa certa? e também pela suas aulas – as mais lotadas de Harvard – com o mesmo nome, que você pode conferir aqui.
Se eu ajudo pessoas que necessitam eu estou praticando justiça social?
Em alguma medida sim, mas a ação individual não é o mais importante. Podemos dizer que justiça social, no âmbito pessoal, tem a ver com cidadania, e em especial com a cidadania ativa.
É claro que há importância em ser empático e solidário com as pessoas, em especial com aquelas que têm menos acesso a bens necessários. Mas a justiça social implica uma mudança nas estruturas da sociedade como um todo, por isso não pode depender de atitudes individuais. Justiça social é diferente de altruísmo, o que realmente importa é como o poder público age e vê as pessoas.
Para a justiça social, interessa como as instituições de nossas sociedades lidam com as desigualdades, não tanto como as pessoas pensam. Vejamos um último exemplo: imagine um país em que a constituição diz que a licença maternidade é exclusividade da pessoa que engravida, e outro em que a constituição diz que qualquer um dos responsáveis ou genitores (pais/mães) podem tirar a mesma licença para cuidar da criança recém nascida.
No primeiro país, quais são as chances de uma empresa não contratar uma mulher? E no segundo? Se a empresa não sabe qual pessoa do casal tirará a licença, não existe razão para ela deixar de contratar uma mulher ou dar preferência a um homem. Sendo assim, o impacto de uma lógica machista por parte da pessoa contratante não teria tanta repercussão, pois a constituição não daria espaço para um tratamento desigual entre os gêneros nesse caso.
Por tudo isso, a justiça social depende da existência de um Estado com instituições preocupadas com a qualidade de vida das pessoas. Na prática, políticas como ações afirmativas (cotas, por exemplo) e de redistribuição de renda (bolsa família, auxílio emergencial ou uma renda básica para todas as pessoas) são políticas pautadas na ideia de justiça social. Em outros termos, é quase como se os órgãos públicos tratassem as pessoas com uma espécie de solidariedade ao invés de simplesmente deixar cada um cuidar de si.
Isso não significa, porém, que o papel das pessoas individualmente não seja importante, afinal de contas, em uma democracia, aquilo que o Estado faz deve ser um reflexo das demandas populares – sempre dentro de certos limites, como a constituição e os Direitos Humanos. Quanto mais consciência pública e social as pessoas tiverem, mais fácil será ter instituições socialmente justas.
Mas, então, como o Instituto Aurora contribui com a justiça social?
Nós, no Instituto Aurora, temos como missão integrar uma sociedade justa: em que ninguém é invisível, em que as diferenças são reconhecidas e as desigualdades degradantes e desumanizadoras são superadas. Por isso contribuímos colaborando com a formação de pessoas que compreendam essa proposta. De servidores e servidoras públicas que passam por nossas formações, a voluntários e voluntárias que ajudam em nossos projetos, temos sempre em nossas ações a intenção de disseminar o respeito às diferenças e atitudes que as reconheçam. Conheça alguns de nossos trabalhos aqui.
Não pretendemos esgotar nesse texto todos os possíveis sentidos de justiça social, mas esperamos que essa introdução lhe estimule a procurar mais trabalhos sobre o tema. Desejamos que esse artigo sirva para lhe dar os elementos básicos para compreender e, quem sabe, defender a ideia de uma sociedade socialmente justa. Esperamos que tenha ficado nítido que justiça social não depende só da vontade de pessoas individualmente ou de instituições privadas e de terceiro setor, por maiores e mais influentes que sejam. A justiça social é uma conquista da sociedade como um todo e está na forma como as instituições públicas e as pessoas lidam com as diferenças e as desigualdades. Por compreender isso, estamos sempre dialogando com secretarias de estado, formando servidoras e servidores públicos e divulgando esses temas para o público em nossas redes sociais. É por meio de uma educação que capacite para uma visão de mundo mais ampla que contribuímos com a justiça social. Isso vai desde a capacidade de entender e aceitar o outro até a compreensão da importância dos direitos humanos. Ou seja, o Instituto Aurora busca influenciar e contribuir desde a formação do cidadão e da cidadã até a elaboração da política pública.
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Algumas referências que usamos neste texto
SEN, Amartya. A ideia de justiça. Companhia das Letras, 2009.
SANDEL, Michael. Justiça, o que é fazer a coisa certa? Civilização brasileira, 2009.
JOHNSTON, David. Breve história da justiça. São Paulo: WMF, 2018.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2016.