Por Luana Lopes
“Quando os muros do isolamento social forem baixados, que caiam também os muros físicos que impedem as pessoas de uma vida melhor ao migrar” (p. 10)
Publicado em 2020 — ano que entrou para a história pela ruptura provocada pela pandemia a partir de março —, o livro Valentes: histórias de pessoas refugiadas no Brasil abre com uma reflexão das autoras Aryane Cararo e Duda Porto de Souza sobre os efeitos desiguais daquele período. Elas ressaltam como a pandemia aprofundou vulnerabilidades já existentes, atingindo de forma ainda mais dura migrantes e pessoas refugiadas.

As 286 páginas do livro, visualmente atraentes e ricamente ilustradas por Rafaela Vilella, oferecem uma abordagem didática sobre a condição de migração e refúgio no Brasil e reúne histórias de pessoas que aqui vivem, contextualizando-as com os conflitos no mundo que motivaram as migrações forçadas. Além disso, propõe a ampliação do repertório cultural dos leitores com indicações de filmes que aprofundam a compreensão das múltiplas dimensões dos processos migratórios. A conversa do livro é iniciada com as definições teóricas que classificam os sujeitos como:
- apátridas: que são aqueles sem nacionalidade reconhecida por um país e isso pode ocorrer porque o sujeito faz parte de uma minoria discriminada pela legislação ou, até mesmo, por um processo de independência recente, em que nem todos foram reconhecidos pela nova nação;
- migrantes: classificados como os que saem do país de origem e se direcionam a outro país;
- refugiados: que saem de seus países motivados pela busca de segurança em razão dos abusos graves aos direitos humanos. De modo geral, são sujeitos que sofrem perseguição pelas diferentes motivações, seja de raça/etnia, religião, gênero ou política.
A história dos refugiados no Brasil é narrada a partir da articulação entre diferentes elementos: os primeiros registros de sujeitos que chegaram ao país fugindo de perseguições, as transformações das Declarações, Protocolos e Tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, e o papel fundamental das organizações não governamentais, como o Cáritas e o ACNUR.
A Lei de Migração de 2017 — considerada uma das mais progressistas do mundo por garantir a não-discriminação, combater a xenofobia e assegurar igualdade de direitos trabalhistas a brasileiros e imigrantes — não surgiu de forma desconexa, mas como resultado de um percurso histórico.
Em 1960, o Brasil ratificou a Convenção de Genebra de 1951, que reconhecia a condição de pessoas refugiadas, seus direitos e os deveres do país acolhedor, mas ainda restrita a europeus perseguidos no próprio continente. Apenas em 1967, com o Protocolo Facultativo, a proteção foi ampliada para refugiados de outras regiões. Entretanto, 43 países, entre eles o Brasil, optaram por não adotar essa atualização em sua prática imediata.
“Dessa forma, estrangeiros de outros países que pediam proteção – como os da América Latina e África – ganhavam tratamento diferente: uma permanência temporária até que outra nação os aceitasse por meio de reassentamento” (p. 23)
Em 1989, alguns anos depois da Declaração de Cartagena (1984), planejada com base no princípio de solidariedade entre os países da América Latina e que ampliou a definição de quem pode ser refugiado para “violação maciça dos direitos humanos”, o Brasil retirou a cláusula do Protocolo Facultativo de 1967, que tinha como premissa limitação a países da Europa. Assim, concedeu alguns direitos aos refugiados:
“que eles exercessem trabalho remunerado e tivessem direito de associação. Nessa época, havia cerca de duzentos refugiados no território brasileiro” (p. 23)
Antes da Lei do Refúgio de 2017, a anterior era de 1980 e foi promulgada ainda durante a ditadura militar brasileira. Apesar das atualizações da Lei do Refúgio, as autoras apresentam as complexidades do tema ao expor que nem todos são reconhecidos como refugiados pela Lei, visto que, é preciso já estar no Brasil e comprovar a situação de perseguição no país de origem.
Reconhecidos como refugiados os acessam documentos e direitos específicos, como Carteira de Trabalho, Registro Nacional de Estrangeiros e Carteira Nacional de Estrangeiros. O reconhecimento também possibilita o planejamento desses sujeitos e oferece possibilidades como, por exemplo, a integração local, a repatriação voluntária, o reassentamento e a construção da unidade familiar.
A obra conta com dados estatísticos reunidos entre 2011 e 2017 que apresentam os países e as nacionalidades que mais fizeram solicitações de refúgio e o percentual que tiveram o reconhecimento pelo Brasil, os estados brasileiros em que se instalaram e aqueles que foram repatriados.
Ainda com base nesses dados, as autoras criaram respostas às mentiras frequentemente usadas para fundamentar comportamentos discriminatórios, como as afirmações de que são pessoas que querem roubar o trabalho dos brasileiros ou da criminalidade aumentada a partir da chegada de refugiados no Brasil.
Por fim, os capítulos são organizados a partir dos continentes:
- Ásia, apresentando os conflitos do Vietnã, Síria, Palestina e Afeganistão;
- África nas questões do Marrocos, República Democrática do Congo, Angola, Mali e Moçambique;
- Europa, com a ex-Iugoslávia; e
- América Latina com a Venezuela, Bolívia Paraguai, Colômbia, Haiti e Cuba.
Dessa forma, a cada país, a história de um refugiado no Brasil foi contada, fazendo com que eles deixem de ser apenas um número e ganhem nomes, rostos, trajetórias em que podem relatar os aspectos que fazem parte do cotidiano no país.
