Garantir a dignidade humana de todas as pessoas é o objetivo central da Constituição Federal. A educação em direitos humanos pode ajudar na consolidação desse princípio em um valor social compartilhado.
Por Felipe Pinheiro, para o Instituto Aurora
(Foto: Carol Castanho)
Dentre todos os seres que vivem reunidos, a espécie humana se destaca pela mais alta sociabilidade. Curiosamente, em comparação com os demais animais, as necessidades biológicas dos seres humanos contrastam com os meios fornecidos para sua superação, de maneira que a prevalência da espécie está fundamentalmente atrelada à capacidade de se relacionar. Não foi à toa que Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, desenvolveu a tese do “animal social”, certo de que a natureza humana exige a convivência em comunidade.
A singularidade humana é complementada pelas também capacidades racional e emocional, que possibilitam que os seres humanos, potencialmente, tomem decisões informadas, projetem-se no futuro e vivam repletos de sonhos e aspirações.
Esse conjunto de atributos faz com que os seres humanos não consigam viver sem atribuir valor às coisas, de forma que a constatação de um fato não é senão produto de um juízo de valor. Dessa forma, a singularidade do espírito humano é um valor em si, que deve ser respeitado e elevado à posição de fonte de todos os demais valores. É assim que cada pessoa humana tem um valor que faz parte de sua essência e está acima de qualquer preço, o valor da dignidade.
O que vamos abordar neste artigo:
- O que é dignidade?
- Como a educação em direitos humanos pode contribuir para a dignidade de todas as pessoas?
Publicado em 01/08/2023.
O que é dignidade?
A ideia de dignidade humana tem origem bíblica e principalmente na filosofia Iluminista. No Velho Testamento, seu fundamento está nas passagens em que Deus criou o homem e a mulher à sua própria imagem (Gn, 1, 26/27) e rogou que cada pessoa amasse o próximo como ama a si mesmo (Lv, 19, 18).
Na filosofia, Giovanni Picco della Mirandola foi pioneiro ao atribuir à espécie humana condição de soberana em função de seu intelecto, qualidade que lhe conferia livre arbítrio para viver segundo seu desejo, rompendo com as amarras religiosas da época.
Contudo, foi durante o Iluminismo, principalmente a partir das reflexões de Immanuel Kant, que a ideia de dignidade humana começou a ganhar contornos modernos.
O filósofo argumentou que cada pessoa humana, em função de sua capacidade individual de utilizar a razão para se autodeterminar, deve ser tratada como um fim em si mesmo e nunca como meio para satisfação de vontades alheias. Afinal, no reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Aquilo que tem preço tem valor relativo e, portanto, pode ser substituído por outro igual. Já o que tem dignidade tem valor íntimo e jamais poderá ser substituído.
A partir disso, chegou-se à seguinte formulação: se o ser humano é um animal social e tem a racionalidade – portanto, a capacidade de se autodeterminar – e sensibilidade como características inerentes, pela qual a combinação dos três os impede de existir sem atribuir valor às coisas, então a individualidade racional de cada pessoa é um valor a ser respeitado e levado à posição de fonte de todos os demais valores.
Dignidade, portanto, é o conjunto de atributos intrínsecos que compõem a essência de todos e de cada um de nós. É a sociabilidade, a racionalidade e a sensibilidade que todos e todas compartilhamos, mas que cada pessoa manifesta de forma diferente. Temos dignidade porque somos especiais. Somos especiais porque somos iguais.
Qual o princípio da dignidade da pessoa humana?
Para entender o princípio em questão, deve-se considerar que são duas as dimensões da dignidade humana: uma interna e inviolável, que contempla o valor intrínseco de cada indivíduo; e a outra externa e relativa, fundamentada em valores comunitários e nos direitos e obrigações deles decorrentes.
A dimensão interna parte do princípio de que os seres humanos são dotados de razão e autonomia e, portanto, são potencialmente capazes de se autodeterminar e escolher os caminhos da própria existência.
E aí que está o valor intrínseco de cada pessoa, característica inalienável (que não pode ser transferida) e irrenunciável ao qual se aplica a máxima kantiana de tratar cada um como um fim em si mesmo e nunca como um meio para satisfação de desejo alheio.
Não se pode esquecer que essa dimensão é analisada em abstrato, como uma capacidade potencial de todos os seres humanos. Portanto, mesmo aqueles que, por qualquer razão, não puderem desenvolver essa característica, serão igualmente merecedores de tratamento digno.
A dimensão externa, por sua vez, remete à análise da dignidade humana como um valor compartilhado.
Se a dignidade é inerente a cada pessoa, então é inerente a todas as pessoas e, portanto, sua análise só faz sentido no âmbito comunitário. A dignidade humana pressupõe a igualdade e determina que cada pessoa respeite o valor intrínseco das demais.
Sua relativização é justificada em função de sua dimensão histórico-cultural, de forma que seu conteúdo está sempre em evolução.
O princípio da dignidade humana determina, em resumo, que todas as pessoas devem ser respeitadas em seus direitos e cobradas em suas obrigações de acordo com suas limitações e capacidades.
O que a Declaração dos Direitos Humanos diz sobre dignidade?
Ao final da Segunda Guerra Mundial, após avaliadas as atrocidades cometidas pelo regime nazista, a comunidade internacional se mobilizou por um pacto que reconhecesse a importância dos direitos humanos e da centralidade da dignidade humana como um valor universal.
A condução da dignidade como referencial ético foi consolidado na Carta das Nações Unidas de 1945, que, logo em seu artigo 1º, vincula a comunidade internacional a respeitar os direitos humanos de forma perpétua.
Na mesma linha, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo 1º, reconhece que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Vale dizer, a dignidade humana não é conferida por lei ou pelo Estado. Por sua própria natureza, trata-se de uma condição da existência humana.
Para valer, o valor dignidade não precisa de nenhuma legitimação objetiva, na medida em que já foi acolhido subjetivamente pelo universo humano. Qualquer pessoa humana em qualquer lugar do mundo pode e deve exigir o respeito à sua dignidade, independentemente de autorização estatal.
O que a Constituição de 1988 diz sobre dignidade?
No Brasil, a Constituição Federal consagrou a dignidade humana como um dos fundamentos do Estado. Isto significa que o Estado – e não o governo em exercício – existe em função do ser humano e deve desempenhar políticas públicas sempre em favor do tratamento de cada indivíduo como um fim em si mesmo, protegendo-o de arbitrariedades praticadas por particulares ou até mesmo pelo Poder Público.
Em relação aos direitos fundamentais contemplados na Constituição, seu fundamento jurídico-normativo reside na própria dignidade humana. Ou seja, os direitos fundamentais são desdobramentos específicos da dignidade e o exercício de cada um deles representa a incidência da própria dignidade humana.
Portanto, a dignidade da pessoa humana é a essência do ordenamento jurídico brasileiro. E uma Constituição que parte da efetivação da dignidade humana assume o compromisso de tratá-la como objetivo pedagógico, de maneira que seus efeitos irradiam, inclusive, nas normas que não a preveem expressamente.
Como a educação em direitos humanos pode contribuir para a dignidade de todas as pessoas?
A educação em direitos humanos é uma educação em valores. Consiste em um processo permanente e global, voltado a uma mudança cultural que transcende a formação acadêmica ou o mero letramento, pois objetiva criar comportamentos e práticas de solidariedade, tolerância, respeito e inclusão.
Nesse aspecto, pode-se afirmar que a educação em direitos humanos traz o princípio da dignidade da pessoa humana por meio da educação – que pode ser formal ou não formal. Assim, compreende-se que cada pessoa possui dignidade, independente de seu gênero, raça, etnia, religião, orientação sexual, entre outros.
Vale frisar que o processo é de educação em direitos humanos e, portanto, não se satisfaz com a mera repetição de comportamentos e práticas esperadas pelo meio social. Para se educar em direitos humanos, deve-se compreender a importância de todos e de cada um na propagação de valores humanísticos e voltados para a promoção da paz.
Na pesquisa “Panorama da Educação em Direitos Humanos no Brasil”, o Instituto Aurora realizou entrevistas com responsáveis pela EDH nos estados e no distrito federal. Um dos temas trabalhados nas políticas e ações de EDH é a questão da dignidade. Mais informações podem ser lidas no material, que está disponível para download gratuito.
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Algumas referências que usamos neste artigo:
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. 1ª Edição. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012.
Constituição Federal.
KANT, I. A fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa, Portugal. Edições 70, 2011.
REALE, Miguel. Fundamentos do direito. 4ª Ed. São Paulo. Migalhas, 2014.