Quando é coisa ruim, Bolsonaro não costuma falar da boca pra fora. Quando é boa, a gente desconfia. Na abertura do debate geral da 76ª Assembleia Geral da ONU tiveram mentiras e tiveram verdades. Mas, será que as verdades vão se cumprir? Você pode ler o discurso de Bolsonaro na íntegra e fazer suas análises. Por aqui, como a nossa pauta é a educação em direitos humanos, selecionamos alguns trechos que nos chamaram a atenção e que, de algum modo, se relacionam com a EDH.
Por Michele Bravos
(Foto: UN Photo/Cia Pak)
Vale dizer que uma mensagem não se faz só do que É DITO, mas também do que NÃO É DITO. Diferente dos discursos proferidos nos anos anteriores: 2019 e 2020, o deste ano não chegou a mencionar o termo “direitos humanos” (nem contra nem a favor).
Referências à paz e à segurança, que também foram comuns nos outros dois discursos, igualmente não ocuparam muito espaço neste. Nas duas vezes em que o termo “paz” apareceu no discurso deste ano, ele estava se referindo a: (i) a Missão de Paz da ONU, um tipo de intervenção que envolve militares e que devemos questionar, pois coleciona relatos de violências contra civis e levanta a pergunta: faz sentido fazer guerra para se alcançar a paz?; e (ii) paz de modo abstrato, quando diz “vislumbramos um mundo de […] paz”.
Não foi surpresa, mas podemos chamar atenção também para o fato de não ter havido menção aos direitos das mulheres – nem mesmo em relação ao enfrentamento à violência contra mulher, que é pauta do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e que já havia aparecido muito rapidamente no discurso de 2020, quando ele parabenizou duas militares brasileiras por sua atuação no combate à violência sexual em Missões de Paz da ONU.
Publicado em 29/09/2021.
Vamos ver juntas alguns trechos:
“O Brasil tem um presidente que acredita em Deus, respeita a Constituição e seus militares, valoriza a família e deve lealdade a seu povo”.
Muitos conceitos podem ficar no campo abstrato e dar margem para as pessoas mais desavisadas fazerem as associações que mais lhes convêm…
Por exemplo, Bolsonaro diz crer em Deus (no Deus do cristianismo). É um prato cheio para alguns cristãos acreditarem que o país segue na direção de Cristo, mesmo quando as atitudes do presidente não são compatíveis com aquela crença.
Sobre família, sabemos que em seu governo cabe apenas um modelo de família: pai e mãe cis e heterossexuais, com filhas e/ou filhos (de preferência, filhos. Lembram quando ele se referiu a sua filha como uma “fraquejada”?). Ele diz que essa é a família tradicional brasileira, ignorando outros modelos possíveis de família e o fato de o Brasil ter 11 milhões de mães solo no país, segundo dados de 2018 do IBGE.
“São 8,5 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 66% são vegetação nativa, a mesma desde o seu descobrimento, em 1500.”
Não foi uma surpresa, mas afirmar que o Brasil foi descoberto nega a invasão que ocorreu neste território, bem como o genocídio que povos originários sofreram.
O Brasil foi invadido, o Brasil não foi descoberto. Essas terras, a biodiversidade e os povos originários já existiam aqui antes de este lugar receber o nome Brasil.
A linguagem também molda nossa forma de ver o mundo e devemos nos atentar para isso. Ainda neste assunto, vejam o próximo recorte:
“600.000 índios vivem em liberdade e cada vez mais desejam utilizar suas terras para a agricultura e outras atividades.”
O uso do termo “índio” remete a um personagem folclórico e ignora as diferenças entre os povos indígenas. Já o termo “indígena” faz referência ao fato de serem pessoas originárias do território e valoriza as diferenças entre os povos.
Sobre o uso do termo indígena, a gente te convida para ler o nosso artigo Como fazer um “Dia do Índio” educativo na escola?, onde nos aprofundamos nisso.
“Ratificamos a Convenção Interamericana contra o Racismo e Formas Correlatas de Intolerância. Temos a família tradicional como fundamento da civilização. E a liberdade do ser humano só se completa com a liberdade de culto e expressão.”
É fato que houve a ratificação da Convenção Interamericana contra Racismo e Formas Correlatas de Intolerância, mas o que isso significa? O papel de uma convenção é trazer, para os países signatários, alinhamento e compromisso com práticas concretas em torno de um tema comum, no caso dessa convenção é o “enfrentamento ao racismo e intolerância”.
Sendo assim, que nosso país caminhe para uma cultura antirracista, que se traduza em redução das violências e mortes contra a população negra.
Aqui cabem perguntas:
- Como se pretende reduzir o racismo estrutural e institucional?
- Como se almeja alterar a seletividade da justiça e da segurança pública?
- Que tipo de medidas concretas se tomará em relação à formação de servidores públicos?
É importante dizer que a convenção menciona inclusive o combate às práticas racistas, como a disseminação de discurso de ódio por meio de redes sociais. É inevitável não lembrar de todos os ataques sofridos por Marielle Franco, mulher negra e lésbica, inclusive por parlamentares.
Sobre o tema intolerância cabe apresentar a definição de intolerância pela Convenção:
“Intolerância é um ato ou conjunto de atos ou manifestações que denotam desrespeito, rejeição ou desprezo à dignidade, características, convicções ou opiniões de pessoas por serem diferentes ou contrárias”.
Percebam que o termo traz uma abrangência para além da questão étnico-racial e de nacionalidade. O que é interessante, porque abre espaço para incluirmos aí a intolerância contra pessoas com deficiência, pessoas LGBTQIA+, pessoas com opiniões contrárias ao governo atual (olha aí o direito à liberdade de expressão).
Como em sua fala, Bolsonaro menciona a liberdade de culto, é importante dizer que um estado laico como o Brasil precisa garantir liberdade de culto de qualquer religião, não só da suposta religião do presidente.
Por fim, a Convenção, já em sua introdução pressupõe que todos os países signatários entendem o papel fundamental da educação na promoção do respeito aos direitos humanos, da igualdade, da não discriminação e da tolerância.
Como já falamos aqui, a área de educação em direitos humanos passou por um desmonte desde o início do mandato de Bolsonaro, em 2019. Se você não se lembra, dê uma olhada no nosso Panorama da Educação em Direitos Humanos – O biênio 2019-2020.
Queremos ver se até o fim desse governo haverá alguma mudança na direção contrária ao que vem acontecendo ou se ficará apenas no discurso mesmo. Será que estamos esperando demais? Talvez, sim…