A gordofobia, aversão a corpos gordos, causa problemas significativos para esta parcela da população, como interferências na saúde física e mental, falta de acessibilidade e distorção da autoestima e autoimagem.
Por Nayara Caroline Rosolen, para o Instituto Aurora
(Foto: Mart Production / Pexels)
A gordofobia se apresenta como uma aversão a corpos gordos e cria estereótipos e estigmas sobre essas pessoas, que são isoladas e excluídas de espaços públicos, muitas vezes por falta de acessibilidade. Com o crescimento de movimentos antigordofobia, especialmente nas redes sociais digitais e em representações audiovisuais, o debate é cada vez mais ampliado e colocado para reflexão em diversas esferas, como na saúde, na educação e até mesmo na legislação.
Jantar em um restaurante, assistir a um filme no cinema, se deslocar por meio de transporte público, viajar de ônibus ou avião, ir a uma consulta médica. Todas essas são atividades cotidianas que não costumam gerar preocupação. No entanto, criam uma lista mental para pessoas gordas antes mesmo de sair de casa. A catraca do ônibus vai girar? A cadeira vai comportar? O cinto vai fechar? O atendimento vai se basear no peso?
A falta de acessibilidade e exclusão das pessoas gordas em espaços públicos são alguns dos efeitos da gordofobia. Os estigmas e estereótipos que rotulam os corpos maiores como descuidados e indesejados são uma construção cultural. Esses modelos podem mudar da região ou período histórico em que se encontra. Atualmente, e há muitas décadas, o padrão está centrado no europeu: alto, magro e branco.
“A partir deles, ou em sua falta, determina-se se o corpo tem elegância, saúde, riqueza, ou, ao contrário, se é desajeitado, doente ou pobre (…) As aparências, e todos sabem disso, estão relacionadas a qualidades morais positivas ou negativas”.
Malu Jimenez (@malujimenez_), no livro Lute como uma gorda.
Diferente da pressão estética, que impacta todas as pessoas, a gordofobia é uma aversão direcionada a pessoas com corpos gordos. Mais do que se aceitar, neste caso, é preciso lutar por direitos básicos e resistir a falas e constantes imposições de uma sociedade projetada para corpos magros. Essa é uma luta dos movimentos antigordofobia, em busca de respeito e dignidade.
Tópicos deste artigo:
- Os efeitos da gordofobia para a saúde física e psicológica
- O impacto das redes sociais digitais
- Consciência e representatividade
Publicado em 16/10/2024.
Os efeitos da gordofobia para a saúde física e psicológica
A pesquisadora e escritora Roxane Gay (@roxanegay74) diz que a raiz desta problemática está na medicina, que fomenta uma gordofobia nem sempre velada, em torno da justificativa de preocupação com a saúde. Autora do livro “Fome: uma autobiografia do meu corpo”, ela afirma que parte de disciplinar o corpo é a negação em diversos aspectos da vida, desde acessos, oportunidades de trabalho e até mesmo a afetos.
No Brasil, a classificação da obesidade como uma doença deveria possibilitar maior acesso ao tratamento de comorbidades associadas no Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo. Ainda assim, é recorrente a queixa de pessoas gordas que buscam atendimento e são maltratadas por profissionais da área.
O prejuízo causado por essa discriminação se apresenta não apenas a nível mental, mas também físico. Na obra “A cultura da dieta é tóxica: Desmistificando crenças sobre alimentação e peso com base em evidências científicas”, a nutricionista Ana Carolina Orsini (@nutricaorsini) explica que o peso de uma pessoa está relacionado a uma combinação de diversos fatores sociais, econômicos e biológicos. Mas o que se vê, na realidade, é a culpa jogada exclusivamente para os indivíduos, como se fosse uma simples questão de “força de vontade”.
Essa visão distorcida pelo estigma do corpo pode acarretar comportamentos alimentares e de atividades disfuncionais que são normalizados na sociedade. Como o medo de engordar, a culpa por comer, a separação de alimentos entre bons e ruins, a contagem de calorias e a compensação excessiva em exercícios físicos. Um alerta para o comer transtornado ou mesmo o desenvolvimento de transtornos alimentares, como a bulimia e a anorexia.
Ana Carolina apresenta alguns conceitos que rodeiam este cenário e criam alguns mitos na mente das pessoas.
- Cultura da dieta: É um sistema que dita que pessoas magras são mais saudáveis do que pessoas gordas. Atualizada de tempos em tempos com as mais diversas restrições e modismos. Por exemplo: retirar a lactose, o glúten e o açúcar sem um quadro de saúde que necessite desta restrição.
- Salutarismo: Impõe que saúde é uma obrigação moral e pessoas “saudáveis”, ou magras, merecem mais respeito do que pessoas “não saudáveis”, como são vistas de forma equivocada as pessoas gordas.
- Nutricionismo: Uma visão reducionista da nutrição, que faz uma dicotomia entre os alimentos, entre bons e ruins, saudáveis e não saudáveis, permitidos e proibidos.
- Efeito dunning-kruger: Quando pessoas com menos experiência e conhecimento falam de um determinado assunto com mais confiança por não saberem a profundidade do tema. Entra em evidência na era das redes sociais digitais, onde, por exemplo, influenciadores ditam regras mesmo sem ter uma formação na área.
- Efeito Semmelweis: Tendência de comportamento em que pessoas rejeitam evidências científicas apenas porque vão contra normas e paradigmas estabelecidos.
O impacto das redes sociais digitais
A gordofobia aparece originada em diversas esferas sociais. Embora atinja homens e mulheres, estas sofrem maior pressão estética e corporal. Já na década de 1990, a autora do livro “O mito da beleza: Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres”, Naomi Wolf, apontava que quanto maiores são os direitos por elas conquistados, maior também é o controle sobre seus corpos. Não por acaso, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) apresenta que as mulheres são as mais afetadas por doenças psicológicas, como a depressão.
Em entrevista para a reportagem “Minha beleza não é efêmera: a representação dos corpos nas redes sociais e o impacto na autoimagem e autoestima”, a psicóloga Luiza Cassou (@vejaojardim) afirma que a exposição cada vez maior às redes sociais digitais é um fator importante para a relação com a própria imagem e pode gerar distorções acerca das percepções sobre si mesmo, afetando diretamente a autoimagem e autoestima.
Esses dois conceitos, apesar de semelhantes, aparecem de formas distantes, mesmo que estejam atrelados um ao outro. A psicóloga explica que tudo o que indivíduo vivencia desde a infância, faz com que construa a imagem que tem de si, a partir da perspectiva dos outros e uma autoavaliação do próprio comportamento. A depender do contexto e da cultura, estes podem ser encarados como positivos ou negativos. Quando positivos, caracterizam uma boa autoestima.
O problema se dá na comparação constante com recortes da vida de outras pessoas, o que é proporcionado pelas redes sociais. Fotos modificadas virtualmente, publicidades e instruções milagrosas para chegar a corpos inalcançáveis são exploradas e lucrativas para o mercado farmacêutico e de beleza. Os influenciadores digitais têm grande contribuição nesses comportamentos, que chegam cada vez mais cedo para crianças e adolescentes.
A pesquisa TIC Kids Online Brasil, divulgada em 2020 pela Cetic.br, mostrava que 43% de jovens de 9 a 17 anos já observaram a discriminação pela internet e 7% se sentiram discriminados. Dentre os motivos, 26% das meninas mencionaram a aparência física. O mesmo estudo aponta que 21% delas também já pesquisaram por “formas para ficar muito magra”.
As redes ainda facilitam os discursos de ódio do bullying virtual, já que as pessoas não precisam mostrar seus rostos e muitas vezes se escondem atrás de perfis falsos. No entanto, também podem ser um espaço para ampliar o debate e divulgação de informações educativas sobre o tema.
O bullying e o cyberbullying já foram incluídos no Código Penal e são crimes previstos pela Lei nº 14.811, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 12 de janeiro de 2024. Até o momento não há nenhuma legislação que descreva a gordofobia, no entanto, o Projeto de Lei nº 1786/22 prevê a inclusão do preconceito corporal na Lei nº 7.716/89.
O projeto foi apresentado pelo deputado José Guimarães (PT-CE) e está em análise na Câmara dos Deputados. Se aprovada pela Câmara e pelo Senado, a proposta prevê a reclusão de um a três anos e multa para aqueles que praticarem, induzirem ou incitarem a discriminação em razão do peso. O texto também será analisado pelas comissões de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial e de Constituição e Justiça e de Cidadania.
Consciência e representatividade
Por enquanto, podemos contribuir com a disseminação de conhecimentos corretos e que quebrem os paradigmas do senso comum. Quando, por exemplo, há o pensamento de que um corpo gordo é doente e um corpo magro é saudável. Esse parece ser o caminho mais assertivo para a evolução desse tema na sociedade. Isso perpassa a educação, dentro e fora de instituições de ensino, como a de direitos humanos, já tratado pelo Instituto Aurora.
Quanto mais novas as crianças tiverem consciência da importância de não reproduzir essa discriminação, mais saudáveis física e psicologicamente crescerão. Pensando nisso, a professora e pesquisadora Malu Jimenez criou um material na versão infantil sobre o debate da sua pesquisa: Lute como uma gordinha.
Para entender toda a problemática, é importante saber como se dá essa construção. A autora já realizou um curso sobre gordofobia que contém oito encontros, disponíveis para livre acesso no Youtube: Corpas gordas – gordofobia, resistências e ativismo; Corpas gordas – gordofobia, resistências e ativismo parte 2; Gordofobia e estigma social; Violência epistêmica; Patologização das corpas; Saúde e violência; Ativismo gorde; e Pesquisa gorda.
Muitos profissionais e ativistas utilizam das redes sociais para romper os estereótipos e transmitir informações baseadas em evidências. Além de todas aqui já mencionadas, encontramos perfis de profissionais da saúde como Pabyle Flauzino (@nutri.des.construida) e Gabriela Bacilla (@nutricionistagb). Durante a pandemia, também foi criado o perfil Saúde Sem Gordofobia (@saudesemgordofobia), com indicações de profissionais não gordofóbicos.
Algumas influenciadoras também atuam não apenas com a quebra de paradigma, mas normalizam a imagem e vivência de corpos e pessoas gordas, como Genize Ribeiro (@genizeribeiro), Ellen Valias (@atleta_de_peso), Agnes Arruda (@tamanhoggrande) e Gabriele Menezes (@gabimenezes).
Muitas vezes, compreendemos melhor nossos sentimentos e de onde surgem algumas questões através das artes. A temática e a vivência de pessoas gordas também são tratadas em obras audiovisuais, nas quais a gordofobia é representada ou combatida de diversas formas. Como, por exemplo, em:
- This is us (2016, Amazon Prime e Disney Plus), com a personagem de Kate Pearson;
- Shrill (2019, Amazon Prime), com Annie;
- Dietland (2018, Amazon Prime), com Plum Kettle;
- My mad fat diary (2015), com Rae Earl;
- e a 5ª temporada de Sessão de Terapia (Globoplay), com Giovana.
A gordofobia é também uma prática vista no ambiente escolar, o que contribui para a disseminação de discursos de ódio e violências. Para pessoas interessadas em se aproximar mais dos conhecimentos sobre direitos humanos e superar a violência às escolas, convidamos a conhecer e baixar gratuitamente os materiais do Projeto (Re)conectar.
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