Acontecimentos recentes sugerem as Big Techs como ponto central diante da crise da democracia. Uma vez que o crescimento de governos autoritários e conservadores é facilitado diante da utilização das redes sociais como ferramenta de manipulação eleitoral, enfrentar esse cenário demanda a compreensão da forma como elas operam.
Por Gabriela Assad, para o Instituto Aurora
(Foto: Camilo Jimenez / Unsplash)
A participação das Big Techs, isto é, grandes empresas de tecnologia, na recente ascensão de partidos de extrema-direita no mundo – o que inclui Brasil, Argentina, Áustria, EUA e Alemanha – acende um alerta no que diz respeito à importância das plataformas digitais na saúde da democracia. Isso ocorre porque as redes ajudaram a extrema-direita a alcançar um patamar em que ela se tornou uma corrente de pensamento dominante, mainstream, capaz até de se tornar moda entre os mais jovens.
Uma vez que as big techs operam mediante a captura e utilização de dados sensíveis de seus usuários – recolhidos através da atenção e tempo dedicados à plataforma –, a modulação das escolhas realizadas pelos indivíduos parece ser não apenas do padrão de consumo, e sim também das tendências políticas e opções eleitorais. Essa interferência, perceptível nas últimas campanhas, contamina o ambiente democrático.
Embora as novas tecnologias tenham prometido democratizar o acesso e ampliar a interação entre os indivíduos e, especialmente quando inseridas em discussões políticas, cidadãos, acontecimentos recentes sugerem, além do aprofundamento das desigualdades sociais, a utilização dessas novas plataformas para a manipulação em benefício privado.
Nesse cenário, as discussões sobre a regulações das plataformas digitais como meio para salvaguardar a democracia, ou ao menos para tentar manter o pouco que resta de funcionalidade das instituições que ainda não foram corroídas pela ideologia reacionária, ganham corpo.
Tópicos deste artigo:
- O que são big techs?
- Big Data
- Mercado digital: como funcionam as tecnologias do espetáculo?
- Efeito Trump: do fim da mediação de plataformas ao enfraquecimento da democracia
- Liberdade de expressão
- A participação de Elon Musk e do X (antigo Twitter) na eleição estadunidense
- A empreitada de Mark Zuckerberg e o futuro da Meta
- Perspectivas: por uma Democracia Digital Sustentável
- Considerações finais
Publicado em 28/05/2025.
O que são big techs?
As Big Techs são grandes empresas de tecnologia que utilizam plataformas de uso intensivo de dados. Atualmente, as mais influentes delas são Microsoft, Alphabet (empresa controladora do Google e Youtube), Amazon, Apple, Meta (controladora do WhatsApp, Facebook, Instagram e Threads) e X.
Segundo Morozov (2018), a ascensão da Big Tech não pode ser percebida apenas como um sintoma de crise econômica, da privatização do bem-estar ou do enfraquecimento de algumas leis antimonopolistas. Ela é, na verdade, a proposta de uma solução para tudo isso – e uma aposta na criação de um novo acordo político e econômico.
Além disso, a rápida ascensão das plataformas digitais produziu um estado de bem-estar privatizado (Morozov, 2018), no qual nossas atividades cotidianas – por vezes, de maneira imperceptível – são subsidiadas por essas grandes empresas de tecnologia interessadas em nossos dados.
Idealizadas para serem viciantes, as plataformas digitais operam mediante algoritmos, sequências de instruções sistemáticas para operar determinadas finalidades, os quais captam dados e retroalimentam determinados padrões comportamentais. Morozov (2018) chama esse fenômeno de “extrativismo de dados”.
A premissa chave do extrativismo de dados é a de que os usuários são “estoques de informações”, de modo que as empresas elaboram formas de nos fazer compartilhar voluntariamente ou abdicar desses dados sem que percebamos. Essenciais para viabilizar modelos baseados na publicidade e condicionar diferentes comportamentos à máquina, esses dados são extremamente lucrativos para as empresas.
Embora esses dados sejam capturados conforme o tempo de tela gasto naquela plataforma, nos encontramos cada vez mais dependentes dessa lógica, sendo quase inviável subvertê-la, seja por necessidade, como nos aplicativos de transporte, seja pela sensação de prazer imediato e autoafirmação, como nas redes socias. Tal regulação algorítmica pode vir a criar um cenário onde todas as decisões serão guiadas por essas grandes empresas e alguns poucos burocratas.
Big Data
Denominamos de Big Data (grandes dados, em tradução literal) a captação e manipulação de dados estruturados de maneira massiva por parte dessas grandes plataformas, cuja extração é o que impulsiona o notório desenvolvimento do setor.
É possível – para não dizer, certo – que, ao pesquisar por um produto específico em uma plataforma de buscas, como o Google, nos deparemos com anúncios de produtos semelhantes em plataformas de redes sociais, como Instagram ou Facebook. Isso acontece porque a nossa intenção de compra foi percebida e a tendência é sermos bombardeados por publicidades até que ela seja efetuada, ou ao menos até que todos os anúncios sejam bloqueados.
A capacidade dos algoritmos, somado a manipulação de dados, de influenciar nas escolhas dos consumidores mediante a acumulação de informações é denominada de capitalismo de vigilância.
Embora a ideia oferecida pelas grandes empresas de tecnologias seja a de que essa inovação pode nos oferecer mais liberdade, aumentando nosso poder de escolha, tudo indica que estamos nos tornando cada vez mais dependentes e adstritos às manipulações dessas empresas e alguns governos interessados na captação desses dados.
Marciano, Nicita e Ramello (2020) definem Big Data como informação privada em poder das plataformas, de modo que a eficiência na sociedade da “datasfera” reside em dados que, embora sejam privados – já que, em tese, só as plataformas podem ter acesso –, são geridos como bens (informações) privatizados.
Assim funciona o capitalismo de plataformas: a informação pessoal subtraída dos usuários é guardada de forma privada para impedir que se revele publicamente por constituírem uma vantagem competitiva no mercado (Marciano; Nicita; Ramello, 2020).
Nesse cenário, é perceptível a manipulação de informações dentro de processos democráticos, razão pela qual Cruz (2021) aponta o Big Data como uma forma de exercer controle “psicopolítico”. A democracia, desse modo, torna-se manipulada por essas “tecnologias de persuasão”, as quais desenham a forma como pensamos e fazemos nossas escolhas.
Se a opinião pública é resultado de um diálogo entre grupos e indivíduos com o meio social, como aponta Cruz (2021), é importante questionar se esses diálogos não estão sendo contaminados pelos algoritmos. Vale salientar que os algoritmos das redes deturpam as informações que chegam até os indivíduos e favorecem a disseminação de fake news.
As notícias falsas, perfeitamente adaptáveis ao modelo de negócio das big techs baseado em extração de dados e modulação algorítmica, seguem sendo um dos principais obstáculos da governança democrática mundial. As ondas de fake news que circundaram as eleições brasileiras de 2018 e 2022 são grandes exemplos disso.
Uma vez que o modelo de negócio das big techs funciona de tal forma que a veracidade das informações passa a ser dispensável, sendo necessário apenas que elas viralizem – “é pela análise de nossos cliques e curtidas, depurados em retratos sintéticos de nossa personalidade, que essas empresas produzem seus lucros” (Morozov, 2018, p. 11) –, elas se tornam estruturas de reprodução da extrema direita.
Nesse sentido, o sociólogo e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), Sérgio Amadeu, define as Big Techs como ferramentas de destruição da democracia para fazer valer o capital. Além de ser território fértil para a disseminação de discurso de ódio contra minorias, as redes sociais podem servir de ponte para a articulação de atos antidemocráticos, como o do dia 08 de janeiro, razão pela qual seguimos defendendo sua regulação.
Mercado digital: como funcionam as tecnologias do espetáculo?
Antes de mais nada, é interessante fazermos uma diferenciação. As tecnologias do imaginário são dispositivos de ativação e mobilização de afeto, utilizadas na construção de visões de mundo. Já as tecnologias do espetáculo, através de recursos tecnológicos, trabalham para a sedução e construção de uma realidade espetacularizada, a qual reforça a criação de um imaginário coletivo.
Em território digital, a tendência à espetacularização, própria do modo de produção capitalista, encontra vazão e se reproduz de forma exponencial. Guy Debord (1997), acertadamente, apontou que o espetáculo na sociedade representa concretamente uma fabricação de alienação. Logo, do mesmo modo que se produz a alienação da mercadoria se produz a alienação pelo espetáculo – onde o próprio espetáculo é a mercadoria.
No entanto, as tecnologias de vigilância do capital, as quais já mencionamos, operam mediante uma economia da atenção onde tudo nas redes sociais é produzido para atrair e capturar a atenção dos seus usuários, motivo pelo qual as críticas a esse modelo encontram tantos obstáculos por parte de alguns dos consumidores mais assíduos.
A linguagem das redes, indiscutivelmente, é a mais acessível possível, até pelo próprio padrão de comunicação adotado. Essa é uma das razões pelas quais a extrema-direita ganha tanta força no ambiente digital: a linguagem reacionária é apresentada, em sua maioria, já pronta, “mastigada” – e facilmente compreendida em uma corrente de whatsapp.
Quanto mais simples é a linguagem, menos tempo se gasta em uma postagem e, consequentemente, mais estímulos são oferecidos aos usuários para suprir a demanda pelo tempo de plataforma. Isso não parece ser tão difícil já que as redes sociais funcionam de maneira tão persuasiva que quanto mais tempo gastamos conectados, mais queremos ficar – e quanto mais ficamos, mais dados são coletados. É o cálculo perfeito.
Fazendo uso da teoria behaviorista de Burrhus F. Skinner, na qual o comportamento é uma resposta fisiológica a um estímulo, denominado de condicionamento operante, Bentes (2022) denomina de tecnobehaviorismo esta tecnociência que utiliza referências do pensamento behaviorista para construir técnicas capazes de enganchar a atenção assim como prever e controlar comportamentos dos usuários.
A partir do elo entre capitalismo de vigilância e economia da atenção, o tecnobehaviorismo oferece modelos teóricos e práticos para alcançar os objetivos econômicos das plataformas, visando a produção do engajamento, gerenciamento de atenção e regulação de comportamento (Bentes, 2022).
Nesse cenário, os indivíduos são tratados puramente como fonte de dados, ou melhor, de lucro. Embora não tenham consciência sobre como suas ações são moldadas por essas grandes empresas, os usuários tornam-se reféns de uma política cruel que esconde os reais interesses de um seleto grupo de empresários.
Efeito Trump: do fim da mediação de plataformas ao enfraquecimento da democracia
Com a eleição de Donald Trump, no dia 06 de novembro de 2024 – o segundo mandato no comando da Casa Branca –, é perceptível o avanço da extrema-direita mundial. Embora o seu crescimento seja observado desde meados da década de 10, a participação do governo dos Estados Unidos confere maior visibilidade à ideologia reacionária e, por certo, oferece maiores riscos também.
As discussões em torno do que será o mandato de um “Trump 2.0” não se restringem às temáticas da guerra Ucrânia-Rússia, cessar-fogo na Faixa de Gaza ou saída do Acordo de Paris, mas abarcam também o entorno do que seria considerado por ele como “liberdade de expressão”. Desde a posse, em 20 de janeiro, o republicano afirmou que uma ordem executiva vai “acabar com toda a censura e trazer de volta a liberdade de expressão”.
Nesse sentido, preocupa a percepção sobre o que considerou uma “engenharia social da raça e do gênero” – cenário onde as discussões sobre identidades de raça e gênero são levantadas. Surpreendendo ninguém, o presidente afirmou que, em seu governo, existirão “apenas dois gêneros: masculino e feminino”. São manifestações como essa que Trump considera liberdade de expressão.
A fala de Trump após a trágica colisão entre um helicóptero do exército e um avião comercial, que deixou 67 mortos no dia 30 de janeiro, é um perfeito exemplo disso. Ao declarar que a culpa pelo acidente pode ser atribuída ao programa de diversidade e inclusão da Agência de Aviação Americana, reforçado pelas gestões anteriores de Biden e Obama, o republicano deixou claro que, antes de oferecer conforto às vítimas, o importante é atacar as políticas afirmativas em qualquer oportunidade que possui.
Todo discurso supremacista e reacionário levantado por um chefe de Estado, quando entra em território propenso à desinformação, como são as redes sociais sob o comando irrestrito das big techs, pode desencadear graves consequências – sendo a principal delas a disseminação de discursos de ódio contra minorias e os ataques a quaisquer políticas de diversidade. Ao fim e ao cabo, esse cenário suscita o enfraquecimento da democracia.
Liberdade de expressão
Embora a liberdade de expressão seja um direito humano, explicitado tanto na declaração universal de direitos humanos (1948) quanto em outros documentos internacionais e nacionais relevantes, ela não pode ser utilizada como uma espécie de termo guarda-chuva para satisfazer os próprios interesses e obstar o livre exercício de direitos e liberdades fundamentais de outras pessoas.
Desse modo, partindo da premissa que discurso de ódio é qualquer fala ou gesto que incite ódio e violência contra determinados grupamentos da sociedade, o impedimento ao seu exercício não é uma afronta à liberdade de expressão, tampouco censura por parte de instituições que tentam resguardar estados de direito.
A censura é caracterizada como uma restrição intencional à expressão sem motivo plausível. A proteção aos direitos humanos e fundamentais, todavia, justifica quaisquer impedimentos, desde que respeitando as legislações vigentes, às tentativas de violá-los.
Portanto, assim como a democracia estadunidense – apresentada ao mundo como modelo ideal, onde os cidadãos e o mercado são livres –, a liberdade de expressão irrestrita, exatamente por, de maneira velada, disseminar ódio e preconceito contra seus opositores, é falha. Falha não porque não cumpre com os seus propósitos sórdidos, mas porque visa produzir um ambiente autoritário dentro de um espaço que se vende como democrático: a internet.
A participação de Elon Musk e do X (antigo Twitter) na eleição estadunidense
A participação de Elon Musk na eleição que devolveu a presidência dos EUA à Donald Trump pode ter gerado surpresas em outros bilionários do ramo – já que o envolvimento dessa classe costuma acontecer por detrás dos holofotes – mas não em quem já vinha acompanhando os passos do empresário. Desde a compra do Twitter, em meados de 2022, após um longo processo e duras críticas, Musk ofereceu fortes indícios de sua queda pela extrema-direita.
Com o objetivo de somar forças à candidatura de Trump, o bilionário gastou, em média, US$ 277 milhões de dólares, conforme a CBS News. O resultado desse investimento não foi alcançado apenas com cargo em nova agência criada por Trump, o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), mas também com a fortuna que vem acumulando desde então.
Segundo estimativa da Bloomberg, o patrimônio de Musk aumentou cerca de 77% desde a vitória de Trump, superando os US$ 400 bilhões no final de 2024. Algumas semanas após as eleições, as ações das empresas do bilionário – Tesla, SpaceX e X – aumentaram consideravelmente, o que fez com que ele se tornasse o bilionário mais rico do mundo em janeiro de 2025.
Além disso, de acordo com Rodrigo Rodriguez, professor de economia da UERJ, Musk também apostou na candidatura de Trump porque está cercado por investigações federais em suas empresas. Visando desburocratizar o governo e reduzir as regulamentações que lhe são exigidas, o bilionário aposta no novo cargo para seguir lucrando e produzindo desinformações de maneira ilimitada.
O interesse de Trump no negócio, todavia, não é surpresa para ninguém. Musk detém o controle de uma das plataformas mais utilizadas no mundo – isso inclui o controle sobre políticas de moderação de conteúdo e checagem dos fatos –, comprovadamente o ponto principal na divulgação de desinformações na campanha eleitoral estadunidense. A personalidade excêntrica de gênio da tecnologia, além disso, atrai, principalmente, as novas gerações. Apostar em Musk, assim como ele em Trump, parece ter sido um dos melhores acordos já realizados.
Embora o gesto com características nazistas realizado por Musk na posse do republicano tenha gerado confusões – onde a própria Liga Antidifamação, que rastreia movimentos antissemitas nos EUA, discorda da associação, ainda que possa soar como apito de cachorro para apoiadores neonazistas do governo –, o envolvimento do empresário na eleição da extrema direita alemã, que alcançou seu melhor resultado desde o final da 2ª guerra mundial, não abre margem para dúvidas.
A empreitada de Mark Zuckerberg e o futuro da Meta
Seguindo os passos de Musk, Mark Zuckerberg anunciou no dia sete de janeiro, dias antes da posse de Trump, a mudança na política de moderação de conteúdo de suas plataformas, Facebook, Instagram, WhatsApp e Threads. Em vídeo, o dono da Meta informou o fim do programa de checagem dos fatos, substituindo-o por “notas da comunidade” – algo semelhante ao realizado pelo X –, onde os próprios usuários são responsáveis por corrigir as informações.
Além de facilitar a disseminação de discursos de ódio e notícias falsas, as fake news, tornando o ambiente digital ainda mais perigoso para grupos minoritários, a Meta aponta a tentativa de regulação realizada por alguns países como “censura”. Sob o discurso de “voltar às raízes em torno da liberdade de expressão”, Zuckerberg visa, sobretudo, transformar suas plataformas em ponto de encontro da extrema-direita mundial, encabeçada por Donald Trump.
Embora o próprio Trump tenha criticado o Facebook inúmeras vezes – a última foi em maio de 2024, por banir alguns usuários por conta de seus conteúdos –, a plataforma já foi utilizada para a eleição do republicano em 2016, o que poderia indicar uma relação anterior de Zuckerberg com o presidente.
A Cambridge Analytica, empresa de análise de dados que trabalhou com o time responsável pela campanha de Trump, utilizou as informações coletadas pelo Facebook, e supostamente vazadas, de mais de 50 milhões de pessoas – tudo isso, é claro, para manipulação eleitoral. Mais do que revelar o uso de dados sensíveis com objetivo político, esse vazamento levanta questionamentos sobre como essas informações são manuseadas pela empresa.
Do mesmo modo, a revelação feita por Frances Haugen, ex-funcionária do Facebook, levanta a hipótese de que a plataforma privilegia o crescimento em detrimento da segurança dos usuários – como em pesquisa que demonstra o impacto da rede social na saúde mental de adolescentes, algo que foi supostamente ignorado por parte da equipe de Zuckerberg. A invasão ao Capitólio por apoiadores de Trump, no dia 06 de janeiro de 2021, teria ocorrido, além disso, após a rede desativar os sistemas de segurança contra desinformação.
A relação conturbada entre Trump e Zuckerberg se assentou não apenas com a doação de US$ 1 milhão feita pelo dono da Meta ao fundo de posse do atual presidente dos EUA, mas também com as recentes mudanças nas diretrizes de conteúdo da sua empresa. Assim como o caminho traçado por Musk, Zuckerberg aposta na aproximação ideológica para se manter à vista da casa branca.
Perspectivas: por uma Democracia Digital Sustentável
Nesse cenário, cada vez mais as democracias – no plural, porque a tendência é a influência extremista de direita ir se espalhando ao redor do mundo – estão colapsando. A convergência entre a ascensão de governos autoritários e conservadores e o crescimento da utilização das redes sociais como meio suscetível à manipulação eleitoreira, através de extensa coleta de dados, não parece ser ao acaso.
A crise da democracia não se restringe à velocidade da disseminação de fake news na internet nos períodos eleitorais, a qual molda o comportamento dos eleitores – facilidade própria do modelo de capitalismo digital onde os cliques são mais atrativos que a verdade. Os ataques às estruturas democráticas são, sobretudo, planejados através das redes sociais, prova disso foram os atentados de janeiro, ocorridos nos EUA (06 de janeiro de 2021) e no Brasil (08 de janeiro de 2023).
Segundo Egler e Pereira (2024), a rede tecnopolítica de extrema-direita visa, sobretudo, manipular as pessoas e transformar a subjetividade coletiva, de modo que toda uma estrutura de valores da extrema-direita seja difundida, valores esses que dependem da manipulação de narrativas para alcançar poder político. Os algoritmos empregados por essas grandes plataformas, desse modo, favorecem a disseminação dessas narrativas.
Embora possa parecer ser uma alternativa implantada de baixo para cima, uma necessidade imposta pela sociedade, os dados sugerem uma ação que vem de cima para baixo (Egler; Pereira, 2024), ou seja, daqueles que detém os meios de produção – os meios de produção, neste caso, sendo as big techs –, para alcançar seus objetivos autoritários e violentos.
Isso ocorre porque, apesar de, retoricamente, essas grandes empresas afirmarem que os algoritmos de aprendizagem de máquina são neutros, não o são – nem foram idealizados para tal. Algoritmos são sistemas matemáticos desenvolvidos por pessoas, com determinadas predileções, para atender determinados objetivos, razão pela qual podemos levantar a hipótese de que o território digital (ou ciberespaço) está sendo utilizado para controlar as crises decorrentes do novo modo de produção capitalista.
Regulação das big techs
Embora insustentável, não parece rentável para essas grandes empresas de tecnologia regulamentar as redes para proteger direitos humanos e combater discursos de ódio. Mais do que uma disputa política, ela é econômica.
Cenário semelhante ao que se pleiteia no Brasil, em muitos países como Alemanha, Inglaterra e França, as big techs são obrigadas pela legislação vigente a nutrirem o mínimo de transparência com o governo local, caso contrário são impossibilitadas de operar. Isso permite com que se monitore o que e como as notícias estão sendo compartilhadas – diferente de um cenário onde nem o usuário nem a sociedade têm controle sobre as etapas do processo seguido pelas plataformas.
A tentativa de regulação das redes sociais estava sendo, até o momento, pleiteada através do Projeto de Lei 2.630/2020, que instituiria a lei sobre Responsabilidade, Liberdade e Transparência na Internet. Conhecido como PL das fake news, o projeto foi alvo de notícias tendenciosas por parte de big techs, como o Google que, em seu blog homônimo, publicou matéria intitulada “como o PL 2630 pode piorar sua internet”.
Apesar da urgência pela matéria, Arthur Lira, ex-presidente da Câmara dos Deputados, anunciou, em abril de 2024, a criação de um grupo de trabalho para debater nova versão do projeto que, segundo ele, deve ser mais maduro e menos contaminado por “discussões ideológicas”. Logo se nota que ou os quatro anos de debate não foram suficientes para amadurecê-lo ou falta interesse por parte da bancada.
Neste cenário, Matos (2024) aponta, em sua tese de doutorado intitulada A regulação da desinformação a partir de iniciativas legislativas no brasil : uma análise do PL 2630/2020 que, ademais da prevenção e contestação com letramento midiático, jornalístico e científico e com fact-checking, é imperativo a regulação através da autorregulação das redes, ações judiciais e autorregulação regulada. Esta última sendo o ponto principal onde o Estado toma para si a responsabilidade sobre o que está sendo veiculado.
Torna-se necessário, portanto, que a regulação de grandes plataformas seja uma imposição dos países em que elas irão manter atividade. Por imposição, estamos falando de uma exigência de maior transparência por parte das plataformas, responsabilidade pelas políticas de moderação de conteúdo e checagem de fatos e responsabilização civil em caso de danos.
No entanto, ainda que pensemos em responsabilização pecuniária (multas) em caso de descumprimento de acordo, parece ser mais lucrativo bancar os encargos judiciais pela falta de responsabilização quanto aos serviços oferecidos do que alterar as políticas de conteúdo. Dessa forma, a única alternativa parece ser a levantada pelo ministro Alexandre de Moraes: ou segue a legislação vigente ou deixa de operar no país.
Após Zuckerberg divulgar as mudanças nas políticas e diretrizes da Meta – levantando a hipótese de que alguns países da América Latina possuem tribunais secretos que determinam a derrubada de conteúdos –, o ministro foi categórico ao dizer que o Brasil não é “terra sem lei” e que o Supremo Tribunal Federal não vai permitir que as big techs continuem sendo instrumentalizadas para ampliar discursos de ódio e antidemocráticos.
A regulação das big techs deve ser vista, mais do que uma restrição a discursos de ódio e manifestações preconceituosas nas redes, como uma expressão da democracia em seu mais alto nível. Fundamental para conter o avanço da extrema-direita no Brasil e no mundo, defender a regulamentação das plataformas é defender a continuidade da democracia.
Submissão às leis nacionais: uma questão de soberania
A discussão sobre soberania nacional se intensificou diante dos permanentes ataques virtuais de Elon Musk contra o ministro do STF, Alexandre de Moraes, cujo conteúdo vai desde acusações de censura até o apoio a um projeto da Câmara dos EUA que defende a proibição da entrada do ministro no país.
A inclusão de Musk no Inquérito das Milícias Digitais (Inq. n° 4.874), que apura a atuação criminosa de grupos suspeitos de disseminar notícias falsas nas redes para influenciar processos políticos, foi o estopim para que essa perseguição contra o STF e Moraes tomassem corpo.
A reincidência desses ataques foi percebido pelo próprio Tribunal como um ataque institucional, de modo que uma reação diplomática formal do Itamaraty, sede do ministério das relações exteriores, foi demandada a fim de que se reforce a política de cooperação entre os países. Mais ainda, cobra-se reciprocidade.
No entanto, a postura de Musk e de congressistas republicanos quanto ao Brasil se deve ao apoio, tão incondicional quanto cômico, da extrema direita brasileira. Isso oferece, de algum modo, a sustentação que a base aliada de Trump precisa para ampliar seu poder – dessa vez no digital.
Assim, resta claro que essa estratégia de “constrangimento institucional”, levantada por ministros do STF, é, antes de uma questão de liberdade de expressão e democracia, uma disputa por soberania e poder político.
Nesse sentido, a Carta Pública Contra o Ataque das Big Techs à Soberania Digital ressalta a necessidade que essas empresas de tecnologia possuem de controlar não apenas o mundo digital, mas também o setor público – nitidamente percebido através de lobby com políticos do “centrão”. Essa estratégia de relacionamento adotada contamina “as aspirações mais amplas de todas as nações democráticas de alcançar a soberania tecnológica” (Carta Pública, 2024).
A Carta, assinada por nomes como Paris Marx, Evgeny Morozov e Sérgio Amadeu, expõe a necessidade que os Estados possuem de direcionar as tecnologias, de modo que os lucros privados – ou o controle unilateral do Estado – deixem de estar à frente das pessoas e do planeta.
Considerações finais
Diante disso, as big techs tornaram-se ferramenta política das “novas direitas” – por “novas direita” entendemos aquelas que, usando as tecnologias a seu favor, ascendem novamente após um declínio no pós-2ª guerra –, o que contribui na construção de alianças entre governos ao redor do mundo. Nesse cenário, a democracia, que antes havia alcançado um patamar considerado inalterável, se mostra cada vez mais enfraquecida.
A publicidade dirigida, oferecida pelo modelo de capitalismo de vigilância, foi muito bem aplicada para atomizar os cidadãos e cidadãs e os colocar em nichos de conformação segundo os interesses da classe política – a utilização das falhas percebidas na sociedade para aproximar com a ideologia de extrema-direita é uma clássica. Uma vez que a veracidade das informações deixa de ser relevante no modelo de negócio das big techs, sem regulação adequada a democracia não se sustentará.
Além disso, a influência de governos de extrema-direita fora de suas circunscrições, como é o caso dos EUA, comprova que esse é um problema que ultrapassa fronteiras, razão pela qual demanda-se também a articulação entre os países. No Brasil, embora a última eleição tenha nos oferecido um suspiro, a agenda pública antes mobilizada perdeu força – isso ocorreu porque a base governista se enfraqueceu diante do reacionarismo do congresso.
Nesse cenário, faz-se necessária a retomada da discussão acerca da regulação das big techs, imprescindível para que ideais extremistas de direita tomem proporções tão grandes quanto o lucro daqueles que se beneficiam delas. Longe de se resumir à moderação de conteúdo e à eliminação de discursos de ódio nas redes sociais, a regulação das plataformas garante a sustentabilidade da democracia.
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Outras referências que usamos neste artigo:
BENTES, Anna Carolina Franco. O modelo do gancho e a formação de hábitos: tecnobehaviorismo, capitalismo de vigilância e economia da atenção. Anuario Electrónico de Estudios en Comunicación Social “Disertaciones”, vol. 15, n.2, p. 1-19, jul-dez. 2022.
CRUZ, Sylvio Augusto de Mattos. Big Data e o fim do livre arbítrio: a democracia manipulada. Revista Pensar Acadêmico, v. 19, n. 3, p. 1083-1102, 08 mar. 2021.
DEBORD, Guy (1931-1994). A sociedade do espetáculo. Contraponto: Rio de Janeiro, 1997.
EGLER, Tamara Tania Cohen; PEREIRA, Thiago Costa. Rede tecnopolítica de extrema direita e democracia no Brasil. Intercom, Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, v. 47, 2024.
MARCIANO, Alain; NICITA, Antonio; RAMELLO, Giovanni Battista. Big data and big techs: understanding the value of information in platform capitalism. European Journal of Law and Economics, vol. 50, p. 345–358, 16 nov. 2020.
MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão de dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018.