Por Luana Lopes
Atravessa a vida (2020) e Nunca me sonharam (2017) são duas produções brasileiras que retratam recortes da realidade de escolas públicas de Ensino Médio do Brasil.
Ambos documentários abordam a temática das juventudes experienciadas por diferentes jovens, em diferentes cidades, em momentos similares no contexto macrossocial do país e, igualmente, que vivem um momento de passagem, bastante significativo e ritualístico, que é a finalização do Ensino Médio.
Além disso, a proposta é refletir sobre o papel da escola enquanto espaço de possibilidades inspiradoras, mesmo com seus limites desafiadores para os jovens na atualidade, como os motivos que levam à evasão escolar, a falta de infraestrutura e as desigualdades sociais.
Desigualdades sociais estruturais
As desigualdades sociais estruturais (de classe, de raça e de gênero), que também se convertem em desigualdades escolares aparecem nas duas obras cinematográficas nas subjetividades das falas dos estudantes, que denunciam e dão visibilidade a essas contradições.
Entre as muitas expressões das desigualdades escolares, destaca-se a precariedade da infraestrutura das escolas observadas. Para os estudantes, ela já aparece quase naturalizada: carteiras quebradas, ventiladores barulhentos, áreas interditadas e obras acontecendo ao mesmo tempo em que as aulas são ministradas.
Os profissionais da educação, de modo geral, têm acesso a documentos oficiais e de materiais da literatura acadêmica que tratam de questões relacionadas aos problemas da educação brasileira e que fundamentam discussões que expõem questões ainda veladas, atualizam dados e apresentavam problemas superados.
Os documentários propõem uma entrada sensível e subjetiva em questões já amplamente conhecidas — os dilemas da educação, das juventudes, das desigualdades e da formação de identidades — por meio das vozes de estudantes do ensino médio. Essa escolha confere à narrativa um tom profundamente humanizado, feito de rostos, sonhos, frustrações e esperanças.
Os estudantes se questionam sobre o que farão no ano seguinte, sobre como será a vida após a escola, sobre as incertezas de prestar o Enem e quais as chances ou possibilidades objetivas terão com esta prova.
Também refletem sobre a própria experiência escolar: como se sentem naquele espaço, o que esperam dele e como lidam com sentimentos ambíguos que oscilam entre esperança e desilusão.
Revelam, ainda, uma relação afetiva que nem sempre é correspondida pela escola enquanto instituição, embora seja profundamente presente na relação com seus professores, de quem se sentem acolhidos e gratos.
Atravessa a vida

Atravessa a vida foi gravado na pequena cidade de Simão Dias, no interior de Sergipe, em uma escola estadual em que os estudantes são em sua maioria filhos de agricultores e trabalhadores braçais. Nas entrevistas os jovens estudantes relatam o desejo em cursar medicina, engenharias ou alguma licenciatura, contudo, desconhecem os caminhos que os levem às profissões, exceto pela vaga ideia da possibilidade motivada pelo alcance de uma nota relevante no ENEM.
Eles expressam tanto a esperança quanto o peso de serem a primeira geração com reais chances de chegar à universidade. Revelam o desejo de mudança e reconhecem que o mundo é maior do que a cidade em que vivem; ao mesmo tempo, carregam o medo do desconhecido e a sensação de nunca terem sido verdadeiramente encorajados a almejar o ensino superior.
Isso se deve, em grande parte, às condições estruturais em que cresceram: poucos recursos financeiros; famílias majoritariamente chefiadas por mulheres devido ao abandono paterno — o que restringe não apenas as possibilidades materiais, mas também as afetivas —; a distância geográfica de cidades com universidades; e o cotidiano numa escola submetida a todas as desigualdades já mencionadas.
O documentário não tinha como objetivo retratar o desfecho após o Enem e nas vidas dos estudantes de forma detalhada, e sim demonstrar o processo vivenciado pelos jovens estudantes: momento de finalização da escola e a transição para um outro lugar que pode ser a continuação da vida de estudante ou não.
Porém, a entrega ao espectador foi além disso, ao adentrar em debates importantes e que eram recorrentes naquele momento do país e, consequentemente, eram debatidos nas aulas de Filosofia, Sociologia e História, como, por exemplo, a Escola sem partido, pena de morte e aborto.
Nunca me sonharam

Em Nunca me sonharam foi gravado em diferentes regiões do país e além dos relatos dos estudantes, reúne falas de especialistas, ativistas e gestores da educação e professores. O documentário busca um tom político que é apresentado a partir de questões coletivas e que refletem na educação com as vozes de estudantes de diversas regiões do Brasil como um coro de denúncia contra as estruturas que perpetuam as desigualdades educacionais.
O documentário não apenas expõe a precariedade das escolas públicas, mas as vincula intencionalmente a sistemas de opressão (racismo, elitismo, abandono Estatal pela ausência ou ineficiência das políticas públicas) transformando cada depoimento individual em um manifesto político. A exclusão em razão das desigualdades escolares é retratada em um dos depoimentos mais pungentes feito por um jovem estudante:
“meus pais não foram bem sucedidos na vida, eles também não me influenciavam, não me davam força para estudar. Achavam que quem entrava numa universidade era filho de rico; acho que eles não acreditavam que um pobre também pudesse ter conhecimento, pudesse ser inteligente, sabe? Para eles o máximo era terminar o Ensino Médio e arrumar emprego, trabalhar em roça, tipo vendedor ou alguma coisa do tipo. Acho que nunca me sonharam sendo um psicólogo, nunca me sonharam sendo um professor, nunca me sonharam sendo um médico. Eles não sonhavam e não me ensinaram a sonhar…”.
Essa fala sintetiza o círculo vicioso da desesperança: a pobreza não limita apenas condições materiais, mas também horizontes simbólicos, fazendo com que a universidade pareça um território proibido para um grupo de estudantes. O documentário aborda, ainda, a precarização do trabalho docente ao demonstrar a difícil posição ocupada pelos professores: entre a paixão pelo ensino e a complexa realidade da educação pública brasileira.
Os docentes são mostrados com excesso de trabalho, com a necessidade de improvisar aulas, com falta de material pedagógico e sem apoio de outros profissionais essenciais para o bom funcionamento da escola, como assistentes sociais e psicólogos, fazendo que os os professores tenham de ser apoio psicossocial para os estudantes nas mais diversas situações de vulnerabilidade e violências.
Direito à educação, direito à arte
Os documentários Atravessa a Vida (2020) e Nunca Me Sonharam (2017) constituem importantes recursos pedagógicos e reflexivos para os profissionais da educação, oferecendo um retrato multifacetado das realidades enfrentadas pelos jovens da escola pública brasileira.
Atravessa a Vida, em particular, tem um enfoque observacional e intimista, e pode ser especialmente relevante para ser exibido e debatido em ambientes escolares, tanto como ferramenta de formação docente quanto como material didático para suscitar discussões com os alunos sobre identidade, projetos de vida e desigualdades educacionais.
Nunca Me Sonharam, por sua vez, amplia essa discussão para um âmbito nacional, articulando as vozes dos estudantes com análises de especialistas, enquanto Atravessa a Vida oferece um mergulho profundo no cotidiano de uma comunidade específica, revelando como as macroquestões políticas se manifestam no microcosmo da sala de aula.
E aí, trabalhador da educação, e se a sua escola fosse o cenário de um documentário e você o dirigisse? Você já pensou nisso? Qual abordagem você daria?
