O discurso utilizado pela extrema-direita, de algum modo, sempre se mostrou ser mais acessível. No entanto, recentemente, acompanhamos o desenvolvimento de um tipo específico de discurso, menos acessível e de maior potencial ofensivo: o dog whistle ou apito de cachorro.
Por Gabriela Assad, para o Instituto Aurora
(Foto: Padrinan / Pexels)
Diante do crescimento da extrema-direita a nível mundial, observamos a ocorrência de um fenômeno discursivo único: dog whistle ou apito de cachorro. Essa denominação foi dada porque, assim como apito de cachorro tradicional, que emite ondas sonoras em frequência inaudível aos ouvidos humanos, esse tipo de discurso não é compreendido pela grande maioria das pessoas. A ideia, no entanto, é exatamente essa. Comunicar aquilo que apenas algumas pessoas possam entender.
Partindo da premissa de que todo discurso carrega consigo a ideologia presente em determinada época histórica e segundo o interesse de determinadas pessoas, o discurso utilizado pela extrema-direita carrega as ideias características do grupo. Justamente por funcionarem como um meio de intervenção política, estes discursos podem oferecer riscos a democracia, a depender da proporção que tomam.
Nesse sentido, é importante que, para disputar espaço – e, por vezes, narrativas – com a ala mais reacionária da política, saibamos reconhecer essas práticas. Para isso, em um primeiro momento, nos debruçaremos sobre este conceito, suas características e desdobramentos. Em seguida, faremos uma análise sobre o modo através do qual esses discursos se manifestam, principalmente em canais de comunicação de massa, bem como os riscos que sua expansão aparenta oferecer à democracia.
Por fim, oferecemos um olhar atento à Educação em Direitos Humanos (EDH) como um caminho para o fortalecimento da democracia e combate ao extremismo violento. A educação, se voltada à promoção dos direitos humanos, é conscientizadora por excelência, de modo que a realidade codificada possa ser refutada com criticidade, respeito, empatia e tolerância.
Tópicos deste artigo:
- O que entendemos por “dog whistle”?
- Educação em Direitos Humanos (EDH): a favor da democracia, contra extremismos
- Considerações finais
Publicado em 21/11/2024.
O que entendemos por “dog whistle”?
Consideramos como mensagens Dog Whistle ou Apito de Cachorro aquelas proferidas de maneira verbal ou não verbal – símbolos, gestos, desenhos – que, assim como o verdadeiro apito emissor de ondas audíveis apenas para cães, é imperceptível aos olhos e ouvidos da maioria da população. Este tipo de discurso pretende partilhar uma ideia, preceito ou valor a um seleto grupo de pessoas (público-alvo), enquanto que, para a maioria, permanece codificado.
Visando a disseminação silenciosa de discursos de ódio, com ideias de superioridade racial, misoginia e/ou xenofobia, os discursos do tipo dog whistle permitem que as bases ideológicas da extrema-direita sejam difundidas entre aqueles que partilham dos mesmos ideais sem que isso seja percebido ou passível de responsabilização. Em parte acirrado pela nova onda da extrema-direita estadunidense, denominada alt-right (nova direita), esse fenômeno ganhou adeptos ao redor do mundo.
Além da problemática envolvendo o próprio conteúdo, a potencialidade discursiva desse tipo de mensagem faz com que ela seja amplamente utilizada na esfera política como um meio de intervenção – no ato das candidaturas ou após a eleição –, razão pela qual também nos referimos a ela como dog whistle politics ou política do apito de cachorro.
Barbosa, Reynaldo e Santos (2021) apontam que a política do apito de cachorro consegue ser identificada quando um agente sinaliza, de modo pouco perceptível para maioria da base eleitoral, que apoia uma política impopular, polêmica ou que é importante apenas para uma parcela expressiva dos votantes. Desse modo, visando não perder apoio da maioria, o discurso é construído de modo que apenas o público-alvo possa acessá-lo, compreendê-lo.
Sendo um discurso velado, é decodificado apenas pelo ouvinte/receptor que integra aquele mesmo grupo. Para nós, que não estamos inseridos naquele contexto, a mensagem segue em sua forma padrão, isto é, codificada. Dito de outro modo, são mensagens que apenas possuem significado para alguns grupos, grupos para os quais ela inicialmente foi pensada.
Dessa forma, depreendemos também que a interpretação depende de quem escuta a mensagem, isto é, passa a ser fundamental que o receptor da mensagem integre o mesmo grupo ou, ao menos, guarde algum conhecimento sobre o modo como a linguagem é articulada dentro dele, quais os tipos discursivos utilizados etc.
Geralmente, o emissor da mensagem, ou seja, a pessoa que fala, guarda uma certa liderança-poder frente àquele grupo com quem fala – o qual, por sua vez, mantém uma relação de pertença identitária com este sujeito falante. Esta relação, indubitavelmente, favorece a interpretação pelo receptor/ouvinte.
De modo semelhante, Foucault (1996) já havia nos indicado que “ é pela partilha de um só e mesmo conjunto de discursos que indivíduos, tão numerosos quanto se queira imaginar, definem sua pertença recíproca”. Isso significa que, além do reconhecimento de ‘verdade’ para a validação discursiva – sendo esta ‘verdade’ relativa –, é necessário analisar os sujeitos que falam e os sinais de manifestação de pertença prévia – raça, nacionalidade, gênero.
Verificamos, desse modo, que, em discursos do tipo dog whistle, há um fortalecimento de narrativas que endossam o binarismo nós vs. eles, a fim de construir a sensação de pertencimento necessária à identidade do grupo. Neste caso, o nós seria representado por valores considerados “dignos”, segundo as suas próprias percepções, como a branquitude, o masculinismo, o nacionalismo, enquanto que eles seriam todos aqueles dissidentes, negros, mulheres, não nacionais.
Nesse sentido, Ian Haney López (2014) levanta o conceito de racial dog whistle ou “apito canino racial” para enfatizar um tipo peculiar de discurso em que a união de determinada classe social ocorre baseada na cor – evidenciando a eugenia presente nessas falas.
Para o autor, esse discurso envolve três movimentos básicos: primeiro introduz a raça na conversa de forma velada, através de referências ao que consideram como “não brancos ameaçadores”, como imigrantes ilegais ou falsos usuários de programas de transferência de renda; depois ocorre um desvio de acusações de racismo, enfatizando a ausência de qualquer referência direta a um grupo racial e; por fim, há a alegação de vitimização racial de maneira oportunista.
Tal confusão gerada entre o que é ou não é se mostra interessante para quem produz esse discurso, uma vez que, na dúvida, boa parte das pessoas decide pela negativa. Exatamente por atentarem contra um “consenso moral” consolidado, é comum que se busque justificar a escolha de palavras ou atitudes tomada pelo autor do discurso.
Desse modo, discursos de apito canino racial, com esse teor racial “codificado”, são feitos pressupondo que essas ideias, nitidamente questionáveis, repercutiriam de modo negativo na maioria do eleitorado – fazendo com que haja um grande repúdio e comoção em torno dele – mas ganharia adeptos na sua base eleitoral.
Além disso, em virtude de ter sido acirrado pela nova onda da extrema-direita, uma das principais características desse fenômeno é a marcante atuação nas plataformas digitais. Contudo, não é através de qualquer comunicação. Os discursos utilizados são adaptados à realidade – e ao público – das redes sociais, razão pela qual a linguagem memética, ou seja, com o uso de memes, típica da extrema-direita, também passa a funcionar como apitos de cachorro.
Dessa forma, as mídias sociais funcionam como um território de disputa entre esses grupos que, por verem nos algoritmos uma ferramenta amplificadora – com alta reprodutibilidade, portanto –, usam de símbolos de ódio para fortalecer a comunicação sem alarde.
“Guerra de símbolos”: Dog Whistle Politics na prática
Partindo do pressuposto que o dog whistle é uma modalidade discursiva que pode assumir uma forma verbal ou não verbal, observamos um grau de complexidade distinto a depender do modo como ele se manifesta. Enquanto a linguagem falada, cuja interpretação pode nos direcionar ao real intuito da mensagem, tem um caráter mais acessível, a forma não verbal – propagada mediante desenhos, imagens ou símbolos –, acarreta uma sensação de ausência, exatamente porque nem sempre se sabe ao certo o seu significado.
Assim como todo discurso carrega consigo a ideologia do sujeito emissor da mensagem, a política do apito de cachorro visa difundir politicamente uma narrativa a partir e para a manutenção de uma única perspectiva, neste caso, da ideologia dominante. Desse modo, a utilização de símbolos pode ensejar uma dominação no campo do simbólico tão perigosa quanto sua versão no campo do real.
Téllez, Morell e Pérez (2022) concebem o símbolo como uma representação sensível e não verbal de uma ideia complexa, derivada de um processo de assimilação e síntese em uma determinada cultura. Esta representação única permite que a ideia seja condensada em um só elemento. Além disso, esses símbolos não necessariamente guardam uma relação de semelhança com a ideia a ser apresentada, apenas sendo necessária uma relação conceitual e metafórica.
Dito isso, símbolos ou desenhos, apesar de aparentemente inofensivos, podem vir a se tornar a representação de uma determinada bandeira político-partidária. Isso porque quem atribui sentido a eles são as pessoas que os utilizam, de modo que sejam instrumentos de comunicação e expressão entre iguais, isto é, entre aqueles que compartilham os mesmos ideais.
Visando decodificar alguns desses apitos de cachorro, propomos um olhar atento principalmente àqueles que são os mais utilizados pela extrema-direita. São eles:
88 ou 14/88
O 8, utilizado de forma repetida, remetendo à 8ª letra do alfabeto, H, faz alusão à saudação nazista Heil Hitler. Como uma variação desta numeração, poderá também aparecer o 14/88. O número 14 na inicial é por conta do livro “os 14 porquês” de David Lane (líder neonazista estadunidense, falecido em 2007), já o 88 funciona como uma reafirmação à saudação nazi.
Como sabido, a suástica é conhecida mundialmente e, embora guarde suas origens a uma época muito anterior ao surgimento do nazismo, remete imediatamente ao horror que foi a 2ª guerra e o holocausto nazista. Tendo isso em mente, diversos grupos neonazistas ao redor do mundo utilizam estratégias para se comunicarem de forma mais “silenciosa” – e, por certo, para se esquivar de possíveis acusações penais, visto que em muitos países, incluindo no Brasil, a utilização desse símbolo é crime.
Sol negro
Composto por três círculos e doze raios, congrega aqueles símbolos mais importantes para a ideologia nazista: a suástica, a roda do sol e a runa nórdica sowilo, associada à vitória. Largamente utilizada por soldados alemães à época do regime, esse símbolo é utilizado até hoje como sinal de identificação e subserviência aos ideais nazi, porém de modo que o ocultismo nazista seja preservado.
Recentemente, militares ucranianos foram vistos com este símbolo nos uniformes, o que suscitou a discussão sobre forças armadas, extrema-direita e neonazismo.
W e P
Embora se assemelhe a um ok! com as mãos, o ato de juntar o indicador e o polegar mantendo os outros dedos paralelos, formando as letras W e P, pode indicar uma associação ao lema White Power (poder branco, em português). A Liga Antidifamação (ADL), que monitora crimes de ódio nos Estados Unidos, considera o gesto uma expressão da supremacia branca e do antissemitismo.
Um exemplo de uso recente desse símbolo foi através do assessor para assuntos internacionais do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, Filipe Martins. Martins fez esse gesto enquanto estava em sessão no Senado, atrás do presidente da casa, Rodrigo Pacheco.
Leite
A ingestão de leite puro pode indicar uma associação à ideologias de supremacia branca, isso porque muitos grupos passaram a ver no leite, especificamente, na capacidade para digerir a lactose, um código para simbolizar uma suposta “superioridade genética” da raça branca em relação às demais.
Representante da ideologia da extrema-direita, o ex-presidente da república, Bolsonaro, ao lado do então presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, e do ex-Secretário de Agricultura e Pesca, Jorge Seif, bebeu um copo de leite puro para, segundo ele, parabenizar a produção de leite do mercado nacional.
Apesar de muitos produtores e empresários vinculados à cadeia produtiva do leite terem vindo a público manifestar-se contra esta associação, a mensagem aparentou chegar como deveria em apoiadores supremacistas brancos. Importante destacar com isso que, para nós, a associação não é feita apenas com o consumo do leite, mas pelo histórico racista e supremacista da pessoa a quem o leite está sendo vinculado.
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A utilização de parênteses triplo começou a ser associado com movimentos supremacistas brancos quando estes começaram a identificar e atacar pessoas com origens judias nas redes sociais colocando seus nomes entre os parênteses (((assim))). Como outros símbolos, este está associado à construção da nova direita estadunidense, a alt-right – cuja característica principal é a utilização de mídias sociais como ferramenta política.
Além disso, esse símbolo também está na lista criada pela ADL, para identificação de mensagens de ódio. Assim como os demais, não pode ser analisado isoladamente, pois o contexto e o histórico são tão importantes para a interpretação da mensagem quanto o símbolo em si.
Dog whistle e democracia
A política dog whistle ou apito de cachorro, desse modo, carrega um discurso de ódio – na maioria das vezes feito de maneira não verbal, justamente por conta das críticas caso sejam percebidas rapidamente – contra determinadas minorias sociais proferido em âmbito governamental. Especialmente por ser um meio de comunicação política, tem o poder de contaminar e desgastar o ambiente democrático.
Em um primeiro momento, observamos o desgaste da democracia através da perda de transparência nas comunicações do poder público. A transparência nas ações governamentais é um princípio fundamental na concretização do estado democrático de direito. No entanto, nos casos de discursos velados, como dog whistle, não temos o acesso descomplicado a essas informações, de modo que a capacidade de exercer o controle dos atos do governo – exercício pleno da cidadania – fica prejudicado.
Além disso, como consequência da impossibilidade do exercício de controle governamental contra discursos dog whistles, que ressoam como música para apoiadores da extrema-direita, a ocorrência de ataques motivados pelo ódio possuem a capacidade de enfraquecer qualquer regime democrático – principalmente se este ainda carrega heranças autoritárias, como no caso brasileiro. Os recentes ataques às estruturas democráticas do Estado e o crescimento dos crimes de ódio contra minorias são exemplos disso.
A disseminação de apitos de cachorro, especialmente por meio das mídias sociais, as quais cumprem um papel fundamental na política direitista, pode contribuir para a produção daquilo que nós chamamos de dissonância cognitiva. Esse conceito pode ser compreendido quando há um conflito entre aquilo que uma pessoa acredita verdadeiramente e a realidade fática a qual ela é confrontada.
Leon Festinger, psicólogo social que cunhou o termo na década de 1950, percebeu que ao serem confrontados com a realidade, através de evidências científicas, por exemplo, aquelas pessoas que já possuíam crenças bem estabelecidas, tentavam produzir uma realidade que dê conta de enfrentar esse conflito. Ao tentar substituir um comportamento, adicionar novas informações ou reduzir a crença, busca-se manter a dissonância.
Nesse cenário, a presença de discursos que funcionam como dog whistles, a depender da proporção que são capazes de atingir, podem ajudar a produzir uma dissonância cognitiva de maneira coletiva – e, no pior dos cenários, reforçar teorias da conspiração que questionam as estruturas do Estado democrático. Mais, esses delírios de massa são produzidos propositalmente a fim de que algumas ideias tomem corpo.
O próprio nome dado ao fenômeno, “apito de cachorro”, nos indica essa produção dissonante. Isso porque o instrumento verdadeiro ganhou notoriedade por ser uma ferramenta de adestramento para cães. O barulho do apito é produzido para que o animal faça – ou não faça – aquilo que sua tutoria deseja, como forma de “correção”. De modo semelhante, os discursos do tipo apito de cachorro induzem a comunidade ouvinte a agir conforme o interesse.
Observamos quais os riscos práticos desse tipo de discurso. O discurso de Bolsonaro, após a derrota nas eleições de 2022, funcionou como o apito de cachorro que seus eleitores precisavam para dar continuidade aos atos antidemocráticos que culminaram na invasão à Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF). Além dos diversos ataques às instituições do Estado nos quatro anos de governo, não reconheceu formalmente a derrota e validou os questionamentos acerca de “como se deu o processo eleitoral”.
Do mesmo modo, o recente discurso proferido por Donald Trump após ganhar as eleições no dia 05 de novembro de 2024 acende um alerta na comunidade internacional. Depois de quatro anos longe da Casa Branca, Trump deu vários sinais de quais serão seus próximos passos na presidência dos Estados Unidos e, como de costume, instigou seus apoiadores com diversas falas extremistas.
Além de bradar aos quatro ventos que vai “fazer a América grande de novo” – fazendo referência ao slogan “make america great again”, que enfeita bonés e camisetas de seus eleitores –, o candidato eleito prometeu que vai “consertar fronteiras” e que, agora, o “país vai se curar”. Importante mencionar que a maioria dessas falas, cujo teor racista e xenófobo é enorme, foi antecedida pelo pronome “nós”, o que reforça o sentimento de identidade e pertencimento no grupo.
Visando a manutenção da soberania e supremacia estadunidense, Trump usou de Elon Musk (LINK), bilionário, dono do X e financiador da campanha do republicano, para se aproximar do público mais jovem e tecnológico através das redes sociais. Ao fazer referência ao foguete lançado dias antes, ele disse: “Quem mais consegue fazer isso? Rússia consegue? Não! China consegue? Não! Só o Elon”. Estas palavras funcionam mais como uma afirmação do poderio tecnológico do próprio EUA do que de Musk.
Tais discursos, aqui exemplificados pelos pronunciamentos de dois candidatos eleitos democraticamente, reforçam o sentimento de insatisfação, calcado em ideais extremistas, em boa parte da população, cuja ocorrência enfraquece os princípios democráticos – respeito, tolerância, equidade, proteção aos direitos humanos, justiça – que, ao contrário, devem ser fomentados.
Embora a defesa da democracia contra extremismos de direita seja recebida por essas figuras como “censura”, levando-os à defesa da liberdade de expressão irrestrita, tudo nos indica que discursos que funcionam como apitos de cachorro possuem potencial destrutivo em regimes democráticos. Portanto, ademais de restringir e responsabilizar a sua realização, sobretudo na política, consideramos fundamental a atuação através da Educação em Direitos Humanos (EDH) para a prevenção de discursos e atos extremistas.
Educação em Direitos Humanos (EDH): a favor da democracia, contra extremismos
Da mesma forma que para compreender os discursos do tipo dog whistles é necessário decodifica-los, Paulo Freire (2001) aponta a educação como uma forma de tomada de consciência sobre o mundo e decodificação da realidade opressora. Para que essa análise do objeto codificado seja efetiva, é necessário distanciamento e uma posterior reflexão crítica do sujeito, razão pela qual a educação libertadora e humanizadora é condição indispensável.
Nesse sentido, o Relatório de Recomendações para o Enfrentamento ao Discurso de Ódio e ao Extremismo no Brasil (2023), do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, embora não mencione diretamente a ocorrência de dog whistles como discursos de ódio, aponta a necessidade do combate aos discursos de ódio e atos de extremismos no país mediante o fortalecimento da Educação e Cultura em Direitos Humanos. A inclusão do termo Cultura se refere à importância do assunto ser debatido em outros setores além dos espaços formais de educação.
A fim de enfrentar esse cenário, é defendido o uso de conceitos e práticas educativas baseadas nos direitos humanos e seus respectivos processos de promoção, proteção e participação na vida dos cidadãos e cidadãs, conscientizando-os sobre direitos e responsabilidades inerentes a vida em sociedade. Além disso, defende-se
- a definição de um protocolo de prevenção e resposta ao discurso de ódio e ao extremismo;
- a formação ampla e gratuita sobre a temática, bem como a metodologia e a aplicação de protocolo para docentes, gestores e comunidade; e
- a instalação de um Pacto Nacional para o enfrentamento ao discurso de ódio e ao extremismo, de maneira ampliada.
Segundo o Grupo de Trabalho, responsável pela elaboração do Relatório (2023), a “ofensiva extremista” contra os direitos humanos – verificada internacionalmente – ataca diversos grupamentos sociais e se utiliza da violência como forma de ação política, além de questionar o próprio conceito de direitos humanos.
Nesse sentido, e de maneira ainda mais desafiadora, a ocorrência de apitos de cachorro acarreta violências no campo do simbólico de modo que apenas o fortalecimento da consciência sobre os direitos humanos e a democracia pode ocupar-se. Portanto, sendo discursos do tipo dog whistle uma expressão do discurso de ódio, verbal ou não verbal, a formação de consciência sobre humanidade, longe de qualquer hierarquização, aponta para um cenário onde o extremismo de direita perde corpo.
Além disso, ao verificamos a utilização da internet como ferramenta política para a disseminação de apitos de cachorro, também faz-se necessário discutir a educação em direitos humanos no contexto das mídias sociais – não apenas para coibir práticas mas também para identificar discursos de ódio.
De acordo com o documento Enfrentando o discurso de ódio nas redes sociais: desafios contemporâneos (2021), elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), além da mobilização de recursos legais, de modo a impor restrições a atuação de grandes empresas no país, bem como na eliminação de materiais de incitação ao ódio, as intervenções preventivas por meio da educação ajudam a fortalecer a consciência acerca das consequências nocivas do discurso de ódio nas redes.
Ademais, dentre as recomendações, o documento aponta a necessidade de “capacitar acerca do discurso de ódio, dos meios de comunicação e da informação e proporcionar competências digitais através de programas educativos”. Tal orientação envolve fornecer financiamento e recursos para programas educativos que incentivem a resistência contra o discurso de ódio, com prioridade para aqueles que alertem sobre os efeitos nocivos desses discursos nas redes.
Dessa forma, mediante a proteção e promoção da educação em direitos humanos, dentro e fora das redes sociais, inclusive efetivando os objetivos e diretrizes do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) – que, como programa de Estado, deve se manter longe de qualquer intervenção político-partidária –, discursos extremistas adquirem menos adesão social, favorecendo o desenvolvimento pleno da democracia.
Considerações finais
A ocorrência de discursos de ódio codificados, denominados de dog whistles, aparentam carregar uma suposta neutralidade discursiva. No entanto, assim como nenhum discurso é neutro, estes apitos de cachorro, principalmente quando proferidos por políticos com amplo alcance de massa, possuem o poder de provocar uma dissonância cognitiva naqueles que os escutam.
Tal produção dissonante ou delirante pode incentivar rupturas democráticas, isso porque, em decorrência dos discursos utilizados – em geral, contra minorias sociais e populações vulneráveis – e afetos mobilizados, valores caros à democracia são enfraquecidos. Além disso, é de conhecimento comum que os discursos de ódio podem ser transformados em violências fáticas. Nesse cenário, essas violências ultrapassam o campo do simbólico e adentram a sociedade.
Visando a superação desse quadro, a Educação em Direitos Humanos, justamente por promover a conscientização e a decodificação da realidade, se mostra como uma ponte entre o onde estamos e o aonde queremos chegar, sendo este último um lugar em que haja respeito, tolerância, empatia, cooperação e promoção dos direitos humanos.
O Instituto Aurora atua pela promoção e defesa da Educação Em Direitos Humanos. Conheça mais sobre a nossa atuação na seção “Quem somos”.
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Algumas referências que usamos neste artigo:
BARBOSA, Vanessa Fonseca; REYNALDO, Allan. SANTOS, Yuri Andrei Batista. A política do apito canino sob as lentes do discurso: diálogos com o pensamento bakhtiniano. Caderno de Letras, Pelotas, n. 41, set-dez (2021). Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/cadernodeletras/index.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 3ed. São Paulo: Edições Loyola, 1989.
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Centauro, 2001.
LÓPEZ, IAN HANEY. Dog Whistle politics: how coded racial appeals have reinvented racism and wrecked the middle class. New York: Oxford University Press, 2014.
RAMOS, Jair de Souza. Frouxonauro e cornoservadores: metáforas de virilidade masculina no ativismo digital da extrema direita brasileira. Dossiê Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 39, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2023.39.e22309.a.pt.